No ônibus 650, durante a rota do Centro de Fortaleza ao bairro Messejana, dona Elisa fala sobre a “lentidão para chegar em casa” às 21 horas, presenteia uma mulher ao lado com um "gigolé" perolado e recorda a saudade de passear na praia com seus filhos e netos. Conversa vai, conversa vem, a senhora revela o trabalho árduo como cozinheira durante a vida para sustentar a família. Assim como dona Elisa, que cruzou o caminho desta repórter na última sexta-feira de abril, inúmeras mães brasileiras se reinventam para a sobrevivência de si e dos seus neste País.
No Brasil, outras infinitas histórias revelam os vários perfis de maternidade e desconstroem aquela visão romântica de que mães devem ser perfeitas, avessas aos erros, sempre alegres, compreensivas e, por vezes, até angelicais. Não que elas também não possam ser tudo isso, mas a realidade parece mais complexa. Neste Dia das Mães, o Vida&Arte celebra as representações de diversas maternidades em diálogo com as artes e repercute a desconstrução do conceito da “mãe perfeita” em várias linguagens.
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Filha da Laura, mãe da Rubi
Quando Rubi rebentou ao mundo em 2018, a produção artística de Simone Barreto foi imediatamente atravessada pela maternidade. Não à toa, ela se define como "artista e professora, filha da Laura e mãe da Rubi". Ao acompanhar o desenvolvimento de Rubi e de si como mãe, ela transformou a vivência da maternidade em arte.
A artista apresenta a série "Desde quando você nasceu", composta por autorretratos bordados em tecidos de algodão cru, ao O POVO. Nas obras, representações do leite escorrendo do peito e das cicatrizes de uma cesária não planejada (ela queria parto normal) se misturam a momentos de felicidade, aos braços imensos querendo abarcar o mundo para proteger sua cria. Uma fusão de sentimentos, "como é bem a maternidade mesmo", diz Simone. "A ideia é continuar fazendo esses registros, porque são como diários da nossa vida".
Artista independente, Simone não tinha trabalho fixo durante a gravidez. "Não tinha licença maternidade, contei com o apoio de amigos". A artista divide: "Sou mãe solo. Se estou cuidando da minha filha, não tenho como participar de uma residência artística com viagem de meses. Essas estruturas também não são pensadas para mães. Estou o tempo todo pensando sobre isso, seja como crítica a esse lugares, seja como assunto do meu trabalho".
A artista acrescenta: "Pensar sobre esse corpo que se transforma ou sobre cansaço, sobrecarga, essa responsabilidade… Tanto é assunto do meu trabalho artístico quanto a minha maternidade molda minha criação".
Para Simone, a ideia da "mãe perfeita" está ligada "ao ideal cristão e ao patriarcado" (sistema social baseado no benefício de homens brancos, cisgêneros e heterossexuais), que reforça uma "personagem que abnega de tudo para cuidar dos filhos". "Na vida real, existem mulheres, mães negras, que não puderam maternar seus filhos, porque foram arrancados de suas mãos. Não puderam amamentar porque tinha que amamentar os filhos das sinhás. A ideia da mãe perfeita é uma história de um tipo de maternidade. Existem muitas outras".
Entre palavras
Rita de Cássia, 53, põe os óculos, abre um livro e inicia a leitura para um grupo de crianças ou adultos. Na biblioteca comunitária Livro Livre Curió ou na Floresta do Curió, a cena é recorrente. Diariamente, a manicure, depiladora e mediadora de leitura repassa o encantamento pela literatura a novas gerações do bairro Curió, onde mora há mais de duas décadas. Mãe de Talles Azigon, Lígia Silva e Pedro William, ela diz: "Não existe mãe perfeita".
Dona Ritinha, como carinhosamente é chamada, é co-fundadora da Livro Livre Curió, junto ao filho, o poeta Talles Azigon. O equipamento é fruto da parceria da família. Lígia e Pedro também estão diretamente ligados à construção da biblioteca.
Rita conta que casou aos 14 anos. Quando sua primeira filha nasceu, ainda era praticamente uma criança. "Foi difícil, eu não tinha experiência. Ela teve uma infecção e morreu". Ela compartilha: "Quem ajudou a criar meus filhos foram minha mãe e minha irmã. Me separei muito jovem, tinha 23 anos quando divorciei do meu esposo. Foi uma outra dificuldade, criar as crianças só. Não foi mais difícil porque tive a ajuda da minha mãe e da minha irmã, que criaram eles enquanto eu retornava para aquela vida que tive perdida. Minha mãe deu essa oportunidade para eu recomeçar tudo na minha vida novamente. Comecei a estudar e trabalhar".
Para Dona Ritinha, "quando a gente é mãe, é dificultoso, ainda mais quando se é mãe e pai. Tem que trabalhar o dia todo, estudar, cuidar. Não fui perfeita. Não pude ir em reuniões, acompanhar a vida deles. Eu trabalhava e estudava. Todo o amor que eu tenho por eles, eu botei para os filhos dos outros em sala de aula, durante 20 anos na educação infantil".
A matriarca defende a educação como ponte para a transformação social. "Nem todo mundo da periferia, como mães assalariadas, pode comprar um livro para o jovem ou para si. Nossa biblioteca contribui para apresentar os livros a idosos, jovens, crianças. Segundo dona Ritinha, enquanto for possível, ela e sua família vão apresentar a leitura, a arte e a cultura para cada vez mais pessoas.
Ao O POVO, Lígia Silva, Talles Azigon e Pedro William homenageiam a mãe, Rita de Cássia.
“Admiro muito minha mãe. Se não fosse por ela, esse movimento aqui no nosso bairro não existia. Tudo acontece por causa dela, ela é que faz tudo acontecer! A maior admiração que tenho da minha mãe é porque ela nunca desiste do próximo, sempre está ali tentando, e são raras as pessoas que são assim. O mundo seria bem melhor se existissem várias Ritas no mundo. Minha mãe é meu maior orgulho e exemplo de vida. Ela poderia ser a presidenta do Brasil”.
— Lígia Silva, 37
“Mãe, minha querida mãe, continuação de minha vó. Leitora, educadora, esteticista, mobilizadora. Minha mãe que me deu seus genes e seu sentimento, sua vontade de viver e sua inteligência, minha mãe que me deu uma vida e um jeito especial de falar e de ser comunidade. Você é minha mãe e mãe de tantas pessoas que te olham e te admiram. Você é o verdadeiro significado da palavra amor. Eu te agradeço, te celebro, te festejo. Viva minha mãe, te amo”.
— Talles Azigon, 33
“A mãe Ritinha é uma mulher muito forte, porque apesar de todas as suas lutas e batalhas, sejam as ganhas ou as perdidas, mesmo assim, ela sempre se reinventou e se levantou para lutar de novo e com o tempo foi evoluindo como pessoa, como mãe e como mulher sempre tentando se reinventar sempre tentando dar o melhor tanto em suas ações em e com a comunidade como também para a sua família”.
— Pedro William, 21
"Público e privado se encontram": a maternidade como fenômeno social
Discursos sobre mães podem acabar condicionando em "caixas", principalmente, as habitantes de favelas. No livro
A autora ouviu histórias de mulheres dos morros da Mineira e de São Carlos, no Rio de Janeiro, por dois anos. Entre as narrativas, está a de uma mãe que teve a casa queimada por um ex-companheiro e, por isso, deixou a criança aos cuidados de outras pessoas. "A vizinhança a julgou de ter abandonado o filho, mas ela não tinha uma casa para acolher a criança", relata.
O "ideal romântico da maternidade" atinge todas as mulheres, mas parece "mais perverso" entre as moradoras de favela, diz Camila. "Espera-se que elas exercitem uma parentalidade impossível de ser realizada diante do trabalho fora e da escassez de serviços públicos. Elas se esforçam para garantir o cuidado dos filhos, mesmo com pressões de carga mental e trabalho não remunerado".
A pesquisadora defende a garantia de creches públicas de qualidade, alinhadas às políticas de saúde reprodutiva para homens, mulheres e pessoas LGBTQIAP+. "Nossa cultura espera que as mulheres mães sejam responsáveis por todos os problemas da sociedade". Mãe de uma adolescente, Camila destaca: "A maternidade é esse lugar onde público e privado se encontram e se reconfiguram, por isso ela é tão profunda e instigante".
As mães em várias linguagens
Música. "Cheiro de mãe" é a nova canção do músico cearense Samuel Rocha. Neste Dia das Mães, o artista lança o single nas plataformas digitais de áudio, acompanhado de projeto audiovisual em seu canal no YouTube. Para compor a faixa, Samuel teve como inspiração sua mãe, Arlete Rocha.
Cinema. A temática da maternidade permeia a filmografia da cineasta brasileira Anna Muylaert em diferentes nuances. Em "Que horas ela volta?" (2015), por exemplo, a empregada doméstica Val (Regina Casé) trabalha na casa de uma família de classe média em São Paulo, comandada por Bárbara (Karine Teles). Val deixa a filha, Jéssica (Camila Márdila), aos cuidados da família em Pernambuco. O filho dos patrões, Michel Joelsas (Fabinho), a vê como uma figura maternal. A obra destaca a tensão entre essas relações. Outros títulos da diretora: "Mãe só há uma" (2016) e "Durval Discos" (2002).
Internet. Diversos perfis nas mídias sociais têm discutido a maternidade e as várias maneiras de ser mãe na sociedade contemporânea. No Instagram (@mamaedascrias_), a alagoana Ana Flávia compartilha ideias sobre maternidade e sua rotina. “Não existe um padrão ideal. A maternidade está longe de nos tornarmos perfeitas, vivemos um turbilhão de desafios e sentimentos. O mais importante é você se auto conhecer para começar a conhecer as necessidades do seu filho”, aconselha em uma das publicações.
Esse também é o caso de Cila Santos, que se define como “influencer do caos”. No Instagram (@militanciamaterna), ela divide pensamentos sobre maternidade, feminismo, criação de filhos e um mundo melhor para crianças em fotos e vídeos.
A pernambucana Rosa Filipovic mora na Alemanha há uma década. Em seu canal no YouTube, a também educadora conversa sobre a vivência no país estrangeiro e a rotina com a família. Ela é mãe de Sofia, Emília e Leo Emanuel. Nos vídeos, Rosa fala sobre alegrias e angústias de cada gestação e desabafa sobre as dificuldades, além de desmistificar a maternidade perfeita.
Influenciadora digital, Layse Cohen conta com mais de 1 milhão de seguidores em seu perfil no Instagram (@laysecohen). Advogada por formação, ela é mãe dos gêmeos Daniel e Estella, de 5 anos. “Qual mãe nunca sofreu uma crítica em relação à maternidade ou nunca sentiu culpa?”, indaga.
Layse relata que sente, constantemente, culpa por não ter mais tempo com os filhos e pressão para dar conta de tudo (vida, trabalho, casa, família). Sobre a exposição na internet, a influenciadora diz: “As pessoas acompanha nossa rotina, conhecem nosso dia a dia, e por estar sempre compartilhando tudo por ser figura pública, os ‘criticadores’ de plantão se sentem à vontade para opinar. Opiniões sem ofensas são super aceitáveis e normais no ramo, porém, quando vira ofensa, se torna complicado”.
A influenciadora aconselha outras mães: “Se priorize, pense em você também, pois quem sabe o que está passando é só você mesma. Não dê ouvidos para críticas maldosas e continue sendo a mãe incrível e atenciosa com os pequenos como você sempre foi”.
Manifesto "Maternidade Sem Julgamentos"
O Boticário lança o manifesto “Maternidade Sem Julgamentos” em prol do acolhimento materno e contra a culpabilização das mães. Essa é a premissa da campanha de Dia das Mães da marca, em parceria com a Free Free, organização que atua pela autonomia de meninas e mulheres no mundo.
O tema foi escolhido a partir de pesquisa com colaboradoras, revendedoras, consumidoras e influenciadoras digitais da O Boticário. Segundo a marca, a maioria das pessoas ouvidas falaram sobre o processo exaustivo de enfrentar julgamentos sobre sua maternidade.
A campanha convida: “Vamos parar os julgamentos e espalhar mais amor e acolhimento a todas as mães do Brasil. Uma maternidade sem julgamentos começa com a gente”. Em vídeo de divulgação do manifesto, uma mulher aparece em um tribunal, como uma metáfora às críticas que as mães recebem da sociedade e, principalmente, de si mesmas.
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