O maestro baiano Letieres Leite (1959-2021), criador da Orkestra Rumpilezz, dizia que "toda música brasileira é afro-brasileira". De fato, a influência dos ritmos africanos foi fundamental para a formação da música brasileira. Poderia, assim, ser classificada como uma outra MPB - música preta brasileira.
O historiador e etnomusicólogo Rafael Galante concorda com Letieres. Para ele, a influência da diáspora africana no fazer musical merece uma compreensão mais ampla e menos estereotipada. "Nossa visão é eurocentrada. Analisamos aquilo que nos salta aos olhos (ou ouvidos), como o universo percussivo. Porém, desde o início do período colonial no Brasil, no embate entre as civilizações europeias e africanas, o que se deu foi o protagonismo africano e afro-brasileiro que prevaleceu em qualquer tipo de atividade musical. A música foi essencial na transmissão de saberes".
Isso significa que a influência africana ocorreu de maneira diversa e, segundo Galante, não pode ser analisada sob o ponto de vista do presente. O que houve, segundo ele, com o fim do tráfico, na segunda metade do século 19, foi um esforço orquestrado pelo Estado, sobretudo nos ambientes urbanos, de embranquecimento das práticas musicais a fim de valorizar a cultura europeia. "Para sobreviver musicalmente, a população negra se adequou a esse processo, tomando para si esse referencial de música ocidental. É nesse entrelugar que se realiza a história dos grandes protagonistas da formação da música brasileira, como Pixinguinha, Joaquim Callado e Chiquinha Gonzaga".
A resistência, então, se deu nos quilombos, existentes até hoje em comunidades espalhadas pelo Brasil. É nesses exemplos que se inspira o cantor Jamelão Netto - neto de Jamelão, grande intérprete da música brasileira e da Mangueira. Para ele, acabou o tempo da "nega do cabelo duro" e do "negão de tirar o chapéu". "É um chamado. Hoje eu tenho consciência do que antes fazia involuntariamente. Samba é resistência. Não quero mais fazê-lo só como entretenimento", diz.
A cantora, compositora e educadora Luana Bayô, 30 anos, guarda bem na memória as rodas de samba que frequentava quando criança, levada pelo pai, um ferroviário que trabalhava na construção do Metrô de São Paulo. Os músicos amadores eram todos negros, moradores da periferia da cidade. Operários nos canteiros de obras, artesãos do samba.
Anos mais tarde, Luana foi ampliar sua vivência nos terreiros da cidade e nas comunidades de jongo e maracatu e batuque de umbigada. Queria uma reposta para a atração que os tambores exerciam sobre ela. Descobriu algo que a conectou com sua ancestralidade. "Foi percebendo o que isso significava, sobretudo que tínhamos, aqui na cidade, essa ligação com a cultura banto (tronco linguístico que deu origem a diversas outras línguas no continente africano). Falamos tanto do samba brasileiro que às vezes esquecemos que ele tem sua raiz na África", diz Luana, que também encontrou sua religiosidade no candomblé angola.
No dia 25 de novembro, Luana apresentou, no Sesc Belenzinho, em São Paulo, o show "Tambu - Uma Homenagem aos Batuques Paulistas". O tambu é um tambor feito de tronco de árvore que tem raízes na religiosidade africana e muito usado no jongo, na umbigada e no chamado batuque paulista. "O show enaltece a raiz negra de São Paulo. É uma cena que ainda existe nas comunidades quilombolas. É algo de resistência. Temos que dar continuidade a essa tradição. É preciso olhar para trás e caminhar para frente".
Jamelão Netto, por sua vez, está com um novo projeto, Os Guardiões do Samba e a Tecnologia Afrofuturista. "É uma música preta que dialoga com o samba e seus subgêneros, como jongo, maculelê, samba de roda, samba rock, samba jazz e o maracatu. Uma Jamelão session", define.
Netto prepara uma biografia e um documentário sobre o avô, que faria 110 anos em 2023. Sobre a produção audiovisual, ele estuda propostas ainda. Teme perder a autonomia sobre a história de seu ancestral. "Não abro mão. Fomos a vida toda submissos. Agora, o protagonismo tem que ser preto", diz.
Na letra de "Onde Rio é Mais Baiano", Caetano Veloso traça a relação do samba do Recôncavo com o urbano do Rio, por meio do protagonismo de Tia Ciata, quituteira baiana que migrou e abriu, no Rio, seu terreiro para os bambas. A Bahia, aliás, é espaço fundamental na formação da música afro-brasileira. Para o jornalista e pesquisador Marcelo Argôlo, o universo percussivo baiano está identificado com os toques oriundos do candomblé, religião de matriz africana - e se fazem presentes no ijexá, samba-reggae, samba afro do Ilê Aiyê, no samba duro, no pagode baiano, no groove da banda Psirico e na música eletrônica do grupo Àttooxxá.
"Até mesmo se olharmos um pouco mais atrás, como nas canções praieiras de Dorival Caymmi. Nas claves musicais há sempre o toque para os orixás. É o toque que remete à batida do coração, que foi o primeiro com que a humanidade se deparou", diz Argôlo, autor do livro "Pop Negro SSA" e criador do podcast Pop Negro BA.
Para o pesquisador, a música baiana consegue, em certos momentos, se sobrepor à europeia, como no caso dos maestros que escrevem arranjos para orquestras percussivas. Ele também cita Letieres, que dizia que as partituras estavam erradas pois não contemplavam algumas divisões fundamentais do ijexá, dos afoxés e do samba reggae. "Por mais que exista uma cultura formal, há as criações feitas a partir das tradições orais, como o samba reggae do Olodum, o ijexá modificado e o eletrônico que Gilberto Gil começa a fazer nos anos 1970, ou o pagode baiano que pega os toques das festas de candomblé", explica.
Outros compositores nordestinos também têm o olhar voltado para a África. Em entrevista recente ao Estadão, o alagoano Djavan declarou que, ao compor suas canções, começa primeiro pela melodia, que ganha cobertura com palavras africanas, muitas delas inventadas por ele. Posteriormente elas recebem as letras definitivas. "Depois que fui à África, entendi por que minha música é assim", disse à época.
Há pouco tempo, o paraibano Chico César lançou o álbum "Vestido de Amor", que chamou de "pan-africano". Chico diz que teve a ajuda do amigo Ray Lema, músico congolês que participa do disco, para entender que a música nordestina é africana. "Veja que o forró tem a ver com a rumba congolesa. Eu não tinha essa sacada, até que Ray me deu esse toque", diz. O compositor ressalta que seus ídolos do forró são negros: Gonzagão, João do Vale, Jackson do Pandeiro, Trio Nordestino e Azulão. "Sempre procurei dar ênfase à relação entre as musicalidades africana e nordestina". (Ag. Estado)
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