"Ela nunca foi um bom exemplo, mas era gente boa". É este o epitáfio que Rita Lee Jones "sugeriu" para si mesma no capítulo intitulado "Profecia" do livro "Rita Lee, uma Autobiografia" (2016). A frase demarca características essenciais da artista paulistana, que morreu aos 75 anos na noite da última segunda-feira, 8, após enfrentar problemas de saúde decorrentes de um câncer de pulmão. Dona de uma trajetória singular que uniu ousadia e popularidade, Rita foi a síntese de uma doce transgressão.
"Comunicamos o falecimento de Rita Lee, em sua residência, em São Paulo, capital, no fim da noite de ontem [segunda-feira, 8], cercada de todo o amor de sua família, como sempre desejou", começa o comunicado da família publicado na terça, 9. O velório da cantora e compositora será aberto ao público e ocorre nesta quarta, 10, em São Paulo.
Filha de Charles Fenley Jones, descendente de estadunidenses, e Romilda Padula, filha de imigrantes italianos, ela nasceu em 31 de dezembro de 1947 na classe média paulistana. Das aulas de piano na infância ao início de um interesse genuíno pela música na adolescência, Rita formou em 1963 um conjunto musical feminino com duas amigas. A ele, se somaram os membros do trio masculino Wooden Faces.
Tive a honra e o gozo de ilustrar esse livro da Rita Lee. pic.twitter.com/Eb86iSrAdf
— Laerte Coutinho (@LaerteCoutinho1) May 9, 2023
A junção das duas iniciativas foi a gênese do que viria a ser, com a saída de três componentes, o grupo Os Mutantes, formado oficialmente em 1966 por Rita, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias. Na banda, ligada ao movimento tropicalista e ao rock psicodélico, a artista compôs músicas como "Ando Meio Desligado", "Ave, Lúcifer" e "Meu Refrigerador Não Funciona", de sonoridades e letras experimentais.
Apesar de ser reconhecida como artista solo, a coletividade é marca constante na trajetória de Rita desde o início. Após a experiência com Os Mutantes, a cantora se juntou à banda Tutti Frutti nos anos 1970 e, com o grupo, lançou algumas das principais canções da carreira, como "Agora só Falta Você" e "Fruto Proibido".
Desde o início da vida artística, Rita já performava a transgressão vista no "epitáfio profetizado" décadas depois. Assumindo no eu-lírico a voz de figuras de poder, a artista criou versos como "Foi quando meu pai me disse: / 'Filha, você é a ovelha negra da família", em "Ovelha Negra", ou "Minha filha é um caso sério, doutor / Ela agora está vivendo com esse tal de / Roque Enrow!", em "Esse Tal de Roque Enrow".
A ousadia era discursiva, artística e de comportamento. Ao longo dos anos 1970, Rita enfrentou problemas com a ditadura militar, tendo trabalhos censurados, e chegou até a ser presa à época, por porte de maconha. No mesmo período, conheceu Roberto de Carvalho, que se tornou parceiro de vida e música da artista a partir de 1976.
O início da relação artística e pessoal, que durou até o final da vida da artista, foi responsável pela "virada pop" na carreira de Rita. Da vertente do rock e da experimentação que marcaram os anos 1960 e a maior parte dos anos 1970, ela foi se aproximando de uma linguagem mais acessível, inaugurada pelo álbum "Rita Lee" (1979), também conhecido como "Mania de Você".
No disco que marca a estreia oficial da parceria entre Rita e Roberto, sucessos como "Mania de Você", "Chega Mais" e "Doce Vampiro" alinharam o humor e a ousadia comuns à artista a uma sonoridade popular. Nos anos 1980, a lista de sucessos lançados pela artista conta com "Lança Perfume", "Baila Comigo", "Mutante", "Desculpe o Auê", "Flagra"e "Flerte Fatal".
Rita, obrigado. Que legado lindo deixa para todos os brasileiros e para a música mundial. Trilha sonora de tantos momentos das nossas vidas. pic.twitter.com/VZ4tuwqBF9
— Fernando Haddad (@Haddad_Fernando) May 9, 2023
Outros indicativos da ampla popularidade alcançada por Rita se somaram ao longo dos anos 1990 e 2000: trilhas de aberturas de novelas; lançamento do "Acústico MTV - Rita Lee" (1998), com participações de Milton Nascimento, Titãs, Paula Toller e Cássia Eller; e novos sucessos de público como "Erva Venenosa", "Pagu" — ambas do disco "3001" (2000) — e "Amor e Sexo", de "Balacobaco" (2003).
Se ao longo da carreira, a figura humana de Rita já interessava ao público, o extrapolamento concreto da artista para além da música foi, também, marco do alcance conquistado por ela. Um exemplo central é a presença da cantora e compositora no elenco de debatedoras do programa "Saia Justa", da GNT, a partir de 20002.
Acompanhada da escritora Fernanda Young, da atriz Marisa Orth e da jornalista Mônica Waldvogel, Rita foi fiel à própria sinceridade e transgressão. Opiniões compartilhadas na época, por exemplo, seguem até hoje circulando pelas redes sociais. Na internet, inclusive, Rita ganhou novo relevo a partir da conta pessoal de Twitter, cujos comentários bem-humorados e sem amarras também seguem referenciados.
Mesmo aposentada dos palcos a partir de 2012 — após o lançamento do último disco da carreira, "Reza" —, Rita seguiu presente não somente pelo inegável legado construído até ali, mas pela presença contemporânea, atualizada e reatualizada seja nas redes, nas releituras das novas gerações ou nos escritos próprios.
Rita Lee, sempre mutante, ganhou as páginas da turma do Chico Bento na história "Não Acredito Em Bruxas..." em 2011.pic.twitter.com/KBXH3o1Pkl
— Turma da Mônica (@TurmadaMonica) May 9, 2023
É uma bem-vinda coincidência que Rita tenha deixado pronto o livro de memórias "Outra autobiografia", que dá sequência à publicação de 2016 e deve chegar ao público ainda em maio. Na divulgação, foi destacado que o livro narra detalhes do tratamento dela contra o câncer de pulmão e que tem texto "franco", "cru", "cheio de ironias" e "amoroso".
As características são marcas indeléveis do "jeito Rita Lee de ser", comprovado por outras reflexões sobre finitude que a artista compartilhou em diferentes composições. "A morte não é mais do que mais um a menos", define, direta, em "Longe Daqui, Aqui Mesmo" (1997), canção na qual destaca ainda "o delírio de estar vivo e simplesmente ser".
"Pra que sofrer com despedida / Se quem partir não leva / Nem o Sol, nem as trevas / E quem fica não se esquece?", questiona em "Cartão Postal" (1975). Em "Saúde" (1981), o fim é acolhido, com esperança: "Se por acaso morrer do coração / É sinal que amei demais / Mas enquanto estou viva e cheia de graça / Talvez ainda faça um monte de gente feliz", promete. Depois disso, Rita, também.
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