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Luta antimanicomial e arte: espelhos da sociedade
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Luta antimanicomial e arte: espelhos da sociedade

Iniciativas históricas de luta antimanicomial e reforma psiquiátrica no Brasil constroem novas possibilidades de existência em comunidade
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O pintor Emygdio de Barros durante produção de obra em jardim de hospital psiquiátrico 
 (Foto: Arquivo Nise da Silveira / reprodução)
Foto: Arquivo Nise da Silveira / reprodução O pintor Emygdio de Barros durante produção de obra em jardim de hospital psiquiátrico

O autor carioca Lima Barreto (1881-1922) transformou as duas passagens por instituições psiquiátricas que teve em vida — ocorridas entre o final dos anos 1910 e o início dos anos 1920, frutos de crises de alcoolismo e depressão — nas obras "Diário do Hospício" e "O Cemitério dos Vivos", onde elabora as internações pela biografia e pela ficção.

Nos escritos, definiu: "Sem fazer monopólio, os loucos são da proveniência mais diversa, originando-se em geral das camadas mais pobres da nossa gente pobre". Em alusão ao Dia da Luta Antimanicomial, comemorado em 18 de maio, o Vida&Arte debate a relação imbricada entre o movimento, a arte e a construção de novas possibilidades de sociedade.

PARTE 2 | Prática antimanicomial na arte, na vida e na política pública

A ideia de Lima Barreto dá conta do caráter social da prática manicomial, marcada por ideais dominadores, coloniais, violentos e excludentes. A resposta à estrutura opressora, porém, veio se construindo no Brasil desde a época da internação do autor em figuras como Juliano Moreira (1873-1933) e Nise da Silveira (1905-1999), nomes centrais da luta antimanicomial e da reforma psiquiátrica no País.

Retrato do escritor Lima Barreto que consta em ficha de internação do carioca no Hospício Nacional de Alienados(Foto: reprodução)
Foto: reprodução Retrato do escritor Lima Barreto que consta em ficha de internação do carioca no Hospício Nacional de Alienados

Médico psiquiatra transcultural e criador do Hotel da Loucura, projeto de saúde mental ocorrido no Rio de Janeiro nos anos 2010, Vitor Pordeus lembra que o primeiro hospício do Brasil foi instituído em 1852 pelo então imperador Dom Pedro II.

"Ele começou a receber os 'malucos' que ficavam antes na Santa Casa e, antes, nos cárceres da inquisição, prisões, jaulas, dentro das casas das famílias. Isso já fala que a instituição manicomial tem alguma coisa de inquisitorial, também, de perseguir a 'bruxa', o herege, o homossexual", relaciona.

A luta antimanicomial, na avaliação de Vitor, é contra "uma autoridade corrupta, equivocada, violenta e opressora que vai se utilizando do mecanismo do 'bode expiatório' e sacrificando todos eles coletiva e publicamente, como se isso fosse resolver a causa".

O já citado Juliano Moreira é descrito pelo médico como um "herói psiquiatra". Preto, soteropolitano e nascido em uma família de pessoas escravizadas, perdeu a mãe e foi adotado pelo patrão dela, um professor da Faculdade de Medicina da Bahia, onde se formou.

Correspondente do psiquiatra Sigmund Freud (1856-1939) e, nas palavras de Vitor, "primeiro reformador da psiquiatria brasileira", Juliano foi diretor do Hospício Nacional de Alienados, instituição fundada por dom Pedro II e na qual Lima Barreto foi internado. O local era onde "despejavam-se" figuras indesejadas, como adictos, pobres e prostitutas.

O médico psiquiatra Juliano Moreira, que foi um dos primeiros nomes que atuou na reforma psiquiátrica no Brasil(Foto: reprodução)
Foto: reprodução O médico psiquiatra Juliano Moreira, que foi um dos primeiros nomes que atuou na reforma psiquiátrica no Brasil

"De mim para mim, tenho certeza que não sou louco, mas devido ao álcool, misturado com toda a espécie de apreensões que as dificuldades de minha vida material há 6 anos me assoberbam, de quando em quando dou sinais de loucura: deliro", escreve Lima Barreto.

O autor chega a citar nominalmente Juliano Moreira, recontando um encontro cordial dos dois: "Tratou-me com grande ternura, paternalmente, não me admoestou, fez-me sentar a seu lado e perguntou-me onde queria ficar". Como Juliano, contemporâneos e discípulos como Ulysses Pernambuco, Osório César e Nise da Silveira, trabalhavam "de dentro" pela luta antimanicomial.

"Esse pessoal estava trabalhando dentro, vendo doentes morrendo. O resultado de inquisição, prisão, encarceramento em massa, hospício — é tudo a mesma coisa — é a alta mortalidade. São uma ferramenta de mortalidade, de sacrifício de setores da nossa população para manter a 'ordem pública' opressiva e doentia", define Vitor.

"O manicômio é um modelo científico, uma visão de mundo, uma maneira de tratar as pessoas e 'queimar a bruxa' — com fogueira, drogas em alta dose, eletrochoques, métodos agressivos, assim renovando o pacto macabro e traumático que caracteriza nossa sociedade e que Freud chamou de psicopatologia da civilização", segue.

"Os grandes nomes da arte da psiquiatria brasileira do século XX e início do século XXI trabalharam com formas dialógicas de comunicação e arte e, por isso, emanciparam pessoas com diagnósticos muito violentos. Isso é a efetivação de uma psiquiatria científica, médica, humana e que não seja manicomial", aponta Vitor.

Com os acúmulos das contribuições de pioneiros já citados e, ainda, nomes como Lygia Clark, Lula Wanderley, Ray Lima, Vera Dantas e Paulo Delgado ao longo do século XXI, conquistas concretas foram sendo efetivadas, culminando na efetivação da lei nº 10.216, que instituiu oficialmente a reforma psiquiátrica no País, com extinção de instituições como manicômios e a substituição delas pelos Centros de Atenção Psicossocial (Caps). A sanção da lei, porém, só foi efetivada em 2001.

"Tudo isso é o esforço organizado da sociedade brasileira em múltiplos grupos e coletivos buscando afinar uma política de promoção de saúde mental", resume Vitor. "Temos muito material e experiências gloriosas nesse campo e devemos trabalhar a luta antimanicomial como uma luta pela liberdade de pensamento, de diálogo, de expressão e por uma sociedade menos padronizada e ditatorial", finaliza.

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