Apesar das conquistas e exemplos que comprovam o êxito da imbricação dos campos da saúde mental e da arte, o cenário prático de atenção psicossocial ainda tem demandas centrais em aberto. Especialistas destacam a importância do fortalecimento e alargamento de políticas públicas antimanicomiais.
O psiquiatra Vitor Pordeus atuou na Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro entre 2009 e 2017 como fundador e coordenador do Núcleo de Cultura, Ciência e Saúde do órgão. A partir das ações de promoção de saúde mental comunitária, fundou projetos como o Hotel da Loucura, a Universidade Popular de Arte e Ciência e a Teatro Clínica DyoNises.
PARTE 1 | Luta antimanicomial e arte: espelhos da sociedade
"Realmente acreditamos no método de promoção de saúde mental que a doutora Nise (da Silveira) prescreve. (As experiências) mostraram como é possível promovê-la através da construção cultural, do convívio da comunidade, da ocupação do espaço público e comunitário", aponta Vitor.
Ele cita um dos mais reconhecidos nomes da reforma psiquiátrica e luta antimanicomial do Brasil no século XX. Alagoana, Nise da Silveira (1905-1999) foi uma autodenominada "psiquiatra rebelde", além de discípula e correspondente do psiquiatra Carl Gustav Jung (1875-1961).
Na atuação profissional, estabeleceu a Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação (Stor) do Centro Psiquiátrico Pedro II, que teve como um dos vários frutos o Museu de Imagens do Inconsciente (MII), que reúne obras de artistas internados no local. Na prática, comprovou efeitos antipsicóticos em tratamentos de saúde mental com arte.
Vitor, na prática recente que tem, também cita casos exitosos neste sentido. "Vimos pessoas voltarem a se relacionar, trabalhar, viajar, estudar, morar sozinhas, retomar efeitos duradouros de ganho de autonomia psicológica", compartilha.
"Quando falamos sobre arte e saúde mental, estamos falando sobre pedagogia da autonomia e promoção de saúde mental. Temos que usar terapêuticas culturais, artísticas, comunitárias, de mobilização. A relação entre arte e uma sociedade menos manicomial é muito grande e muito importante", frisa o médico.
No contexto local, a 2ª Parada do Orgulho Louco, promovida na Praça do Ferreira nesta quinta, 18, pelo Fórum Cearense da Luta Antimanicomial, ganha tons políticos. "A manifestação é para celebrar a data e denunciar o descaso com a Política de Saúde Mental do Ceará", destacam Cláudia Freitas de Oliveira e Núbia Dias Costa Caetano, membros da organização.
Elas citam, entre outros pontos, falta de profissionais especializados, fechamento de unidades de saúde mental para usuários de álcool e drogas, ausência de atendimentos de prevenção e promoção de saúde mental em UAPs e atraso na convocação para o cadastro de reserva da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) de Fortaleza.
Em menos de três meses, duas unidades de saúde da Prefeitura de Fortaleza foram interditadas pelo Conselho Regional de Medicina do Estado (Cremec) do Ceará por “extremo grau de deterioração da estrutura física”, incluindo o Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps) do bairro Sapiranga.
"A gente ainda precisa avançar muito, em todos os sentidos, para que os Caps realmente sejam um serviço com muito mais interação comunitária, com mais arte, mais vida", aponta Eliza Gunther, coordenadora da Fundação Silvestre Gomes — que realiza iniciativas ligadas à saúde mental, como a promoção do bloco de carnaval Doido é Tu!, formado por pessoas atendidas em Caps de Fortaleza, além de amigos e profissionais da saúde.
"A importância da luta antimanicomial hoje justifica-se, entre outros motivos, pois, ao contrário do que erroneamente algumas pessoas pensam, os manicômios não são estruturas obsoletas e vinculadas ao passado. Eles estão ainda presentes na sociedade, com novas roupagens, mas com a reatualização das mesmas práticas violadoras dos direitos humanos", ressaltam Cláudia e Núbia.
"A promoção da saúde mental tem a ver com participação, com se sentir participante, cocriador e coorganizador da própria realidade. Isso é tudo que falta numa sociedade de massas, alienada, onde as pessoas estão sendo tratadas mais como objeto de dominação do que efetivamente estimuladas à reflexão e ao diálogo. O impacto da arte e da saúde mental é a prevenção de doenças, um viver com mais qualidade, sentido e significado", dialoga Vitor, que aponta a noção antimanicomial para além do campo da saúde.
“A luta antimanicomial está dentro de nós, nas nossas práticas, na nossa maneira de dialogar consigo próprio e com o outro. Se a gente está sendo violento, monológico, invasivo, sem escuta, sem capacidade de reformulação, compreensão, cooperação, a gente está trabalhando para a inquisição, para o manicômio”, reflete.
"De portas abertas para a saúde mental"
Nesta quarta, 17, a partir das 10 horas, o Theatro José de Alencar recebe edição especial do Theatro de Portas Abertas, em alusão ao dia da luta antimanicomial.
A programação é promovida pela Fundação Silvestre Gomes com o Fórum Cearense da Luta Antimanicomial e apoio das universidades Federal e Estadual do Ceará, do Movimento de Saúde Mental do Bom Jardim (MSMBJ) e unidades do Caps.
A atividade, aponta a coordenadora Eliza Gunther, tem como função a criação de um espaço "onde as pessoas com transtorno mental ou sofrimento psíquico possam mostrar o fazer artístico". A partir disso, mostra-se à Cidade que elas "não são apenas o diagnóstico, que ali tem um ser humano completo, com potencialidades". "Há um viés pedagógico e também o da quebra de preconceitos, na possibilidade de criar novos paradigmas de uma sociedade mais inclusiva, tolerante e empática", afirma.
A programação irá contar com oficinas, debates, práticas integrativas e apresentações artísticas, propondo momentos de cuidado e, ainda, de sensibilização e reflexão de poder público e sociedade civil sobre a importância do fortalecimento das políticas públicas de saúde mental e atenção psicossocial.
Ponto de vista: cura na cooperação
A primeira vez que ouvi falar da médica psiquiatra Nise da Silveira, em 2013, senti uma conexão tão grande com a trajetória da alagoana e, dali, realizei a pesquisa "Se cuide-me: retratos da saúde mental brasileira".
Esse interesse me levou ao conhecimento dos trabalhos de Vitor Pordeus, Ray Lima, Vera Dantas, Rafael Baquit e tantos outros discípulos da doutora Nise no Brasil. Com eles, pude contemplar o poder de transformação do ser humano pelo uso da arte e da cultura como estratégias de cuidado.
Vi coisas extraordinárias acontecerem em projetos como o Ocupa Nise e o Hotel da Loucura, em alguns hospitais psiquiátricos, em CAPs e em movimentos de saúde mental por todo o país. Acredito no afeto revolucionário de Nise porque senti de perto o que seu método trouxe à vida de pessoas em sofrimento psíquico ou com múltiplos modos de existência.
Infelizmente, fomos nos acostumando com a reprodução de discursos competitivos e imagens violentas, adoecemos coletivamente. A sociedade, em sua estrutura manicomial, prega o isolamento e a segregação. Mas a nossa cura só poderá surgir na cooperação. É urgente a ruptura com os padrões antigos para a criação de novos, abraçar uma reforma que traga um lugar social de dignidade a todos.
Nise já abriu o caminho. Cabe-nos agora a decisão de trilhá-lo juntos. Construir novas possibilidades de vida dialogando, respeitando e evoluindo, sempre.
Maria Babini, redatora do O POVO, artista e jornalista, pesquisa temas relacionados à saúde mental e, atualmente, escreve a versão atualizada do livro-reportagem "Se cuide-me"