“A ideia é que ‘Bonito Pra Chover’ instaure o novo, acirre discussões e provoque o estranhamento, a partir do título, que foge do sol, das secas, da coragem, do exílio e dos determinismos, para trabalhar, metaforicamente, com a expectativa de uma mudança para valer (e não de mais um recurso à retórica publicitária)”.
Em 2003, o pesquisador, escritor e jornalista Gilmar de Carvalho decidiu realizar “um guia/mapa” para se compreender o Ceará, promovendo uma obra que superasse o senso comum sobre o Estado. Assim, com publicação das Edições Demócrito Rocha (EDR), surgiu o livro “Bonito Pra Chover - Ensaios sobre a cultura cearense”.
No livro, 26 autores apresentam ensaios sobre a cultura cearense e buscando “desmontar” verdades absolutas, como “os estereótipos da hospitalidade, da irreverência e da ‘Terra da Luz’”. “Terá atingido os seus objetivos se provocar reflexões, polêmicas, contribuindo para que o Ceará seja cada vez mais estudado, sem bairrismos que empobrecem e sem xenofobismos que deformam”, escreveu Gilmar.
Vinte anos depois, a obra segue sendo reverenciada pelas discussões propostas. Como o próprio organizador desejou, a coletânea tornou-se um “caleidoscópio”. Nomes como Kênia Sousa Rios, Gabriela Frota Reinaldo, Lígia de Oliveira Sales, Régis Lopes e Custódio Almeida.
Dodora Guimarães, curadora de arte, é uma das vozes participantes do livro. Ela escreveu “Sol Oblíquo”, texto no qual fala sobre o início do Museu de Artes da UFC e o envolvimento do escultor Sérvulo Esmeraldo com o equipamento a partir de pesquisas, contribuições e coleções. Dessa forma, trata das artes plásticas no Ceará tendo Sérvulo como elemento central.
Um dos temas trabalhados ao longo do livro é a percepção sobre a imagem, discussão proposta pelo fotógrafo, pesquisador e atual diretor do MIS, Silas de Paula. No artigo “Culturas de Visão: Bandeira e a Construção do Eu Imaginado”, ele analisa instantâneos familiares e o desejo de construção de um “eu imaginado” em fotos do artista plástico cearense Antônio Bandeira.
“Eu toquei na figura do Bandeira como cearense que sai do País e retorna ao Ceará. Então, você tem uma uma relação com esse senso comum dos estereótipos que a gente vivencia o dia inteiro pela mídia ou por pessoas de fora com esse olhar estereotipado do Ceará e que o Gilmar coloca em xeque. Ele propõe isso aos autores. Eu acho que isso nos dá uma visão completamente diferente”, argumenta.
Para Silas de Paula, houve mudanças de comportamento em relação aos conceitos vistos na obra. Hoje, analisa, cearenses estão menos cordiais. O jornalista e professor Ronaldo Salgado também aponta mudanças nos últimos 20 anos do lançamento - “afinal, a cultura é dinâmica”.
“As transformações trazidas no bojo das novas tecnologias de informação e comunicação impactam não só a cultura, mas a economia, a arte, a política, as sociabilidades, o cotidiano, as comunicações e todo o estuário da vida”, enfatiza.
Em seu texto, o jornalista faz um apanhado histórico baseado nos 180 anos da imprensa cearense, selecionando jornais importantes na história da imprensa do Estado, como o Diário do Governo do Ceará, na época da Confederação do Equador.
Para ele, o livro “tem um lugar cativo na cultura cearense” e contribui para os debates “ante o leque transdisciplinar dos textos e das reflexões”, ainda que não considere que tenha “uma importância capital”. Contudo, toda a trajetória de Gilmar de Carvalho é “de uma relevância inestimável” para o Ceará, para o Nordeste e para o Brasil.
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Falar sobre “Bonito Pra Chover”, entretanto, não é apenas tratar sobre os textos reunidos pela obra. Afinal, o livro transmite suas mensagens por completo - o que inclui o processo de design do livro e da capa, pensado “cuidadosamente” e “levando em consideração diversos aspectos para obter o resultado final”.
A situação é compartilhada pelo designer Deglaucy Jorge, atualmente gerente educacional da Universidade Aberta do Nordeste (Uane), braço da Fundação Demócrito Rocha (FDR) destinado a cursos. Ele trabalhou no projeto gráfico do livro. “A ideia era criar uma experiência semiótica por meio do projeto gráfico, trazendo a essência do sertão do Ceará, especialmente em relação à percepção da chuva”, indica.
Assim, foram feitas conversas sobre as experiências comuns no sertão, “principalmente a forma como o sertanejo percebe a chuva, o clima, o cheiro e todas as sensações relacionadas”. Inicialmente, o objetivo era mostrar a visão do sertanejo com a mão na testa, olhando para o horizonte e sentindo os primeiros pingos de chuva e o cheiro da terra molhada.
As fotos feitas por Deglaucy na cidade de Monsenhor Tabosa, porém, não seriam suficientes para transmitir as sensações desejadas. Assim, foi utilizado o verniz texturizado, por meio de fotolito, para representar os pingos de chuva. No interior do livro, a cor amarela foi um recurso para representar o calor e o sol do sertão.
“Bonito Pra Chover” foi o quarto livro de Gilmar de Carvalho “feito” pelo designer para as Edições Demócrito Rocha. Nesse, especificamente, o contato entre ambos foi “bastante próximo e significativo”. “Conversávamos muito sobre elementos simbólicos da nossa cultura, o que despertou ainda mais meu interesse pela Semiologia. Gilmar foi uma inspiração para aprofundar meus estudos e pesquisas nessa área”, revela.
Deglaucy acredita que, se estivesse vivo, possivelmente o pesquisador estaria organizando um segundo volume da obra, explorando outros aspectos da cultura cearense. O sentimento é parecido com o de Romeu Duarte, professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC e cronista do Vida&Arte.
“Sempre tive uma grande admiração e um imenso respeito pelo Gilmar e pelo seu trabalho. Ainda tinha muito a produzir”, alega. Romeu é um dos autores presentes no livro e escreveu o texto “O Ceará e o Patrimônio Cultural”, no qual buscou não apenas apresentar o estado da arte das expressões culturais cearenses “como também suas oportunidades, fraquezas e ameaças, mostrando ainda seu potencial e suas perspectivas”.
Para Romeu, a obra tem “grande mérito” ao discutir alguns estereótipos sobre a cultura cearense, como a hospitalidade e a “inexistência de patrimônio cultural”. É, também, uma forma de “ver o que somos de forma corajosa e desabrida na busca de construir um panorama que nos revele e que aponte possibilidades”.
Na época, foi o primeiro artigo de Romeu publicado em um livro, quando era superintendente do Iphan no Ceará. “Acho que o Gilmar, com o livro, abriu portas para uma série de intelectuais e pesquisadores novos na cena cultural cearense. Novas vozes, novas idéias, novos olhares”, afirma.
Vinte anos após o lançamento, “Bonito Pra Chover” mostrou “as possibilidades da cultura cearense como meio para melhorar a vida das pessoas”, na avaliação do arquiteto. Ele analisa que, hoje, a cultura ainda é vista como algo acessório e, no âmbito patrimonial, a área ainda está “patinando”, com necessidade de salvaguardar “muita coisa em uma perspectiva de novos usos e integração”.
“Mesmo assim, entendo que o recado foi dado e, de alguma forma, as coisas melhoraram um pouco. Mas estamos falando de ações que deveriam partir do público e do privado. Um livro sozinho não tem o condão de mudar as coisas, mesmo sendo um Bonito pra Chover”, complementa.
Dodora Guimarães aponta a importância de uma nova publicação ampliada de “Bonito Pra Chover”, reunindo novos autores e abordando temas da atualidade. “Temos novos pensadores, cientistas sociais e escritores com vozes muito potentes. Acho que precisamos cada vez mais de reflexões sobre a cultura cearense”, compreende.
Bonito Pra Chover
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