Aos 71 anos, Vera Fischer se norteia por um desejo: manter-se uma mulher do presente. "Eu tenho um passado que faz as pessoas ficarem curiosas para saber o que eu vou apresentar agora", aponta a atriz, que vem a Fortaleza nesta semana com a peça "Quando Eu For Mãe Quero Amar Desse Jeito".
Longe das televisão, plataforma na qual brilhou como Jocasta, em "Mandala" (1987), e Helena, de "Laços de Família" (2001), Vera encontra nos palcos (e no próprio perfil do Instagram) contato direto com o público. Em entrevista ao O POVO, a artista destaca os preconceitos que encarou no início da carreira e festeja o momento de retomada que a cultura brasileira vive em 2023.
O POVO - Como a menina criada em família com raízes germânicas se tornou artista?
Vera Fischer - Eu nasci em Santa Catarina, em Blumenau, de família germânica. A minha infância e a minha adolescência foram muito boas. Era uma época diferente, anos 1950, início dos anos 1960. Havia para nós, que vivíamos em cidade de interior, muita liberdade e meus pais sempre foram muito corretos. Eles trabalhavam juntos e me deram uma vida muito boa de estudos. Quando eu fui para o Rio de Janeiro foi através do concurso de miss aos 17 para 18 anos. Aí, eu comecei logo e ingressei na minha carreira no cinema. Depois a televisão e, só aos 30, eu comecei no teatro.
O POVO - Ao longo de mais de cinco décadas de carreira, como você encarou de frente preconceitos e assédios?
Vera - Nos anos 1970, a gente tinha um uma coisa machista muito, muito forte. Com os filmes que eu fazia com pouca roupa, criaram de mim um símbolo sexual, que é uma coisa que, absolutamente, eu não sou. Muito pelo contrário, eu era a mais intelectual, a mais cabecinha, mas é meu trabalho. Trabalho você não recusa, você vai e faz, porque você está iniciando a sua carreira artística, né? Eu sofri um pouquinho, mas a cabeça de germânico é um pouco mais fria. A gente passa por essas coisas e não se abala muito, entendeu? Mas havia, sim, o machismo declarado e avanços de pessoas (em cima das atrizes), isso acontece até hoje. Muito. Mas naquela época era violento e também havia uma censura política muito forte nos anos 1970. Os filmes que a gente fazia eram muito cortados. Às vezes, o texto e, outras vezes, as imagens. A gente teve de passar por tudo isso e, mesmo depois, se alastrou pelos anos 1980 e 1990 na televisão, no cinema e até no teatro. Quem consegue sobreviver a tudo isso e a cabeça não está doente tem um grande trunfo. Com esse trunfo, tem como sair dessas situações terríveis, mas tem gente que não consegue. Agora, depois que foi criado o movimento Me Too, as pessoas são punidas por isso..
O POVO - Ainda nesse começo, na novela "Coração Alado" (1980), você já tratava de temas sociais nas produções, naquele caso era a violência sexual. Tocar nas feridas sociais é uma missão para você enquanto artista?
Vera - Médio, né? A gente tem tanta coisa com que se preocupar hoje em dia. Homofobia, racismo, sexismo… Tem milhões de coisas com as quais a gente se preocupa e a gente fica muito irritada, porque essas coisas não param. Então assim, eu não sou uma pessoa que levanto bandeiras, eu não saio correndo atrás para defender isso, isso e aquilo. É um conjunto de coisas. Eu me rebelo contra uma série de coisas. Todas as vezes que eu posso usar as redes sociais para me pronunciar, eu faço isso.
O POVO - Você sempre teve a sinceridade e a liberdade de expressão como marcas…
Vera - Se você começa a mentir na sua vida, as pessoas vão descobrir coisas lá atrás e, até você morrer, as pessoas vão mencionar coisas que elas descobrem. É melhor você ser clara, honesta, sincera, corajosa e livre.
O POVO - Mas, nas primeiras décadas da sua carreira, você não tinha a própria rede social para se posicionar. Você avalia que, ao longo da carreira, usaram sua imagem de maneira que você não concordava?
Vera - Acho que a partir da hora que você concorda (em falar), você não pode voltar atrás. Se você concordou, assinou um contrato, paciência se aquilo ali não agrada a gregos e troianos. A gente tem que saber que é assim que é. Eu nunca fiquei doente de cabeça por causa dessas coisas não.
Antigamente você não podia se defender muito, porque as revistas, jornais e outros órgãos de imprensa colocavam o que eles queriam. E como é que você ia se defender daquilo? Agora tem o Instagram.
O POVO - Ao longo das décadas, você viveu personagens icônicas na TV. O que você avalia como o melhor e o pior que a experiência com as novelas deu para você?
Vera - Eu tinha feito um pouco de SBT e umas outras televisões, mas entrei na Globo com 26 anos, ou seja, em 1976. Eu comecei fazendo novelas e logo fui alavancada à atriz principal. Fiz muitas minisséries muito incríveis, personagens que eu me orgulho de ter feito. Nos últimos anos, pouco antes da pandemia, os personagens já não eram mais tão maravilhosos, mas eu passei 45 anos na televisão. Então, eu aprendi muita coisa e, aonde eu vou, o povo se lembra das coisas boas e importantes que eu fiz.
OP - O mercado audiovisual mudou muito e grandes artistas já não têm mais contratos fixos com as emissoras. Como você interpreta o atual momento da indústria cultural?
Vera - Agora você tem que fazer, em primeiro lugar, as coisas que você gosta de fazer, se sente bem. Dizem que a memória do brasileiro é muito fraca, ela é, mas os brasileiros lembram (de mim), porque eu comecei a viajar desde os 30 anos com várias peças. Então, por mais que as pessoas fossem crianças ou nem tivessem nascido, os pais lembram e levam a família toda, eles lembram que eu fiz muita coisa boa e pensam em voltar a ver os trabalhos porque acham que tem qualidade, porque você não pode viajar com uma peça, de repente, de uma hora para outra, sem nunca ter mostrado nada. As pessoas ficam desconfiadas. Então é muito bom você ter um histórico antes de viajar e tentar ir para todos os lugares. É aquilo, né? Você vai onde o povo está, você leva a cultura aonde o povo está.
OP - Mas faz falta o conforto do vínculo com a emissora?
Vera - No seu Instagram são as suas regras. Ali você posta o seu texto, as suas fotos, é o seu, entendeu? Agora a informação viaja rápido, mas existem coisas ruins em todas as épocas em todos os veículos. Porque no Instagram existe a fake News, existe a mentira, as pessoas postam bobagem, mas tudo isso sempre aconteceu e vai sempre acontecer. Enquanto nós formos atores, tivermos a nossa profissão. Seja no circo, no cinema, na televisão, a gente tem um poder nas mãos, porque a gente trabalha. Tem gente que se aposenta e não quer mais trabalhar, não é o meu caso. Aí eu aproveito as redes sociais. Eu não tinha celular até três anos atrás. Então, de repente, eu entrei num com muita fúria nas redes sociais. Foi muito bom porque alavancou uma coisa que estava meio parada. Milhões de fãs-clube se abriram e me seguem pelo Brasil afora. Isto é muito muito bom.
Mostra que você agrada essas pessoas. Novela passa todo ano, série passa todo ano e se você ainda por cima ainda viaja com a peça... As pessoas vão lá porque é outra parada, eu acho que é fascinante.
O POVO - A passagem aqui em Fortaleza da peça "A primeira noite de um homem" foi marcante em 2004 também por conta da sua nudez em cena. A nudez ainda é um tabu para o povo brasileiro?
Vera - A gente morava numa casa de três andares em Blumenau e meu pai, minha mãe e todo mundo andava nu. Não havia essa conotação do corpo nu com sexo. Não havia essa aliança. Então, eu cresci assim. Para mim, não era tão traumático ficar seminua nos filmes e nunca foi. Claro, tem de ter uma dose de coragem muito grande e de liberdade. Sou eu, tô fazendo meu trabalho, que falem o que quiserem.
Hoje em dia as pessoas ficam nuas com muita facilidade, muitas bundas, muito não sei o quê e todo mundo adora acha maravilhoso. As coisas mudaram nesse sentido, né? Hoje em dia é um elogio a pessoa que tem um bundão e mostra. Antigamente, a gente era tratada como prostituta, só que não. Essa peça ("A primeira noite de um homem") foi muito boa. Eu fiquei nua porque a peça nos Estados Unidos tinha essa nudez e o diretor perguntou se eu queria fazer ou não. Eu quis fazer com uma luz muito bonita do Maneco Quinderé e foi super rápida também.
O POVO - Na série "Agosto", por exemplo, você deu vazão ao drama. Já em "O Clone", foi destaque com a comédia. O que mais te seduz entre os diferentes gêneros da dramaturgia?
Vera - Eu gosto dos dois extremos. Quando eu fiz a Ana de Assis (na série "Desejo", de 1990) era uma tragédia, não era nem drama, era tragédia mesmo. Eu adoraria fazer uma personagem de pé no chão, sem maquiagem, sem cabelo. Se for pra pintar o cabelo de preto, qualquer coisa, a gente faz. Uma brasileira mais brasileira. Enquanto isso, a gente vai fazendo coisas universais
O POVO - Você revela esse lado eclético no Instagram. Do mesmo jeito que você indica a animação do "Homem-Aranha", você indica a leitura mais erudita. Como essa mistura se reflete em você?
Vera - Eu comecei no meu Instagram porque eu tenho coleção de DVD. Então eu falo muito sobre cinema. Vou ao teatro, falo das peças, falo de show. Isso é para as pessoas entenderem que você é um artista eclético. Não só fica numa coisinha só.
O POVO - Recentemente você se despediu da Lea Garcia, da Aracy Balabanian em homenagens no Instagram. O que o olhar para a morte provoca em você?
Vera - Eu vou fazer 72 anos, então, eu conheci muito essas pessoas. Trabalhei muitas vezes com muitas dessas pessoas que já se foram embora. É importante você fazer uma homenagem muito bonita, se despedir. Destacar o que essas pessoas fizeram, te ensinaram, conviveram com você.
O POVO - O Ministério da Cultura está de volta. Como você defenderia esse órgão para um brasileiro que seja oposição ao atual Governo Federal?
Vera - Quando acabo a apresentação de um espetáculo, eu faço um agradecimento ao público da cidade e eu faço sempre um convite para que as pessoas assistam às peças de teatro, que elas curtam a cultura, que ela se orgulhem de que ainda existe culturas nesse País, apesar de a gente ter perdido quase tudo, mas tudo está voltando com muita força, entendeu? A gente tá no meio de tudo isso. A gente vai sempre defender a cultura, não tem como não. É minha cabeça, é o meu físico, é o meu pensamento, emocional, tudo isso tem cultura no meio, senão a gente não vive. O povo precisa de cultura e de entretenimento.
Quando eu for mãe quero amar desse jeito
Quando: 8 e 9 de setembro, às 19 horas,
e 10 de setembro, às 18 horas
Onde: Cineteatro São Luiz (Rua Major Facundo, 500 - Centro)
Quanto: ingressos a partir de R$ 82,00 (meia); vendas pelo sympla