Entre os 30 museus vinculados ao Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), 76,6% são hétero-centrados, 63,3% são dedicados à branquitude e 83,3% são justificados por intermédio de vínculos às elites nacionais. É o que informa estudo feito em 2022 pelo grupo de pesquisa Museologia e Sexualidade (MusaSex/CNPq) dentro das organizações museológicas. As referências estão registradas no livro "Museologia Comunitária LGBTQIA e Outros Ensaios Queer Interseccionais", coletânea que reúne dez artigos sobre a temática.
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O material é organizado pelo doutor em Comunicação e mestre em Antropologia, Tony Boita, e pelo doutor e mestre em História Ibero-Americana, Jean Baptista, ambos docentes no bacharelado em Museologia da Universidade Federal de Sergipe. Os percentuais indicam que a museologia brasileira segue sendo erguida a partir de metodologias sustentadas em "viés excludente" que prioriza, majoritariamente, homens heterossexuais, brancos e burgueses.
"Não podemos esquecer que a própria museologia foi criada dentro de um contexto fóbico para as pessoas LGBTQIA . Estamos falando de uma categoria de teorias e práticas construídas dentro de uma LGBTfobia institucional de muitos anos", aponta Tony.
A falta de visibilidade da comunidade nestes espaços motivou a criação do projeto "Memórias LGBTQIA ", que completa uma década em 2023, a partir da constituição da Rede LGBT de Memória e Museologia Social. O projeto originou uma série de ações voltadas para pessoas LGBTQIA , entre elas a inauguração do Museu da Diversidade Sexual (São Paulo), a elaboração da Revista Memórias LGBTQIA e a 17ª Primavera dos Museus com o tema "Memórias e Democracia: pessoas LGBT , indígenas e quilombolas".
"Há dez anos, os museus, em grande maioria, não queriam discutir e debater esse tema. Começamos a publicar em revistas impressas e exposições estratégias de preservação", recorda. Assim, foram desencadeadas atividades realizadas em conjunto com coletivos, a exemplo da parceria com a comunidade da favela Pavão, Pavãozinho e Cantagalo (PPG), no Rio de Janeiro, por meio do Museu de Favela (MUF) em 2015.
A aproximação tornou ainda mais evidente a necessidade da expansão do conceito de museologia comunitária LGBTQIA+ , que se fortalece no intuito de "viabilizar e garantir direto à memória de grupos historicamente excluídos, em especial pessoas LGBTQIA , pretas, indígenas, quilombolas e com deficiência".
O movimento se mostra urgente quando o Brasil avança em passos lentos na representação da diversidade na esfera museológica. Segundo números retirados do livro, apenas 41 iniciativas são direcionadas a questões LGBTQIA+ dentre os mais de 3 mil museus do País.
"Nós conseguimos fazer com que esse projeto tivesse visibilidade, mas ainda não conseguimos mudar a cara dos museus convencionais e potencializar que esses espaços possam não ser só de exposição, mas de resistência, direito à história e à dignidade humana. Nós tivemos também muitos retrocessos. Há abertura cada vez maior, no entanto sempre sazonal. Nós precisamos de políticas públicas para a promoção da memória LGBTQIA ", enfatiza.
Os locais que deveriam acolher corpos dissidentes são aqueles que, muitas vezes, também os reprimem. Boita lista os ataques verbais e físicos recebidos ao longo da jornada, além das instituições que fecharam as portas para o projeto sob alegações de que a pauta não estava dentro das missões de alguns institutos.
"Nós temos um alto índice de violência às pessoas LGBTQIA+ e os museus também são responsáveis. Se eles não estão promovendo a memória, a história e o patrimônio desses grupos, o resultado está na sociedade. Os museus estão fazendo o que por isso? São espaços que, muitas vezes, quando se adentra, também colocam como a sociedade está estabelecida".
À vista disso, ele defende o uso de uma nomenclatura única e oficial para o novo modelo que se desenha. "É uma forma de resistência fazer essa denominação e uma forma pedagógica de garantir que as autorias desses profissionais e pesquisadores possam utilizar essa categoria que tem uma metodologia e dinâmica própria. Nós estamos falando que até aqui existiu uma museologia LGBTfóbica. A partir daqui há uma museologia que quer superar tudo isso", elabora.
É importante destacar que a museologia comunitária LGBTQIA é um conceito brasileiro que ressalta a interseccionalidade e, assim como ações similares de demais países da América Latina, segue muito mais arquivos e documentos do que museus propriamente ditos. "A grande diferença é que aqui nossas iniciativas são populares, feitas por pessoas periféricas. É uma museologia muito mais comunitária e colaborativa. Tem essa característica do coletivo, colaborativo e afetivo", considera Tony.
Com a falta de apoio de entidades oficiais, a comunidade cria mecanismos e articulações para desenvolverem os próprios projetos. Com base em mapeamentos traçados ao longo destes dez anos, é possível observar feitos da vertente em todos os estados, como o Museu da Sexualidade da Bahia e o Ponto de Memória LGBT em Alagoas.
"Há uma série de ações comunitárias no Brasil todo, físicas e híbridas. Nós continuamos resistindo. Se eles (museus) não querem nossos corpos, não vamos ficar só batendo na porta. Nós também vamos criar nossas iniciativas. É o que estamos fazendo".
Relatório dos Museus
Apenas 3,3% (1/30) dos museus Ibram incluem em sua missão a categoria "diversidade sexual e gênero"
Apenas 3,3% (1/30) dos museus Ibram se dedicam a indígenas
Apenas 3,3% (1/30) dos museus Ibram se dedicam à população afrodescendente
Dados retirados de pesquisa descrita no Relatório Sexualidade, Gênero, Raça e Classe no Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), catalogada no livro "Museologia Comunitária LGBTQIA"
Museu da Diversidade Sexual
Criada em 2012, a organização dialoga com movimentos sociais LGBTQIA+ e propõe o debate acerca da diversidade sexual. É, também, a organização responsável pelo lançamento do livro "Museologia Comunitária LGBTQIA+ e Outros Ensaios Queer Interseccionais".
Museologia Comunitária LGBTQIA
Com o marco de dez anos do projeto "Memórias LGBTQIA+", a iniciativa lança coletânea sobre a temática com textos que falam sobre as trajetórias da museologia comunitária LGBTQIA+ no Brasil, além de estudos sobre covid-19 e HIV/aids e pesquisas. Também prepara a divulgação da edição comemorativa da revista "Memórias LGBTQIA+" que reúne ações que serão desenvolvidas nos próximos dez anos, com foco em acessibilidade.
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