Lia de Itamaracá apareceu sorridente na recepção do Hotel da Villa, onde ficou hospedada na Capital. A cirandeira veio para o show de encerramento do IV Seminário Sesc Etnicidades, que realizou na Estação das Artes na última sexta-feira, 10.
Usava uma blusa amarela, com estampa de flores coloridas, calça jeans, sandália rasteira e um bonito turbante adornava suas tranças. A artista de 79 anos já esteve outras vezes na Cidade, a passeio.
Tanto que confessou estar quase fazendo morada em Fortaleza, apesar de nunca ter deixado de morar na ilha de Itamaracá, onde habita desde o dia do seu nascimento.
Batizada de Maria Madalena Correia do Nascimento, Lia foi a única de uma família de agricultores a se interessar pela música. Segundo a artista, a relação com as cantigas e a dança é uma graça de Deus e Iemanjá.
A cirandeira foi descoberta por Teca Calazans e passou a ser conhecida como Lia de Itamaracá ao longo da década de 1960. Em 1977, gravou seu primeiro LP, do qual só recebeu 20 cópias e nenhuma remuneração. Duas décadas depois, em 1998, a pernambucana se apresentou no festival Abril Pro Rock, realizado em Olinda e em Recife.
O evento abriu as portas para a artista, que em 2002 lançou seu primeiro disco intitulado “Eu sou Lia”, que chegou a ser vendido na França. Confira a seguir entrevista com a artista pernambucana:
O POVO - Li um artigo sobre a senhora em que cita que foi a primeira da família a ter contato com a música e com a dança? Como essas duas linguagens entraram na sua vida?
Lia de Itamaracá - Olha, eu vim de uma família de dezoito irmãos comigo. Mas nenhum interessou-se pela música, só eu. Cansei com eles pra ver se eles entravam, mas não entrava nada na cabeça deles com isso. Meu pai era casado, tinha 11 filhos, juntando-se com a minha mãe conseguiu mais sete filhos, dezoito ao todo, para sustentar todas essas crianças na agricultura. Minha mãe estava doida para trabalhar, acabar de criar os filhos dela. Apareceu uma família perguntando se ela queria trabalhar, ela disse “eu quero acabar de criar meus filhos. O homem com quem eu morava me deixou e eu fiquei sozinha”. Aí a família disse para ela: “Você está empregada. Eu tenho um sítio com uma casinha, vou colocar você nessa casinha, nesse sítio e você vem trabalhar todo dia”. Só que ela disse que não tinha com quem deixar os filhos, mas que queria muito trabalhar. A família aceitou e disse que poderia levar a mim e meus irmãos com ela. Agora te pergunto, quem é hoje que quer uma empregada carregando sete filhos, minha filha? É difícil, né? Um já difícil e sete? Ela botou a mão pra cima e agradeceu muito a Deus. E a gente pode ir pra casa dessa família. Também não foi ninguém tomando bananinha, ninguém mamando, todo mundo foi trabalhando. Um dava o recado, outro lavava o prato , varria o quintal. E no cós da saia dela ajudando a acabar de criar a gente. Ela foi uma mãe muito constante. Nunca desprezou a gente. E uma mãe separada do homem que morava. Com sete filhos, a cabeça não dava pra nada, fazia o quê? Mas a minha mãe era muito presente para nós. Graças a Deus, meu Deus. Criou-se tudo, cada qual procurar o seu lugar pra ficar. Eu, como estava com a música, eles me seguraram logo, eu fui para essa casa com dez anos de idade.
OP - E como a sua família lidou com esse seu interesse pela música e com a sua carreira?
Lia - Eles achavam que ia ser difícil pra mim. Mas, se o que eu queria fazer e que estou fazendo o que gosto, eles não me dão distância, me ajudaram. Me apoiaram até hoje. Apesar de que já morreram, não é? Ah. Dos onze filhos que meu pai tinha casado com a mulher, só restam cinco. E do lado da minha mãe só resta eu. Deus levou tudinho.
OP - Como funciona o seu processo criativo para composição dessas músicas?
Lia - Eu inspiro minhas músicas na onda do mar na praia. Na praia, eu me sento, escrevo na areia da praia. A onda vem, eu vou fazendo. Quando a onda vai a música, já está pronta. Na beira da praia, nascem as minhas músicas. Quando são os outros pra gravar, eles passam pra mim. Mas a minha é assim, é escrita na praia.
OP - A imprensa internacional batizou seu estilo de música de "trance", como se deixasse o público em transe, em frenesi. Sim. E aí eu queria saber de onde vem essa sua energia que move ali todo público dessa forma?
Lia - A ciranda já é uma energia. O cantor já está com a energia para jogar pros fãs. A ciranda é uma dança, começa por criança. Vai os adultos, não é? E é uma música contagiante, a ciranda não tem preconceito dança todo mundo. Isso é muito importante.
OP - E como que a senhora consegue manter esse pique depois de tantos anos?
Lia - Deus dá força, e a resistência. Já estou com 79 anos, vou fazer 80 anos, dia 12 de janeiro, tenho mais de sessenta anos que estou na estrada cantando, levando a cultura pro mundo e diante dele de frente.
OP - Que forma a senhora percebe os rituais afro-indígenas dentro da ciranda?
Lia - As músicas, tem música que tem no candomblé, música de candomblé, todos têm, só não tem mãe Oxum, essa aí não pode. O meu São Jorge é outro. Tudo isso contagia e ajuda a ciranda.
OP - Alguns críticos de música já compararam a senhora com a Clementina de Jesus. O que que a senhora acha dessa comparação?
Lia - Lindo, porque Clementina de Jesus é um amor, não é? Me comparando com ela, trazendo alguma coisa dela, oxe pra mim isso é dez.
OP - Como é ter esse reconhecimento depois de tantos anos de carreira?
Lia - Foi muito importante ter esse reconhecimento tarde, mas tarde chegando lá rápido. E é isso que eu estou. E eu estou viva para ver. Não é isso? Eu viva para ver. O meu trabalho pronto, quem está gostando, quem não está, quem não vai gostar. As crianças, as próprias crianças, já começam pelas crianças. Porque tenho muito amor a criança, sou gamada por criança. E a ciranda começando por criança contagia ainda mais.
OP - E a senhora acha que ultimamente a ciranda é uma tradição que vem se perdendo ou não?
Lia - Não. A ciranda não se perde não. Porque ela une. É união. Todo mundo dessa irmã. Cada qual no seu quadrado, não é? A ciranda nunca se acaba, ela é uma constante.
OP - Nós percebemos que os seus figurinos de shows são muito elaborados. Como é escolhido o que será usado no palco?
Lia - Tem os figurinistas que me vestem. Tem do Rio, tem em São Paulo, tem e Júlio César que faz também. Tem o Breno de Recife, o Menino Rei, do Rio de Janeiro.
OP - E aí como é que a senhora fala que quer vestir ou eles já chegam com uma ideia?
Lia - Tem figurinista que me vê e já fez a roupa. Eles se inspiram em mim.
OP - E de onde vem as suas referências? Em quem que a senhora se inspira pra isso?
Lia - No amor. Alegria, muito amor, que eu gosto de me vestir bem. Eu gosto de ir para o palco e fazer o que o público gostar.
Trajetória
Descoberta por Teca Calazans, Lia de Itamaracá lançou seu primeiro LP em 1977, intitulado de "A rainha da Ciranda". Em 1998, a artista participou do festival Abril Pro Rock. A partir desse momento, a carreira dela começou a deslanchar.
Enquanto trabalhava como merendeira em uma escola estadual da ilha de Itamaracá, Lia se dedicava a compor cirandas. Em 2000, lançou "Eu sou Lia", seu primeiro CD pela Ciranda Records e reeditado pela Rob Digital.
Loas de maracatu, coco de raiz e cirandas acompanhas de saxofone e percussão faziam parte do repertório do disco. Apesar do sucesso tardio, Lia foi batizada pela New York Times de "Diva da Música Negra". Além desse álbum, a cantora lançou "Ciranda de Ritmos", em 2010.
Samba enredo
Lia será samba-enredo das escolas de samba Império da Tijuca, do Rio de Janeiro, e, Nenê de Vila Matilde, de São Paulo, no carnaval de 2024. As composições trazem a história de vida da “rainha da ciranda”.
Com o samba “Sou Lia de Itamaracá, cirandando a vida na beira do mar”, escrito por Júnior Pernambucano, a Império da Tijuca desfila em 9 de fevereiro na Sapucaí. A composição é assinada por Eduardo Katata, JC Couto, Henrique Badá, Ferreti da Ponte, Sérgio Gil, Gilsinho Oliveira, Gabriel Machado Charuto e Gabriel Cascaro Gavião.
A letra de Vila Matilde intitulada de “Cirandando a vida pra lá e pra cá, sou Lia, sou Nenê, sou de Itamaracá”, com utoria de Kaska, Léo do Cavaco, Silas Augusto, Luís Mancha, Dr. Elio, Vitão e Bruno Giannelli.
Carreira internacional
Em maio deste ano, Lia de Itamaracá realizou show com o cantor estadunidense, Jon Batiste. O artista já havia falado em público que gostaria de tocar com a pernambucana, em abril de 2023, com quem tem mantido contato desde 2021.
Os dois fizeram apresentações no Rio de Janeiro e em São Paulo, onde cantaram “Janaína”, canção que homenageia a Iemanjá, orixá de quem Lia é ilha. “Meu São Jorge”, “Ciranda sem fim” e “Quem me deu foi Lia” também compuseram o repertório das noites nas capitais brasileiras.
Em ambas as apresentações, Baptiste tocou piano para Lia cantar. Ao falar do seu contato com a música brasileira, ele revelou que gostaria muito de tocar com a cirandeira, em entrevista à Folha de São Paulo, em abril de 2023.
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