Ao longo de 2023, os usos da inteligência artificial (IA) em diferentes esferas da criação humana dividiram opiniões. O ChatGPT seria inimigos do escritores? “Ressuscitar” artistas por IA é profanar trajetórias? Essas inquietações atravessaram em cheio o pesquisador Renato Gonçalves, doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP), que acaba de lançar o livro "CR(IA)ÇÃO - Criatividade e Inteligência Artificial".
"As tecnologias não são boas, nem más, nós é que damos sentido a elas”, elabora o autor. Professor do curso de Comunicação e Publicidade da ESPM-SP, ele defende ser preciso compreender que a IA "não é um ente, ela não faz nada sozinha”. “Nada pode ser feito pela inteligência artificial, mas, sim, com inteligência artificial", afirma.
Nas últimas semanas, o debate sobre o uso da IA em obras artísticas ganhou um novo capítulo no debate público brasileiro após uma edição de "Frankenstein", produzida com essa tecnologia, ser indicada à categoria de Melhor Ilustração do ano do 65º Prêmio Jabuti. A obra, porém, acabou deixando a competição após o tema suscitar críticas nas redes sociais.
A Câmara Brasileira do Livro, responsável pelo Prêmio Jabuti, resolveu retirar a obra da competição. Em nota pública, a organização do evento explicou: "A avaliação de obras que utilizam IA em sua produção não estava contemplada nessas regras (do Jabuti)".
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"As competições devem começar a calibrar seu olhar para julgar por outros critérios, que não só o virtuosismo, mas também a intencionalidade artística, a mensagem, se tiver, o uso de referências", reflete Renato, ampliando as possibilidades do uso de inteligência artificial em obras artísticas.
Para Gonçalves, é importante balizar a apreciação de uma obra repensando “o que cobrar no sentido dos meios, mas sobretudo dos fins, das intencionalidades, independentemente do percurso escolhido por um artista”.
"É aquela velha discussão que sempre existiu: 'O que é arte? O que não é arte?'. No campo das artes plásticas vemos muito isso com a chegada da IA", aponta o pesquisador, que é membro do Grupo de Estudos Semióticos em Comunicação, Cultura e Consumo da ESPM-SP.
Renato afirma ainda que a desclassificação da capa produzida com inteligência artificial é equivocada. "Seria importante repensar os critérios de avaliação. Por exemplo, nenhuma capa que use Photoshop pode ser digna de um prêmio? As categorias das premiações que devem acompanhar as mudanças e não o contrário", provoca o pesquisador.
Outro caso que gerou debate neste ano foi o comercial da Volkswagen que recriou Elis Regina usando dessa tecnologia. No vídeo, a cantora aparece ao lado da filha, Maria Rita, ao som de "Como nossos pais". Após a peça publicitária, o debate se direcionou a refletir sobre os limites éticos do uso da IA em relação a artistas mortos.
A abertura da série "Invasão Secreta" (2023), baseada nas histórias em quadrinhos da Marvel, também despertou discussões acerca do tema. O diretor da produção, Ali Selim, resolveu usar a inteligência artificial para criar uma abertura que acompanha o tom da trama. Na história os vilões são os Skrulls, uma raça alienígena com capacidade de modificar a aparência física, assim tomando a identidade de pessoas que já existem.
O estúdio responsável pela ilustração da série, Method Studios, também se manifestou sobre o caso. Em um comunicado enviado ao Hollywood Reporter, a empresa salientou que a IA foi apenas um dos artifícios usados para as artes visuais da obra e que nenhum artista profissional perdeu o emprego ou deixou de ser contratado por causa disso. A instituição já trabalhou em outras produções da Marvel Studios como "Loki" (2021) e "Ms. Marvel" (2022).
A Method Studios enfatizou ainda que a inteligência artificial foi usada para complementar o trabalho das equipes, não para substituí-lo. Além disso, as imagens geradas pela tecnologia passaram por vários tratamentos para se adequar ao que havia sido requisitado para "Invasão Secreta".
Na mesma direção, Renato Gonçalves compara a questão da capa de "Frankstein", lançada pelo Clube de Literatura Clássica, com o caso do fotógrafo alemão que ganhou o prêmio "Sony World Photography" com uma foto gerada por inteligência artificial. Em abril, Boris Eldagsen, autor da imagem, que foi acusado pelo júri de ter "mentido deliberadamente", recusou o prêmio.
Boris Eldagsen disse em entrevista que seu objetivo era levantar o debate em relação ao uso das IAs. "Eu competi para provocar, para saber se as competições estão prontas para a chegada da IA. Não estão", afirmou. Renato também concorda que os avanços convidam a sociedade a refletir sobre eles. "Porque toda tecnologia nova nos demanda a repensar e acho que o que o que não pode é acharmos que é uma realidade que temos que censurar. Muito pelo contrário. Temos que ver como lidar.", elucida o autor.
Renato afirma que a inteligência artificial deve compor a elaboração de peças artísticas. "Seja para a validação final, para um primeiro rascunho, para ajudar no bloqueio criativo, não é? Então, nesses casos a IA generativa tem que ser vista como mais uma das ferramentas que temos disponível na hora de criar", explica.
O pesquisador cita como exemplo a artista plástica Greta Coutinho, que incorpora IA em seu processo de criação. Segundo entrevista concedida por Greta ao site "Deve ser aqui", ela afirma que usa a "ferramenta para otimizar atividades que seriam muito longas ou até mesmo impossíveis”. “Nesse sentido, é muito positivo. Claro, é preciso ter discernimento do que é danoso ou feito para prejudicar, mas de maneira geral, vejo esses avanços de uma forma benéfica, somando ao processo", ilustra.
"É preciso encarar o artificial tentando entender as suas lógicas para daí, então, entendermos as suas potencialidades e as suas limitações", completa Renato. O autor declara que o objetivo do livro "CR(IA)ÇÃO - Criatividade e Inteligência Artificial" é justamente para explorar essas questões. "Então, nesse caso o livro é uma tentativa de tradução de um universo que vem das ciências da computação", afirma.
"A inteligência artificial é um campo que não é novo, muito pelo contrário, já tem aí décadas de desenvolvimento e tem as suas lógicas, como a visão computacional, o processamento de linguagem natural. Agora o desafio é tentar traduzir esses conceitos para entender as lógicas da inteligência artificial no trabalho criativo", finaliza.
CR(IA)ÇÃO - Criatividade e Inteligência Artificial