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Arte do repente atravessa gerações e conquista reconhecimento nacional
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Arte do repente atravessa gerações e conquista reconhecimento nacional

Patrimônio da cultura brasileira, o repente segue por gerações com sua cantoria poética improvisada ao som de uma viola
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FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 28-11-2023: Geraldo Amâncio e Gilherme Nobre em Especial DOM Repente V&A fala sobre a cultura e práticas dos repentistas  (Foto: Samuel Setubal/ O Povo) (Foto: fotos Samuel Setubal)
Foto: fotos Samuel Setubal FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 28-11-2023: Geraldo Amâncio e Gilherme Nobre em Especial DOM Repente V&A fala sobre a cultura e práticas dos repentistas (Foto: Samuel Setubal/ O Povo)

“Ele imaginava o poema como se fosse um quadro e depois ia constituindo verso a verso, guardando na memória privilegiada, acumulando como se fossem as camadas da terra”. Essas são as palavras escolhidas por Gilmar de Carvalho (1949-2021), escritor e jornalista, no artigo “Patativa do Assaré: Memórias da Cantoria” para descrever o processo criativo deste grande poeta cearense.

A definição desenhada pelo professor Gilmar com palavras, ilustra a experiência e produção poética do cordelista, revisitando uma época em que este expressava sua arte com o auxílio de uma viola, mostrando que Patativa também foi um cantador ou, mais especificamente, um repentista.

Atribuindo um significado para esses termos, cantadores são intérpretes da cultura popular nordestina que, com poesias rimadas e improvisadas na hora, montam uma música. A prática centenária ganha subdivisões a partir do instrumento adotado por cada um, surgindo, por exemplo, emboladores e repentistas.

O repente, um dos estilos dessas cantorias, é feito com o uma viola. Quando começaram, os repentistas iam para locais públicos, como feiras livres, e improvisavam as rimas com a ajuda do instrumento. Múltiplas são as formas que a poesia pode se estruturar na cantoria, como em quadra ou sextilha.

Pedro Rogério, professor e pesquisador de História da Música Cearense da Universidade Federal do Ceará (UFC), aponta que o estilo é uma herança dos trovadores, improvisadores da Península Ibérica na Idade Média, que também trabalhavam com a poesia cantada.

Apesar de seguir e representar uma tradição de anos, o repente não se manteve “cristalizado”. “Se adaptam a novos tempos, os repentistas estão falando de coisas atuais. É muito importante essa prática passar por gerações para que se mantenha viva”, afirma Pedro.

Ele defende que é importante não acontecer essa cristalização da cultura popular, pois é importante o diálogo com outras manifestações e facilita a manutenção do repente para ser passado à posteridade.

A prática, no entanto, não é fácil. O repentista Geraldo Amâncio defende que um cantador já nasce com um dom para essa arte. “A rima não é tão difícil, mas a métrica já nasce com ele”, afirma, acrescentando que o improviso é a “coisa mais fácil do mundo para eles”.

Ele afirma que para ser repentista é preciso ter essa aptidão desde o berço. “Já vi isso acontecer. Uma pessoa que não nasceu poeta, depois escuta a cantoria e se mete a fazer, mas não dá certo”, conta, afirmando que a prática aperfeiçoará o dom.

E complementa, defendo que esse é o motivo que explica que cantadores continuarão surgindo: “Quem nasce poeta e é influenciado pela cantoria, faz dela não só uma arte, mas um ofício”.

Mestre da Cultura do Ceará, o poeta acumula uma bagagem de seis décadas de carreira, acompanhando ações, mesmo que indiretamente, que atravessam o tempo percorrido pela a cantoria.

No ano em que Geraldo nasceu, 1946, o primeiro festival de repentistas do País aconteceu no Theatro José de Alencar, em Fortaleza, organizado pelo jornalista Rogaciano Leite. O evento, além de abrir espaço para outros similares, iniciou os passos para a valorização desses artistas.

A geração de cantadores em que está inserida é conhecida por mudanças no ofício, como a não utilização do lirismo, uma poesia mais sentimental e romântica, na cantoria. Outros festivais se estabeleceram com o decorrer do tempo — e ele participou — como o de Campina Grande e o de Caruaru, apesar do repentista apontar que a frequência dos considerados tradicionais diminuiu.

Mostrando que o improviso poético andava lado a lado com a evolução da sociedade, ele também adentrou em canais de distribuição, como programas de rádio e televisão. “Tive a felicidade de colocar na TV a viola durante 19 anos. Foram 10 anos na Jangadeiro e nove na TV Diário. Foi uma vitrine para mostrar que a cantoria também tem espaço em um programa nobre” sustenta.

Outra coisa que Geraldo presenciou foi a internet se tornar um parceiro desses artistas, que além de contribuir para a propagação do trabalho, também deu uma virada na demanda do público. “A cantoria, na minha época, era 90% rural. Hoje é o contrário, ela é no mínimo 80% urbana”, esclarece.

O cantador tinha receio quanto a isso para o ofício. Achava que, com as pessoas já conhecendo o trabalho pela a internet, não teriam interesse em ir até um show. Entretanto, ele afirma que foi o contrário, a divulgação ajudou a atrair o público.

Ainda assim, essa arte popular carregou uma imagem de arte marginalizada. “Nunca encontrei uma turma de estudantes para não ser vaiado. Isso em todo lugar, parecia que tinha celular para dizerem [compartilharem]”, relembra o poeta, partilhando também que o pai dele acreditava que ofício “não dava futuro”.

“[Antes] tinha muita discriminação, ainda existe um pouco”, destaca sobre a recepção do repente.

O mestre aponta que o cordel foi um aliado para começar a mudança dessa imagem já estabelecida, pois o romance de feira começou a abrir espaço para a poesia popular. Mas ressalta que, ainda assim, eles não são a mesma coisa, são apenas confundidos.

“O cordel entra um pouco nos colégios. Tudo vai mudando. Nos vestibulares, só se estudava poeta se fosse Drummond de Andrade. Patativa já abriu as portas, porque entra a poesia dele de vez em quando”, clarifica.

Pedro Rogério, o professor, afirma que ações do governo são fundamentais para a manutenção dessa prática, para o presente e futuro.

“Como muitas manifestações populares não estão no mainstream, na indústria cultural, para que possam ser valorizadas, precisam da mão do Estado reconhecendo e subsidiando para se manterem”, esclarece.

Ocupante da 14ª cadeira da Academia Cearense de Letras, mestre Geraldo provoca: “Cantador tem valor? Tem. Já tem até deles dentro da Academia de Letras”.

Brasil, Assaré, CE. 30/10/2000. Antônio Gonçalves da Silva, conhecido como Patativa do Assaré, poeta popular, durante entrevista realizada em sua casa, em Assaré, região sul do Ceará. Nasceu em cinco de março de 1909 e foi poeta popular, compositor, cantor e improvisador, sendo uma das grandes figuras da cultura nacional. Patativa, considerado o maior poeta popular do Nordeste, faria 100 anos de idade em 5 de março de 2009. Segundo filho de uma família pobre de agricultores de subsistência, frequentou a escola por somente quatro meses, em 1921. Atuava como versejador em festas, e quando comprou uma viola, começou a atividade de compositor, cantor e improvisador. Seu primeiro poema foi publicado no jornal Correio do Ceará em 1926 e seu primeiro livro,
Brasil, Assaré, CE. 30/10/2000. Antônio Gonçalves da Silva, conhecido como Patativa do Assaré, poeta popular, durante entrevista realizada em sua casa, em Assaré, região sul do Ceará. Nasceu em cinco de março de 1909 e foi poeta popular, compositor, cantor e improvisador, sendo uma das grandes figuras da cultura nacional. Patativa, considerado o maior poeta popular do Nordeste, faria 100 anos de idade em 5 de março de 2009. Segundo filho de uma família pobre de agricultores de subsistência, frequentou a escola por somente quatro meses, em 1921. Atuava como versejador em festas, e quando comprou uma viola, começou a atividade de compositor, cantor e improvisador. Seu primeiro poema foi publicado no jornal Correio do Ceará em 1926 e seu primeiro livro, "Inspiração Nordestina", em 1956. Patativa faleceu em 2002 de falência múltipla dos órgãos. - Crédito:JARBAS OLIVEIRA/AE/AE/Codigo imagem:35767.

Glossário

O repente é confundido muitas vezes com outras artes. Uma delas é o cordel. Ambas utilizam a poesia metrificada, e alguns cordelistas, como Patativa do Assaré — o mais famoso — são cantadores, mas necessariamente todos.

A diferença entre cordel e repente é que no primeiro a poesia é escrita e no segundo ela é cantada, ou seja, feita por cantadores.

E o repente e a embolada? Dentro da cantoria também existem divisões. O repente, por exemplo, é quando o improviso poético é feito com o auxílio da viola. Já a embolada, que também é feito por cantadores, é com um pandeiro.

Há também os pajadores ou payadores, são como repentistas, mas são difundidos em outros países da América do Sul e na região sul do Brasil. Uma diferença para ser apontada entre eles e os repentistas é a que o cantador do nordeste brasileiro canta de forma estática, enquanto o outro performar passando de mesa em mesa.

Apesar de trabalharem com rimas e poesia improvisadas, rap e repente são tipos de artes diferentes. O rap surgiu nos Estados Unidos, em um contexto urbano e entre as comunidades afrodescendentes do país norte-americano. O repente é do sertão do nordeste brasileiro, sendo executado com a viola.

 

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