O ator e historiador Guilherme Terreri teve a primeira experiência com a arte drag durante o Carnaval de 2013. Mais de uma década depois, ele mobiliza milhares de seguidores por meio da Rita von Hunty, persona drag queen que debate temáticas políticas com vídeos no YouTube e palestras Brasil afora. Formado em Arte Cênicas pela UniRio e bacharel em Letras e Literatura Inglesa na Universidade de São Paulo (USP), Terreri encontra no drag - e em Rita - a compilação dos estudos sociais e artísticos.
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O POVO - Sei que você já teve uma aproximação com política na infância, mas sempre com um pé na arte. Como essa relação artística se instituiu nos primeiros anos e como se desenvolveu na juventude?
Guilherme Terreri - Eu nasci e cresci em Ribeirão Preto, uma cidade no interior do Estado de São Paulo, numa família profundamente política e artística. Minha avó é poetisa, artista plástica, professora e tradutora, e a minha mãe foi também uma professora e tradutora-intérprete. Acho que a primeira inserção está muito ligada com a proximidade com essas artes visuais e das palavras, mas também com os debates que isso gerava. Eu tive, de certa forma, um privilégio de estar dentro de uma família na qual a conversa costumava ser edificante. Minha avó era uma ávida leitora, tinha uma boa coleção de livros e eu me interessava por alguns autores, títulos e capas, mas eu não tinha idade para ler. Ela, com toda a paciência do mundo, retirava eles das estantes. Ela tinha o hábito de grifar as leituras à lápis, então quase todos tinham algum grifo e anotação, e à medida que eu me interessava por eles, ela me contava do autor, do momento histórico do autor e às vezes me lia uma passagem. Tenho uma memória muito terna e carinhosa de quando eu vejo pela primeira vez essa edição em capa dura de “O Velho e o Mar”, do Ernest Hemingway, com seis ou sete anos. Eu lembro de ter ficado impressionado em como a linguagem era simples. Acredito que talvez esse seja um ingresso, mas eu não fiquei artista plástico, nem de todo poeta. Fui para as artes cênicas, comecei a estudar teatro na escola e nunca parei. O teatro, acredito, foi esse lugar no qual eu consegui fazer coexistir a poesia e a beleza plástica. É uma confluência talvez, dessa infância, ligada às artes visuais e às artes plásticas, que viraram, então, artes da cena.
OP - Crescer com esse universo que dá tanto além da realidade, acaba criando outros mecanismos para lidar consigo e com o mundo…
Guilherme - Sim, é fundamental. E lidar com tudo que esse universo é capaz de fornecer, quando a gente pensa em ferramenta, um instrumental para lidar com a vida. Eu tive acesso a muito bons instrumentos.
OP - Como o desenvolvimento na arte contribuiu para o desenvolvimento no drag naquele primeiro contato em 2013?
Guilherme - Toda vez que eu revisito o início do fazer drag eu acabo elaborando algo mais profundo a respeito disso. Tem uma piada que nos EUA a maioria das drags ou são da Parada do Orgulho, ou são drags de Halloween. No Brasil, como o Halloween não é exatamente um dado nosso de cultura, a gente costuma ter drags de Carnaval. Eu sou uma dessas. Começo “montando” nessa festa que, por definição, é a festa da suspensão das regras e inversão dos valores. No entanto, esse começo ele está aparatado por um desejo, porque, em 2013, eu estou fora da Universidade há dois anos que foram muito difíceis para mim, nos quais eu vou perder a minha mãe, me mudar do Estado onde eu morava, ter uma mudança de carreira brusca, tudo.Nesse momento muito difícil, essa espécie de inverno da alma que eu estava vivendo, a drag era um raio de sol, um lugar no qual a minha dor do mundo se via suspendida por alguns instantes. Eu comecei a me inteirar da cultura através do (reality show) RuPaul’s Drag Race, que hoje é enlatado, mas antes era muito visceral. No meu imaginário era algo muito distante, eu tinha pouco contato com a cena drag brasileira. A arte drag caminha com avanços e retrações, muito do cenário político, mas também no cenário cultural. Lá no início, tinha a ver com uma euforia, alegria, descoberta. Acho que essa é a primeira coisa que eu aprendo de drag: ela compila, em si, todos os fazeres das artes cênicas. Desde o início tem uma investigação sobre gênero que muito me interessa ali, antes de estudar a fundo sobre teoria de gênero, da terceira onda feminista, eu já estava inteirado sobre essa dimensão que gênero é feito. E à medida que é feito ele vai sendo desfeito, refeito, vai causando mudanças ao redor.
OP - Você já mencionou que é uma pessoa “desviante das questões de sexo e gênero” impostas como normativas. Esse processo, porém, nunca é linear. Como você definiria o seu próprio processo de entendimento e identificação com sexo e gênero?
Guilherme - É uma boa pergunta. Eu experimentei e experienciei viver como homem, viver como mulher, viver como drag, ser confundida com travesti, a vida toda. Lá no início dos meus primeiros anos escolares eu era uma criança loira, magra, de cabelo comprido e cacheado, quando eu entrava no banheiro masculino os inspetores me tiravam de lá porque achavam que uma menina tinha entrado. Na minha experiência, gênero é uma piada, mas muito séria, porque todo mundo acredita nisso. E ela produz desigualdade, opressão, segregação, encerramento de horizonte. Agora eu estou nesse lugar de entender que isso não é real, mas como tudo que não é real, é uma ferramenta através da qual os poderes se instrumentalizam. O gênero é uma construção social, é um efeito de linguagem, mas que organiza as nossas vidas. Eu estou tentanto, como artista e como intelectual, ver o que é possível.
OP - O Ceará, por exemplo, tem alto índice de violência de gênero. Você fala que está nesse momento de entender esses atravessamentos e como eles chegam ao seu público, que é majoritariamente feminino. Qual seria o direcionamento que você utiliza para falar com e para mulheres como Rita von Hunty?
Guilherme - Eu sou uma pessoa que se formou educador com Paulo Freire, e ele bate nessa tecla: “Em educação não existe falar para, existe falar com”. Eu acredito que falo com o meu público e esse “falar com” está, também, na forma que eu apresento a discussão, de uma forma mais lúdica, bem humorada e mais simples possível. Eu estou desde o início sendo alguém que ensina e alguém que faz arte, que bagunça para ensinar e ensina para bagunçar. Quando é a hora de falar sobre gênero, por exemplo, 2022 é um recorde da série histórica da violência contra a mulher em todas as dimensões. Tem um vídeo que eu vou explicar o que seria a violência de gênero, porque esse grupo está sujeito. É entender que quando agente fala mulheres, no abstrato, diz muito pouco. Quando a gente fala mulheres negras, mulheres negras da periferia, mulheres em situação de vulnerabilidade, começa a dizer mais. Mulheres trans, mulheres indígenas. Mas além disso, que é um dos pulos do gato desse vídeo, eu falo da violência de gênero vivida por homens. Quem são eles? Acho que, intuitivamente, quem nos lê pode pensar que são homens gays. E aí eu mostro o caso de um pai e um filho, (ambos) héteros, brancos, classe média, que estavam num estádio de futebol e se abraçam para comemorar um gol. E eles são espancados pela torcida. O que é isso? Violência de gênero: homem não abraça. Basta que ele tenha verniz de discidência de gênero ou sexo para ser espancado num estádio de futebol. O que eu tento nesse vídeo e na minha comunicação com o público? Mostrar como todas as discussões são infinitamente simples e complexas. E acredito que nesse entremeio eu consigo mover coisas.
OP - Você mencionou que a Rita tenta tratar de maneira simples questões políticas e sociais para que todos possam entender. Ao longo desses dez anos como Rita na internet, como você aperfeiçoou a maneira de interagir com o público e o público atual recebe as discussões que a Rita traz?
Guilherme - Acho que hoje está em constante processo de mutação. Por exemplo, o governo Lula e Alckmin está produzindo no Brasil a privatização 9 de presídios, nunca pensei que fosse viver para ver isso. Quando eu fui produzir um vídeo-reflexão sobre esse ponto, eu voltei a um vídeo lá no canal, de quatro anos atrás, chamado “Repensar Prisões”. Eu vejo aquele vídeo e falo: “meu Deus, eu não consigo nem mais reconhecer”. Mas, naquele momento, para aquele público, fez muito sentido. Eu sinto que aquele público amadureceu e cresceu junto comigo, assim como tem sempre alguém novo chegando.
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