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Palavras-cruzadas: passatempo une lógica, conhecimentos e português
Vida & Arte

Palavras-cruzadas: passatempo une lógica, conhecimentos e português

Passatempo que mistura lógica, conhecimentos gerais e português, as palavras-cruzadas atravessam gerações como um jogo atemporal e uma alternativa para se divertir fora das telas
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Da esquerda para direita: os estudantes Kamilla Cardoso, Arthur Henrique e Iara Lemos - que incentiva os amigos a jogar palavras-cruzadas
 (Foto: Daniel Galber - Especial para O Povo)
Foto: Daniel Galber - Especial para O Povo Da esquerda para direita: os estudantes Kamilla Cardoso, Arthur Henrique e Iara Lemos - que incentiva os amigos a jogar palavras-cruzadas

(Textos de Arthur Albano/Especial para O POVO)

Elas estão nos mais diversos lugares. Em filas de espera, cafés da manhã, nas páginas de jornais e até nas revistas. As palavras-cruzadas são um ritual para quem gosta de resolvê-las. É o caso de Iara Lemos, 18 anos, estudante de Jornalismo, que carrega uma revista de palavras-cruzadas e uma caneta sempre pronta para "jogar". "A parte mais divertida é o desafio de se propor àquela tarefa de achar várias palavras diferentes. Você bate a cabeça até conseguir achar uma palavra que caiba nos quadradinhos", conta.

O hábito de resolvê-las começou na adolescência graças à influência da mãe Melca Lemos, 44 anos, que comprava várias revistas e levava para a filha. Ainda que cada uma prefira resolvê-las por conta própria, Iara diz que quando a família se junta, as palavras-cruzadas geram debates sobre as curiosidades e pistas do desafio.

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Melca diz que esta é realmente uma tradição. Foi sua mãe, Madali Lemos, 78 anos, quem a instigou a resolver palavras-cruzadas. "Eu sempre via a minha mãe fazendo. No final da tarde, quando ela estava mais relaxada e já tinha feito todas as obrigações ou à noite. Ela ainda tem esse hábito e eu o adquiri graças a ela. Inclusive, também faço nesse horário".

No caso de Madali, as palavras-cruzadas não são apenas uma forma de se divertir. Durante os 31 anos nos quais foi professora da rede pública, ela utilizou o jogo como uma forma lúdica de ensinar diferentes matérias aos seus alunos. "Até em matemática dava certo!", lembra ao citar a empolgação das crianças com o jogo.

Já aposentada, ela reflete como esse é um passatempo que distrai e ensina ao mesmo tempo, além de ter seus benefícios. "Elas ajudaram muito com a minha memória. Todas as pessoas da minha idade, e com menos idade do que eu, deveriam fazer palavras-cruzadas, porque ajuda muito!", ponta.

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Em um mundo cercado de telas e hiperestimulação, as "cruzadas" permanecem como um dos poucos passatempos que resistem em forma física. Como um hábito repassado de geração em geração - a exemplo da família Lemos em que avó, mãe e filha se unem por meio de uma diversão off-line calcada na simplicidade - precisando apenas do desafio, uma caneta ou lápis, e dedicação.

A origem das palavras-cruzadas

Mas antes de se consolidarem como esse fenômeno nacional, as palavras-cruzadas surgiram em um suplemento semanal chamado "FUN" (diversão, em tradução direta). Em 1913, o editor Arthur Wynne precisava preencher a edição de Natal com alguma coisa, então teve a ideia de criar um quebra-cabeças gramatical para ser feito por meio de pistas. Foi assim que o primeiro desafio de palavras-cruzadas nasceu com o formato que lembrava uma guirlanda.

A partir daí, o passatempo foi ganhando fãs, denominados de "cruzadistas". Um deles era Owen Ranieri Mussolin, brasileiro filho de imigrantes italianos. Durante a adolescência na Itália, por volta das décadas de 1930 e 1940, o jovem começou a pegar gosto pelas palavras-cruzadas publicadas na revista "La Settimana Enigmistica", em atividade até hoje.

Vendo que o jogo ainda não havia se consolidado no Brasil, Owen decidiu convidar dois sócios para fundar "A Recreativa" em outubro de 1950, publicação cujo apelo residia em ser exclusivamente dedicada às palavras-cruzadas. Em entrevista ao O POVO, Rubens Massa, neto de Owen e atual CEO da Recreativa, conta que ambos os sócios deixaram a revista na sétima edição, transformando-a em um negócio familiar que perdurou por três gerações até ser vendida para a Editora Abril. A recuperação da revista se deu em 2020 quando Rubens e sua sócia, Fernanda Lutke, compraram a empresa de volta.

A dupla implementou medidas como a readequação de preço, a mudança na periodicidade das revistas, semanais ao invés de mensais, e até a criação de um aplicativo que disponibiliza o jogo no ambiente virtual. Apesar disso, Rubens admite que este é um tipo de atividade prioritariamente off-line. "A gente acredita que é um tipo de descanso ativo, você sai das telas e tem uma janela de tranquilidade no dia a dia".

Atualmente, a Recreativa imprime 60 mil revistas mensais distribuídas em 800 cidades por meio de assinaturas e bancas. E, mesmo com a digitalização, as palavras-cruzadas se mantêm como um negócio lucrativo, ainda que "as revistas precisem ser mais baratas que um copo de café".

Ele explica que o avô Owen elaborava as primeiras palavras-cruzadas à mão, desenhando-as em cartolinas que depois eram reduzidas nas gráficas e reproduzidas no papel. "Não existe uma preparação de mão de obra no ramo, então ele foi desenvolvendo técnicas próprias que foram sendo perpetuadas".

O legado do "cruciverbalista", título dado a quem produz palavras-cruzadas, continuou não apenas nos desafios elaborados, mas em dicionários confeccionados com o intuito de ajudar outros criadores. "Um dicionário de palavras-cruzadas tem definições poéticas, como [o verbete] lágrima, nele vai ter [a descrição]: uma gota de emoção", explica.

Por demanda da própria comunidade, Owen desenvolveu dicionários de geografia, história etrusca, personagens de ópera e até mesmo de palavras difíceis para alimentar a produção do jogo. Ela, aliás, segue sendo manual, como revela Rubens para "manter a tradição".

Isso só é possível graças a uma comunidade de colaboradores contratados e de cruciverbalistas que enviam suas criações de maneira espontânea. Todos são creditados na parte superior das palavras-cruzadas, auxiliando na criação de um senso de comunidade em torno do jogo.

Um detalhe importante é que Rubens confirma que a revista não se utiliza de inteligência artificial, porque entende as palavras-cruzadas como um patrimônio cultural. "Queremos nutrir muitas dessas características off-line porque entendemos que aí está o nosso diferencial. Assim como o mercado de vinil que cresce, a gente acredita que as palavras-cruzadas vão existir sempre, não no mainstream, mas em um nicho off-line para pessoas que querem experiências fora do digital. E quanto mais isso for vintage, remeter a essa cultura off-line, melhor vai ser".

 

Os benefícios das palavras-cruzadas

Um dos benefícios mais importantes de resolver palavras-cruzadas é a ampliação de vocabulário. Encontrar palavras que se encaixem nos quadrados disponíveis é uma arte que exige um bom repertório de português. Mas será que o hábito realmente traz benefícios comprovados para a saúde?

Segundo a neuropsicóloga Juliana Gebrim, há evidências de que o engajamento regular em atividades cognitivamente desafiadoras pode ajudar a proteger o cérebro do envelhecimento e de algumas doenças neurodegenerativas. Há também ganhos emocionais importantes no ato de completar uma cruzadinha, como a sensação de prazer e a melhora da autoestima intelectual.

A doutora também enxerga o passatempo como uma forma de "treinar o cérebro" sem que isso pareça uma atividade terapêutica, favorecendo a adesão entre pacientes que resistem a exercícios mais formais.

"As palavras-cruzadas podem ser indicadas em diversas situações clínicas, especialmente quando o objetivo é estimular funções cognitivas como memória, atenção, linguagem e flexibilidade mental", explica. Também é bastante útil no atendimento de idosos, pacientes em reabilitação após AVC e até mesmo jovens que estão enfrentando dificuldades de atenção ou aprendizagem.

Além disso, Juliana diz que o jogo é uma forma lúdica de ajudar crianças em fase de alfabetização, oferecendo uma alternativa mais ativa e reflexiva perante o consumo de conteúdo digital. "Esse tipo de atividade ajuda a desenvolver paciência, concentração e organização do pensamento", explica.

 

A popularização do passatempo no Brasil

"Está na moda nos Estados Unidos e em diversos países da Europa um curiosíssimo jogo que os ingleses denominaram de 'crossword puzzles'; os franceses 'mots croisés' e que nós poderíamos chamar simplesmente palavras-cruzadas", escreveu o jornal carioca "A Noite", em 1925.

O periódico introduziu o passatempo nas casas brasileiras com o nome pelo qual se tornou conhecido, mas foi apenas em 1948 que a Editora Gertum Carneiro, atual Ediouro, criou a primeira revista dedicada a palavras-cruzadas, nomeada de Coquetel. Foi nas páginas dela que o formato de cruzadas diretas, aquelas com chaves e definições dentro dos diagramas, ganhou a atenção dos leitores e popularizou de vez o jogo no Brasil.

"Na época, a produção das cruzadas era um processo manual com diagramas elaborados por um cruzadista, o conteúdo das dicas era feito por um definidor e após isso, um editor ainda cuidava das fases seguintes", revela Eliana Machado, coordenadora editorial da Coquetel. Hoje, os jogos são elaborados de forma digital, mas ainda contam com a participação de um editor.

"Todos os jogos Coquetel, inclusive as palavras-cruzadas, são gerados por sistemas. Não usamos inteligência artificial para os conteúdos, apenas, às vezes, para um refino da arte", disse Eliana.

A coordenadora conta que a empresa enxerga as palavras-cruzadas como uma diversão off-line: "A aderência no digital é muito menor do que no impresso". Atualmente, a Coquetel publica mensalmente 50 revistas, 15 livros e 12 coletâneas, com revistas divididas por níveis entre fácil, médio e difícil.

Por meio do projeto "Coquetel nas Escolas", são distribuídos gratuitamente até seis títulos de suas revistas para contribuir no aprendizado de alunos de forma lúdica. A iniciativa não é uma assinatura feita pelas instituições, mas um projeto que alia diversão e conhecimento, levando para jovens de diferentes idades o hábito de resolver palavras-cruzadas.

Além disso, a Coquetel entrou para o Guinness Book, o livro dos recordes, pela produção da maior palavra-cruzada direta do mundo. Medindo 25 metros de largura por 1,30 metro de altura, o jogo tem 16 mil quadrinhos com cerca de 3 mil definições.

 

As palavras-cruzadas da página Brincar

No caderno Vida&Arte, as palavras-cruzadas são publicadas diariamente na página Brincar, que além do passatempo, publica tirinhas, horóscopo, sudoku, anjo e o santo do dia.

Os jogos distribuídos pelo O POVO são elaborados pela Coquetel, que os fornece em seu formato mais popular, as cruzadas diretas. Elas também são uma tradição para os leitores - que enviam mensagens nas raras ocasiões nas quais a solução é publicada errada - e para os jornalistas da casa - que se desafiam a resolver o passatempo em seus momentos de descanso.

Ainda que o principal intuito do jornal seja informar, as palavras-cruzadas permanecem com seu espaço de divertir, ensinar e entreter. São elas que, muitas vezes, instigam um leitor a pegar o jornal e descobrir o que há dentro dele, sendo um jogo acessível para quem busca estímulo intelectual. Chega até ser difícil imaginar uma seção de passatempos sem elas, tamanha sua importância. Virou hábito, assim como ler o jornal.

 

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