Superada a fase do "cake ou fake" ("é bolo ou é?") e dos bebês reborn x crianças reais, a internet chega a uma fase ainda mais desafiadora para quem busca pelo realismo: a de vídeos gerados por inteligência artificial (IA). Não raramente, precisamos adivinhar se as "pessoas" que assistimos em vídeos curtos são humanos ou criações gráficas.
Prova disso são as dezenas de milhões de visualizações do programa Marisa Maiô, que conta com uma apresentadora de sotaque paulista marcado, bordões exagerados, figurino de auditório e a IA Veo 3 do Google. Trata-se de uma atração feita virtualmente, com pessoas irreais e que rendeu uma propaganda orgânica de roupas de banho para uma famosa marca de vestuário.
O criador do projeto é o carioca Raony Phillips, 32 anos, o mesmo que já faz sucesso há 11 anos com a produção da série "Girls in the House", produzida exclusivamente com registro de simulações do jogo "The Sims 4". O POVO tentou entrevista com o realizador, mas não houve retorno até o fechamento desta página.
O mesmo recurso que criou Marisa Maiô também repercutiu viralmente em redes sociais como o TikTok e o Instagram, pois nele foram produzidas esquetes humoradas que simulam situações verossímeis ou fazem paródias com histórias tradicionais. Histórias bíblicas e contos de fadas estão entre os mais contemplados.
Mas, enquanto parte do público dá risadas, outra parcela de estudiosos, artistas e consumidores rejeita o conteúdo produzido por IA. Refletir e questionar sobre uma realidade na qual o audiovisual faz apropriação em grande escala de inteligências artificiais ainda acontece como presunções, visto que é uma novidade emergente na cultura do mundo.
Para a pós-doutora em filosofia Mariana Lins, o consumo desses programas é o reflexo da "aceleração generalizada" que atinge o Brasil e o mundo. "Vídeos curtos, facilmente assimiláveis, moldam a nossa capacidade cognitiva", aponta a pesquisadora.
"O Brasil é um país com forte afinidade cultural com o humor: o riso sempre teve um lugar central na cultura brasileira. O problema é a captura dessa característica coletiva pela lógica algorítmica", acrescenta.
Ela exemplifica com vídeos cômicos feitos a partir de contos bíblicos: "As qualidades que se adquirem ao se dedicar à leitura de um livro antigo como a Bíblia — que exige tempo, atenção e pesquisa — são muito diferentes das qualidades adquiridas por quem tem como principal fonte de alimentação cultural vídeos cômicos de segundos".
Sob a perspectiva de Petrus Cariry, diretor de filmes como "Mais Pesado é o Céu" (2023) e "O Barco" (2028), é "incontornável" a desumanização dos processos criativos. O cineasta menciona que a conquista técnica e científica tem um custo, faz com que os humanos acabem se remodelando ao longo do tempo.
"O homem sempre encontrou formas de superação e de reinvenção. Não sou um otimista, mas não chego a pintar um cenário obscuro para a humanidade por conta da IA, embora saiba que essa mudança em curso terá um custo social muito alto, influindo diretamente nos processos criativos. Não acho que esse conteúdo possa ameaçar o bom cinema, parece-me muito desinteressante", argumenta Petrus.
Definindo-se como um cineasta de produção "artesanal", que prioriza trabalhos feitos por "artistas de verdade" e com profundidade, o diretor defende que a arte não será substituída por inteligência digital. "É totalmente possível que o uso ordinário de IA em filmes e seriados possa causar desemprego e problemas sociais mais sérios, mas haverá sempre os que não renunciam à sua própria inteligência e sensibilidade", pontua.
Nessa perspectiva, Mariana diverge de Petrus: "Acredito que esses produtos audiovisuais gerados por IA podem competir — e até substituir — produções com pessoas reais. Pois, se seguirmos a lógica da nossa sociedade capitalista, que privilegia o lucro acima de tudo, não há por que imaginar que, diante de uma tecnologia capaz de gerar imagens quase indistinguíveis da realidade por um custo mais baixo, ela não seja empregada em larga escala".
Nos grandes cinemas, a IA não é uma realidade distante. O filme "Here" ("Aqui"), de Robert Zemeckis, se tornou uma polêmica no universo cinematográfico desde sua concepção, pois dependia de ferramentas de inteligência artificial para o resultado desejado.
O longa-metragem conta a história de diferentes gerações que ocuparam a mesma casa ao longo de décadas. Para isso, os atores precisavam de filtros que os rejuvenescessem e envelhecessem realisticamente em diferentes cenas. O filme foi lançado em 2024, somente quando essa tecnologia pode ser acessada pela produção e edição da obra.
"O curioso — e, ao mesmo tempo, trágico — é que essa substituição, possivelmente em curso, compromete a cognição humana em dois sentidos: tanto a produção quanto a recepção deixam de exigir esforço, atenção e elaboração - e, com isso, comprometem o próprio desenvolvimento humano", finaliza Mariana Lins.