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Música que transforma: festival na Ibiapaba fortalece arte cearense com formação e acessibilidade
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Música que transforma: festival na Ibiapaba fortalece arte cearense com formação e acessibilidade

Festival Música na Ibiapaba encerra 20ª edição comprovando força formativa e gerando demanda por espaço para a música no Ceará
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Alunas do Festival MI 2025 (Foto: Guilherme Silva/ Divulgação)
Foto: Guilherme Silva/ Divulgação Alunas do Festival MI 2025

Difícil conhecer algum músico hoje no Ceará que não tenha passado pelo Festival Música na Ibiapaba - ou Festival MI, como também é conhecido em referência à terceira nota da escala musical. Seja participando das oficinas, ministrando aulas, assistindo aos shows ou circulando pelas ruas de Viçosa do Ceará, onde o evento acontece anualmente, são milhares de pessoas trocando informações e aprendizados com professores e artistas ao longo de uma semana de programação.

A 20ª edição do MI aconteceu de 20 a 26 de julho, abrindo com show na Praça da Matriz do pianista pernambucano Amaro Freitas e encerrando com Eliane, a rainha do forró. Esse palco recebeu, entre outros, o grupo Murmurando com o acordeonista Adelson Viana (que dividiram o disco "De cá pra lá"), a cantora Luiza Nobel, o compositor paraense Felipe Cordeiro com a banda Ferve (RN), a sambista Gabi Nunes e o quarteto instrumental Marimbanda.

Atração da noite de encerramento, o show "Siriará" prestou uma homenagem à história da música cearense, passando por Evaldo Gouveia e Mateus Fazeno Rock. Participaram desta ópera pop Rayane Fortes, Claudio Mendes, Di Ferreira, Dipas e outros. Um segundo palco, próximo à Feira Empreendedora, recebeu Simone Souza (com o lindo show "Banzo"), Caike Falcão com homenagem a Raul Seixas, Erivan Produtos do Morro e a banda Caixeiros Viajantes.

Festival MI destaca oficinas e formações

Mas as apresentações são só um brilho para a programação do MI. O forte desse evento são as oficinas que ocupam escolas do município oferecendo formações que vão do violoncelo ao entendimento do que é direito autoral, tudo gratuito para crianças, jovens e adultos, tendo ou não uma formação musical. Este ano, foram 700 alunos presentes em 76 oficinas ministradas por 40 professores.

Um dos destaques foi a prática de grupo de rock, ministrada pelo gaúcho Ariel Coelho e o cearense Marcelo Holanda. Professor de fisiologia e biomecânica, Ariel é um pesquisador da voz, com foco na distorção, atuou por mais de 20 anos na banda de "classic rock" Coda, em Santa Catarina onde reside, e veio pela segunda vez ao MI.

"É lindo do ponto de vista da função social e pedagógica, que foi onde me pegou. Se depender de mim, sempre estarei aqui", adianta ele que apresentou o resultado de uma semana de trabalho com alunos cantando e tocando Black Sabbath, Europe, RPM, Aerosmith e A-Ha e outros.

A proposta da oficina era praticar o processo que toda banda de rock passa para montar uma apresentação, desde a seleção do repertório até a prática de ensaio em conjunto. "Eu dei sorte. Todos os cantores entregam o negócio e 'opa'! Tem professores de canto também (entre os alunos). Os instrumentistas, a grande maior parte, já tem experiência", detalha ele sobre a turma. "O meu trabalho, o desafio é muito mais ajudar a organizar", complementa.

Cantora e compositora cearense, Kátia Freitas estreou como professora nas oficinas de Canto Popular e Prática de Grupo de MPB. Afastada dos palcos para cuidar de assuntos pessoais, ela viu nesse convite uma chance de voltar para a música sem tanta exposição.

Na primeira oficina ela compartilhou dicas para aperfeiçoar e aprofundar os sentidos da interpretação de uma canção, enquanto na segunda ela montou repertório, criou arranjo (junto com Marcelo Holanda) e montou uma apresentação para o público da Praça da Matriz, que aplaudiu canções de Vinicius de Moraes, Jorge Ben e outros. "Não hesitei em aceitar por que, primeiro, uma das coisas que mais gosto na vida é aprender, e eu sabia que ia aprender muito", explica ela afirmando que se surpreendeu com o resultado. "Canto é muito mais do que técnica e afinação. O canto é imenso e é isso que estou falando desde o início", conta ela que já veio cantar em duas edições do MI.

Maria da Cruz Rayane, 32 anos, também é cantora e professora, mas veio a Viçosa como aluna, em primeiro lugar, para ter aulas de rock com Ariel Coelho. Natural do Piauí, ela estreou aos 6 anos fazendo um solo (por que nenhuma criança abriu a boca) no Dia das Mães. O bom resultado rendeu um convite para o Dia dos Pais e, aos 10 anos, ela estava num coral com mil vozes infantis.

"Eu vim para cá, tipo, na minha cabeça: 'vou cantar rock, o que me passarem, vou aprofundar meus estudos'. Aí, do nada, o Ariel vem e: 'tem alguma menina pra cantar Garota de Ipanema?'. Eu falei: 'posso fazer' e foi a primeira vez que cantei com big band. Um sonho realizado, de verdade. Isso eu não consigo explicar", emociona-se pedindo para destacar que hoje ensina na Escola Estadual de Música Possidônio Queiroz, a mesma em que começou a estudar.

Bosco Defar, professor e músico, ministrando oficina de educação musical para pessoas com deficiência visual
Bosco Defar, professor e músico, ministrando oficina de educação musical para pessoas com deficiência visual

Música acessível

Um dos destaques do MI em 2025 foi o time voltado para a acessibilidade. Um deles é o músico e professor Bosco Defar, que é aluno do festival desde 2019. Pela primeira vez, ele foi convidado para ministrar oficinas para pessoas com deficiência visual. "Apesar de ser professor, ter experiência em sala de aula, trabalhar com formação de professores para ensinar música eu nunca tinha trabalhado", comenta ele que até já deu dicas de percussão a alguns amigos, mas nunca havia se dedicado a falar sobre as questões que cercam o aprendizado da música para pessoas com deficiência visual.

Numa sala de pessoas videntes, Bosco compartilhou sua experiência de quem gosta de música desde a infância e foi aprendendo a tocar na adolescência, à medida que ia perdendo a visão. "Claro, vai também outros conhecimentos da tecnologia que nós temos à nossa disposição. O código musical para a escrita em Braile, tecnologias disponíveis no celular e computador", elenca ele, destacando a importância de difundir um pensamento mais inclusivo nas apresentações de música. "É algo muito importante, que todos os festivais deveriam ter. Muitas pessoas com deficiência, não só visual, são artistas, são músicos, apreciam música, mas são obrigadas a estar nesses espaços sem acessibilidade", aponta.

A professora e pianista Liana Monteiro, paraibana radicada no Rio Grande do Norte, veio a Viçosa falar sobre o ensino musical para autistas e planejamento de aula em ambientes inclusivos. "A característica principal, aquele clichê que define uma pessoa com autismo: uma pessoa que tem dificuldade de interagir socialmente e se comunicar. A música oportuniza esses momentos de interação, provoca para que ele vença essas barreiras. No caso da comunicação, através de atividades em pares, em grupo, com música, com letra, com canto, utilizando instrumentos, ele é capaz de vencer esses dilemas que são muito características do universo autista", explica. Ela também elogia a abertura para esse tipo de debate no MI, lamentando não ser algo comum em outros festivais. "Eu acredito na força que o MI desempenha. Não só na cidade, mas no Brasil todo, sendo modelo referência para outros festivais, mostrando a importância de se trazer isso dentro da programação", reafirma.

Daina Leyton, coordenadora de acessibilidade do MI, conta que essa pauta entrou no festival há cerca de 5 anos. "Hoje a gente entende como uma marca do festival. Temos várias frentes de atuação. Por exemplo, oficinas de formação para quem precisa entender melhor a questão da acessibilidade para atuar na sala de aula. Na aula de libras musical, são alunos do festival, todos musicistas, que querem entender como a música afeta a pessoa surda", detalha apontando ainda formações específicas para técnicos de som e intérpretes, além do fomento para pessoas com deficiência.

"Além de ser um festival de referência na formação da juventude na música, é a formação de uma juventude anticapacitista", destaca, acrescentando foram 30 alunos com deficiência em 2025. Para os professores desses alunos, também existe uma formação específica.

 

Amélia Tarcitano, 13 anos, estudante de violino e aluna do Festival MI
Amélia Tarcitano, 13 anos, estudante de violino e aluna do Festival MI

Música que sonha

Natural de Jijoca de Jericoacoara, Amélia Tarsitano veio pela primeira vez ao MI em 2024, aos 12 anos. Ouvida pelo O POVO à época, ela falou que tinha três sonhos: estudar Astronáutica ou Astronomia, participar dos Jogos Olímpicos e reger uma orquestra em Milão, na Itália. Um ano depois, a estudante de violino ampliou seus projetos de vida: passou a se dedicar também ao clarinete e agora sonha também em estudar Medicina (sem substituir os sonhos anteriores).

"Eu comecei a entrar em vários festivais, como o Choro&Jazz (em Jericoacoara), comecei a tocar clarinete, voltei de novo com a guitarra, fiz apresentações. Sou a spalla da minha orquestra", orgulha-se, destacando que levou medalha de ouro na corrida de 2km e na Olimpíada Nacional de Astronomia e Astronáutica, além de participar da Olimpíada Brasileira de Astronomia fazendo um foguete de garrafa pet (um Dolly) voar 175 metros - primeiros passos para realizar outros sonhos.

Passar pelo MI ano passado trouxe a ela alguns ganhos: "Me ajudou a ser mais quieta e mudou minha percepção do mundo ao redor. O mundo ao nosso redor tem muita maldade, mas dentro do mundo da música é o melhor que se pode ter. Um mundo de musicistas, que a gente pode se encontrar e conhece vários artistas". Para o ano que vem, ela já pretende participar da banda sinfônica do festival (com o clarinete), seguir estudando violino e participar das rodas de choro.

Aos 9 anos, João Victor já adianta que não tem sonhos, mas também está no festival pela segunda vez integrando, com seu violino, a orquestra de cordas. Filho de músico, ele já absorveu a elegância e a concentração necessária para fazer parte do grupo. Estudando música desde os 3 anos, o fortalezense também se dedica ao piano. "Ano passado, quando eu soube que ia me apresentar, senti um pouco de vergonha. Mas passou", confessa. Fã de rock e orquestra, ele já se prepara para voltar ao festival em 2026.

*Jornalista viajou a convite do Festival MI

 

Eliane, a
Eliane, a "rainha do forró", realiza show no Kukukaya, neste sábado, 7

Música que Balança

O POVO - O forró já foi um gênero consumido pelas camadas mais populares da sociedade e hoje movimenta milhões em megaeventos. De que formas essas mudanças mudaram sua forma de fazer forró?

Eliane - A música, o forró, sempre foi minha essência e eu acredito que com todos esses festivais, com todas essas mudanças que têm acontecido, claro que nunca vão prejudicar em nada a minha carreira. Tenho um respeito muito grande com todos esses artistas que fazem esses festivais, que eu já me apresentei. O forró sempre fez parte da minha vida. Eu sempre valorizo a nossa cultura. E sem medo de ousar também. Nunca perdendo a minha essência, que é o principal e o mais importante para a minha carreira.

O POVO - Os LPs deram lugar ao streaming, você tornou-se uma artista independente, o mercado da música se transformou. Como foi para você se adaptar a esse novo momento?

Eliane - Acho super importante estar por dentro de tudo. Hoje eu estou me adaptando muito bem às redes sociais, com toda a plataforma digital que está aí. Vender, divulgar todo o meu trabalho, seja com clipes, seja com gravações, seja com participações. Tem os feats (participações em projetos de outros artistas) que são muito importantes para os artistas. Hoje eu estou fazendo parte, graças a Deus. E realmente não foi fácil, mas tudo isso faz parte de uma mudança. Estou muito feliz por muita gente estar procurando meu trabalho, valorizando, respeitando. Por causa das redes sociais, foi trazido de volta, de 1985, um grande sucesso da minha carreira, "Pode me torturar". Gratidão a quem pegou essa música e explodiu novamente.

O POVO - Você está em Viçosa encerrando um festival voltado para a formação musical. Queria saber da sua formação como cantora, quem foram os professores mais importantes que você teve para se fazer artista.

Eliane - A minha formação para me tornar artista, em primeiro lugar, Deus me deu esse talento incrível, maravilhoso, que eu amo e passei toda a minha vida escutando incríveis artistas talentosos e do forró. Dominguinhos, Luiz Gonzaga, Elba Ramalho, Marinês, Anastácia, Jackson do Pandeiro... Mas eu tenho uma grande formação desde a minha adolescência, que a música internacional. Na época de escola, as FMs tocavam muito música internacional e eu curtia demais. Berry White, Tina Charles, Phil Collins... Claro, nada a ver com forró, eu sei, é um outro estilo.

O POVO - Em mais de 40 anos de carreira, qual a lição mais importante que a música te deu?

Eliane - A maior lição para mim é a humildade que o artista tem que ter para que tenha um sucesso duradouro. É respeitar o próximo. Todos têm um lugar ao sol. Mas humildade e pé no chão. Nunca deixar o sucesso subir à cabeça, porque senão realmente você não vai ter uma carreira duradoura e não vai crescer nunca.

O POVO - Você há muitos anos é reconhecida como a rainha do forró. Se fosse passar essa coroa para uma sucessora, quem seria e por que?

Eliane - Olha, seria injusto, né, eu citar alguém para dizer para quem eu passaria essa coroa. O tempo dirá, o público eu acho que é melhor para isso, né? São muitas artistas talentosíssimas, amigas queridas, que cantam muito. O tempo dirá.

 

Depoimentos

"Sou uma pessoa não muito social, mas fiquei surpresa que eu consegui me enturmar. Estou agora mais livre de conseguir falar. Eu não sinto que esse ambiente do festival é difícil para conversar com as pessoas"

Maria Alice Rodrigues, 22 anos, estudante de música da UFC, que fez oficinas de prática de guitarra e grupo de MPB

"Vir para o MI foi importante até para maturar meus projetos. É um festival com o intuito de formação e toda a banda (que toca com ela) veio e está aqui maturando os projetos, cada um na sua oficina".

Jess Castelo, 30 anos, cantora

"Foi muito bom vir para o MI por que o canto popular (oficina que ela fez) é bem MPB e vi que não é minha área (risos). Curti muito"

Alicia Pereira, 21 anos, cantora e atriz em musicais de Juazeiro do Norte

"Conheci o violino através da minha mãe, que gostava muito do instrumento e ficou sabendo que ia abrir uma instituição de música perto da minha casa. Eu não queria fazer aula, mas minha mãe disse: 'vá e teste'. Eu até quis sair, mas ela não deixou. E que bom que ela não deixou, por que hoje é a minha profissão"

Thais Amâncio, 22 anos, estudante de violino

"Nunca imaginei que fosse ser músico. Mas desde a primeira vez que peguei um violino, esse é o meu instrumento e é isso que eu quero"

João Fernandes, 22 anos, estudante de violino

"Meu sonho é estudar e tocar fora do Brasil. Passar um tempo praticando, para depois vir para cá com um nível elevado"

Andrei Róseo, 23 anos, estudante de violino

"Cheguei esse ano (pela primeira vez) e estou aproveitando de tudo um pouco"

Débora Fonseca, 22 anos, estudante de violino

 

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