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'Pssica': nova série da Netflix explora o corpo como objeto
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'Pssica': nova série da Netflix explora o corpo como objeto

"Pssica", nova série da Netflix, aborda a realidade do tráfico humano na Região Norte do Brasil
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Da esquerda para a direita: Mariangel (Marleyda Soto), Janalice (Domithila Cattete) e Preá  (Lucas Galvino) (Foto: Reprodução/Netflix)
Foto: Reprodução/Netflix Da esquerda para a direita: Mariangel (Marleyda Soto), Janalice (Domithila Cattete) e Preá (Lucas Galvino)

Quando tinha por volta dos 16 anos e frequentava o segundo ano do ensino médio em uma escola evangélica, a professora de redação teve a ousada ideia de exibir o filme "Anjos do Sol" (2006) durante duas aulas. Não lembro a razão, mas a sensação de angústia que tive ao ver cenas de exploração sexual e descobrir a dura realidade que sofrem vítimas desse tipo de violência, permanece.

O longa de Rudi Lagemann me veio à mente quando dei play na minissérie "Pssica", recém-chegada ao catálogo da Netflix.

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Baseada na obra homônima escrita por Edyr Augusto, a trama acompanha duas mulheres, Janalice (Domithila Cattete) e Mariangel (Marleyda Soto), que têm seus destinos entrelaçados de modos distintos pelo machismo e patriarcado. Jana é vítima de tráfico sexual, já Mariangel busca justiça pela vida do filho, morto por piratas fluviais.

Com uma narrativa intensa, a produção dirigida por Quico Meirelles ("A Galinha que burlou o sistema") inicia com a protagonista exposta à violência sexual desde a escola, ao ter um vídeo íntimo exibido.

Pssica: entenda a série

A vivência, infelizmente comum a muitas brasileiras, é abordada com "Male Gaze" (olhar masculino que mostra o corpo das mulheres como objeto) no início da trama e segue a mesma linha conforme Jana vai sendo exposta - seguidas vezes ainda no primeiro episódio. O que torna a série difícil de engatar. Além disso, Quico, assim como seu pai, Fernando Meirelles - que assina com o filho a direção de um episódio - parece gostar de mostrar a violência contra corpos dissidentes.

Corpos negros, queers, indígenas e de mulheres sofrendo violência são uma presença ao longo dos quatro episódios de uma hora de duração. Apesar de se tratar de um thriller, a série poderia investir em outros modos de expor as violências.

Da esquerda para a direita:Lucas Galvino, o Preá, Marleyda Solta interpreta Mariangel e Domithila Cattete é Janalice(Foto: Divulgação/Netflix)
Foto: Divulgação/Netflix Da esquerda para a direita:Lucas Galvino, o Preá, Marleyda Solta interpreta Mariangel e Domithila Cattete é Janalice

Essa falta de cuidado gera um incômodo em quem assiste, principalmente se esse alguém fizer parte das minorias citadas. Pelo menos, foi o que essa jornalista que vos escreve sentiu ao ver tantas pessoas que já sofrem violência na realidade passarem pelo mesmo na ficção.

Ainda que se trate de um thriller e o gênero por si só exija que a violência seja demonstrada, existem modos mais sensíveis e sutis que tornam as cenas mais viscerais de serem assistidas. Os recentes filmes "Manas" (2024), de Marianna Brennand Fortes, e "Pisque Duas Vezes" (2024), de Zoë Kravitz, fizeram isso com maestria.

A impressão é que os diretores dedicaram tanto tempo a mostrar violência que se esqueceram de aprofundar sobre o passado conturbado de Mariangel como guerrilheira. Apesar disso, o enredo se desenvolve numa crescente interessante com pontos de virada cheios de suspense que despertam medo e uma ponta de esperança.

Algumas cenas ganham mais nuances e sutileza, diminuindo um pouco da violência gráfica. O espectador se sente envolto na mesma maré de maldições das personagens, a "Pssica", gíria nortista que dá título a série e indica mau presságio. Tudo isso embalado de muito rock doido, que traz uma leveza nos momentos mais tensos.

Série "Pssica" tem direção de Quico e Fernando Meirelles, pai e filho(Foto: Netflix/Reprodução)
Foto: Netflix/Reprodução Série "Pssica" tem direção de Quico e Fernando Meirelles, pai e filho

Outro êxito da produção é o elenco. Domithila entrega uma personagem condizente do que se esperaria de uma adolescente passando pelas situações as quais ela viveu. Sem baixar a cabeça ou bancar a donzela em perigo, Jana não desiste de lutar por si mesma e por suas outras amigas na mesma condição.

Marleyda, que esteve recentemente em "Cem anos de solidão" (2024), também da Netflix, brilha ao trazer uma mulher essencialmente latina, que mesmo sendo colombiana traz a força que perpassa gerações de mulheres atravessadas pela violência na América do Sul.

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O cearense Lucas Galvino é o bandido metido a bom moço Preá. Filho do chefe dos piratas, ele luta para ter sua posição no mundo do crime enquanto tenta elaborar uma boa ação aqui e acolá, como poupar algumas mulheres de serem violentadas por seus companheiros. Já a atriz cearense Fátima Macedo dá vida à personagem Daiane.

Em relação à cultura do Norte, a série comete erros que poderiam ser evitados. A começar por um dos deslizes mais bobos com o personagem Miltinho, um menino indígena que está em busca da irmã. Não é indicada qual é a aldeia ou se ele e menina têm pais. São duas figuras que aparecem como auxiliares.

O tipo de história que já vimos em longas como "Cidade de Deus" (2002). Uma trama de denúncia sobre a realidade do Brasil que vai agradar à audiência, como vem acontecendo, afinal a série entrou para a lista das mais assistidas da Netflix. No entanto, se ancora na exploração da violência contra corpos dissidentes para alcançar seu sucesso. Definitivamente uma obra de Fernando e Quico Meirelles: tal pai, tal filho.

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