No dia 28 de março de 2026, Gilberto Gil apresentará a turnê Tempo Rei no Allianz Parque, em São Paulo. Pelo que sabe até o momento, não só será o último show dessa temporada, como o último show de Gilberto Gil. Tal qual anunciado em agosto de 2024, esse giro por estádios e outros locais de grande capacidade será a última oportunidade de encontrar o músico baiano, um dos maiores da geração que criou a MPB, antes da aposentadoria. Além do encontro com o público, a turnê também é a chance dele encontrar novos e velhos amigos que entram como convidados surpresa em cada apresentação. Arnaldo Antunes, Sandy, Caetano Veloso, Herbert Vianna e até os ermitões Chico Buarque, Jorge Benjor e Roberto Carlos entraram para a seleta lista.
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A turnê Tempo Rei passou por Fortaleza no último fim de semana, com shows no sábado, 15, e domingo, 16, no Centro de Formação Olímpica (CFO). Pareceu pouco diante da expectativa do público que garantiu casa cheia nas duas noites, inclusive com direito a muita reclamação pelo calor que fazia dentro da casa. E olha que a apresentação não é modesta: são cerca de três dezenas de músicas executadas por uma banda grande e azeitada ao longo de quase três horas. E o primeiro acerto da turnê está no nome que ela levou: o espetáculo promove uma viagem ao mesmo tempo íntima e pública pela vida de Gil, que se confunde com a história nacional, passando por encontros, desencontros, dramas e vitórias que deixam uma dúvida sobre se o tempo foi um soberano generoso com Gil ou se Gil foi quem reinou sabiamente sobre o tempo.
Fato é que Gil soube usar o tempo que tem para se despedir e aproveitou para recontar a própria história. O show não abre muito espaço para conversa, deixando as músicas falarem por si. Mesmo sem uma ordem cronológica exata, os blocos vão surgindo e relembrando passagens de sua vida e carreira. Dando apoio a essa narrativa, luzes de todas as formas e um telão suspenso no centro de palco, em forma de espiral para representar o contínuo infinito do tempo.
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Ao fundo, outro telão ilustrava cada passagem com imagens da Bahia que viu Gil nascer, cenas íntimas de família, viagens pelo mundo. Em um vídeo, no bloco sobre ditadura e exílio, Chico Buarque comenta a apresentação de "Cálice" no Phono 73, quando agentes da ditadura cortaram os microfones como forma de censura. Essa foi a deixa para o público puxar gritos de "sem anistia", que Gil ouviu sem comentar. Em outro momento, imagens de Petra Gil ainda criança emocionaram a plateia que puxou o coro de "Preta! Preta". Ele, com poucas palavras, falou da saudade da filha falecida em 20 de julho. "Mas ela partiu, um dia todos nós vamos também", encerrou o assunto.
Uma cena muito curiosa do show no domingo foi quando Bem Gil pediu um instante para ajustar alguma coisa em seu equipamento. Gil aproveitou para dizer que estava com saudades do Eusébio. "É para ali, né?", apontou para a direção correta antes de contar alguma história, que não ficou muito clara, mas que encerrou com uma pequena lembrança de "Norte da saudade". Retomando o show, ele e a banda puderam relembrar tantas músicas que há tempos não estão em seu repertório entre outras já com cadeira cativa. "Punk da periferia", "Realce" (dois dos melhores momentos), "Beira mar", "Se eu quiser falar com deus", "Procissão" e outras.
Mas a cena que merece ficar registrada na memória de Fortaleza é a presença de Ednardo como convidado no sábado, 15. O mais cearense entre nossos compositores passou por uma série de problemas de saúde nos últimos anos, inclusive comprometendo sua voz. Por isso também, sua presença na despedida de Gilberto Gil foi algo histórico. Se há ou houve alguma intriga entre tropicalistas e Pessoal do Ceará, a trégua veio de forma emocionante, num dueto em "Andar com fé". No domingo, 16, o convidado foi Waldonys, que cantou "Lamento sertanejo" acompanhado de sua sanfona e dividiu "Esperando na janela" com o anfitrião. Waldonys é craque, mas já era um convidado mais certo e aguardado para a noite.
A turnê Tempo Rei tem um roteiro de intenção muito clara: celebrar a vida e a obra de Gilberto Gil. Por baixo das muitas toneladas de equipamentos de fumaça, luz, projeção, fogos de artifício e chuva de papel picado (que encerra o show lindamente), a história de um compositor que, falando de si, encontrou eco em muitos. Quem acompanha sua carreira há mais tempo pode ver um filme passando pela memória com tantas passagens que misturam arte, política, sentimentos, transformações sociais, mudanças de cenário. A cada música um novo capítulo dessa história que se mistura com a história do brasileiro, desde a era dos festivais, passando por ditadura, redemocratização, avanços tecnológicos e a vida seguindo. A última foi "Sítio do Pica-Pau amarelo", como se ele pudesse, magicamente, fazer todos ali voltarem à infância, a tempos mais lentos e ingênuos. Mas o tempo é esse contínuo infinito e não anda para trás. Gilberto Gil, aos 83 anos, segue para a aposentadoria. A nós resta agradecer pelo serviço público que ele nos prestou em mais de 60 anos de carreira.