"MONTEVIDEO, 9 — A. A. — As quatro series preliminares que disputarão o campeonato mundial, ficaram assim constituídas: — primeira Argentina, França, Chile e Mexico; segunda Brasil, Yugoslavia e Bolivia; terceira, Uruguay, Rumania e Perú; quarta, Paraguay Estados Unidos e Belgica."
Ao centro, a seção “Mundanismo” trazia poesia de Julio Maciel intitulada “Ânsia de Viver” e listagem de “anniversarios” de “hontem” e hoje. À esquerda, classificados recheados de oportunidades tais como “Bollas de marfim para bilhares”, “Carteiras para senhoras”, "vidro de sururú das Alagoas" (Um vidro dá 10 pratos!) ou “Petróleo Vigor” (Uma loção medicinal e perfumada, a melhor para os cabellos).
Acabrunhado no canto superior direito, O POVO da quarta-feira, 9 de julho de 1930, anunciava os quatro grupos da primeira fase da Copa do Mundo daquele ano — a primeira da história e que viria a se iniciar uma semana depois, em Montevidéu, no Uruguai. A primeira rodada deste Mundial completa 90 anos nesta segunda-feira, 13 de julho de 2020.
A primeira menção ao torneio foi ainda mais discreta. Abaixo do anúncio sobre o “Segundo Congresso Trabalhista do Brasil”, acima de notícia sobre a assinatura de acordo entre o País e a Colômbia sobre as fronteiras de ambos, uma nota de 135 caracteres. “ROMA, 20 (A. A.) —A Federação Italiana resolveu não concorrer ao campeonato mundial de foot-ball, a realizar-se este anno em Montevidéo” (O POVO, 20/3/1930, página 5)
A Copa do Mundo era nota de rodapé, feitas de relatos de correspondentes e agências de notícia internacionais. Não éramos o país do futebol, portanto as regras estavam todas ainda em aberto.
Oito anos depois, “cracks” brasileiros desfilaram na seleção da Copa do Mundo: um Diamante Negro e um Divino Mestre, negros e altivos como o futebol brasileiro. Passados mais 12 anos e o Uruguai calou o Rio de Janeiro quando Ghiggia acertou chute cruzado, fora do alcance de Barbosa. Mais oito anos e surgia aquele que Nelson Rodrigues apelidou de “rei”, e o Brasil finalmente seria coroado — por uma majestade de trono e cetro, Gustavo VI, da Suécia.
Um anjo de pernas tortas (e um possesso) levantaram o Bi em 1962. Em 1970, cinco “camisas 10” — e o tal do rei se fazendo eterno — garantiram o Tri e a posse da Jules Rimet, que seria em pouco tempo derretida.
Um baixinho nos fez Tetra em 1994. Uma família cheia de “erres” fincaria o Penta em 2002. E de 1930 para cá, Itália e Alemanha se fizeram Tetra, Uruguai e Argentina viraram Bi, Espanha e Inglaterra ganharam estrelas solitárias. Na Rússia, em 2018, 1,12 bilhão de pessoas assistiram a França derrotar a Croácia por 4 a 2 para também sagrar-se Bi.
Estima-se que em 1927, meros três anos antes da Copa do Mundo do Uruguai-1930, a população global era de pouco mais que 2 bilhões. No Brasil, eram meras 36 milhões de pessoas. O futebol era mais uma aventura trazida por ingleses e que se multiplicava em paixão de sul-americanos. Nem sonhava ser o esporte mais popular do mundo, o esporte mais popular da história.
Pesquisa no acervo O POVO: Roberto Araújo
Pouco afeito a futurologia, o jornalismo deu a dimensão que um campeonato de “foot-ball” merecia à época.
O POVO, fundado dois anos e meio antes, acompanhou à distância a aventura chamada Copa do Mundo. Aventura esta que começou paralelamente em dois campos. Um no Parque Central, até hoje ativo. E outro que no jargão de hoje seria definido como várzea. Foi em Pocitos, para público de 4 mil pessoas, que, aos 19 minutos do primeiro tempo, o francês Lucien Laurent marcou o primeiro gol de Mundiais e faz a roda da história girar.
Reportagem de João Marcelo Sena, jornalista do O POVO, para o Globo Esporte, em 2014, revela que já em 1946, o palco do primeiro gol foi demolido para a construção de estação de metrô. Até hoje, dá espaço para casas e comércios.
Muito por causa da viagem de barco Europa-América do Sul, a primeira das Copas foi quase exclusivamente americana. Das 13 inscritas, apenas quatro eram do Velho Continente. No O POVO de 15 de julho de 1930, nenhum deste quarteto enfileirava a lista de favoritos — tampouco o Brasil.
O desdém pela seleção tinha causa confirmada. Dentre os 15 atletas de equipes paulistas convocados, apenas um, Arasken Patusca, viajara com o time. Entre as ausências, destacava-se Arthur Friendenreich. Presente nos primeiros títulos da seleção, a Copa Roca de 1914 e os Sul-Americanos de 1919 e 1922, o primeiro astro do futebol nacional acabou impedido de representar o Brasil por conta do primeiro grande desmando de cartolas em território tupiniquim.
Acontece que o bairrismo falou mais alto. A celeuma começou com a final do Brasileiro de Seleções em 1927, vencido por cariocas após os paulistas abandonarem a partida por polêmica na arbitragem — até o presidente Washington Luís foi ignorado na hora da decisão. E descambou em 1930, quando a Associação Paulista de Esportes Atlético (Apea) solicitou “… a indicação de um representante para auxiliar na seleção de elementos paulistas”, segundo cita Max Gehringer em A Grande História dos Mundiais 1930, 1934, 1938.
A proposta desagradou à carioca Confederação Brasileira de Desportos (CBD), cujo presidente decretou "guerra" à associação paulista. E assim, publicamente, a Apea “para evitar a continuação das humilhações (…) recusou a cooperar com seus jogadores para formar o selecionado brasileiro”. Max Gehringer cita que se seguiu uma briga pública, com jornais paulistas e cariocas como porta-vozes de cada um dos “patriotismos” bairristas, e ninguém dando o braço a torcer.
Dentre os 23 convocados, 15 originalmente eram paulistas. A cifra caiu para nove, enquanto a rusga escalonava. Até 27 de junho, a Fifa ainda aguardava a nova lista tupiniquim. “O assunto foi encerrado na noite de 28 de junho, no Salão Nobre do Botafogo, quando a CBD ofereceu um jantar de despedida para a imprensa carioca, em agradecimento à solidariedade dos jornalista à CBD durante a crise” (GEHRINGER, Max, A Grande História dos Mundiais 1930, 1934, 1938).
A negociação por Friedenreich começou por outro caminho. Ele argumentava que questões pessoais o impediam de se ausentar de São Paulo por mais de 30 dias. Foi quando a CBD tentou o último bote e conseguiu convencê-lo. Mas eis que veio o “entrevero”, sepultando as chances do centroavante do São Paulo da Floresta de exibir seu talento em campos globais.
Como a internet nem ousava ser sonho, as notícias viajavam de telégrafo (quando não de navio). Assim, foi só na terça-feira, 15 de julho, que O POVO noticiou a primeira rodada da Copa do Mundo de Futebol de 1930. A feita mereceu mais pompa, com a página 2, “O POVO Desportivo”, praticamente toda dedicada às partidas de domingo.
“O Inicio do Campeonato mundial de Futeból” (O POVO, 15/7/1930, página 2), manchetavam os dizeres, com destaque para a vitória dos norte-americanos sobre os belgas e para a derrota dos mexicanos para os franceses. Discretamente, a estreia do Brasil com revés vinha logo abaixo, 2x1 para a Yugo-Slavia, com escalações completas. "Scratch brasileira: Joel; Brilhante e Zéluis; Hermógenes, Fausto e Fernando; Poly, Nilo, Araken, Prego e Theophilo. Yugo-Slavos: Sacritch; Iviknovich, Nuhalovitch; Arsenievitch, Stefanovick e Djokitch; Tirnamitch, Mariannovitch, Beckatch, Vanojadininovitch e Sekoulitch". Os times jogaram em um 2-3-5 que faria o megaofensivo Rogério Ceni ruborizar.
“O dia amanheceu frio, muito vento e pouco sol. Os brasileiros sentem frio, mas tudo foi providenciado para que os mesmos, durante a partida, usassem duas camisetas”. A primeira crônica esportiva do O POVO sobre o Brasil em uma Copa do Mundo abre com um “jeitinho brasileiro”.
O texto começa antes de a bola rolar, enumera os protocolos e fala da primeira vitória da ainda não Canarinho: “O toss (cara ou coroa) favoreceu o Brasil que joga com vento contrário”.
Após narrar os dois gols iugoslavos, O POVO reclama da desorganização brasileira, com “jogo imcomprehensivel”.
“Apesar de os brasileiros atuarem ruim, com tiros inconcebíveis, aos 16 minutos de jogo marcam o primeiro ‘goal’, por intermédio de Nilo”.
Assim, O POVO errou ao não creditar o primeiro tento da seleção em Mundiais para Preguinho — ou Prego, como chamaram.
Preguinho talvez fosse o mais famoso entre os 11 em campo na estreia do Brasil em Copas. Não só porque o futebol já galgasse todas as glórias da nação ou porque o entrevero entre Apea e CBD impedira Friedenreich e cia de viajar ao Uruguai. Atleta do Fluminense por toda a carreira, o atacante era filho de Coelho Neto, escritor que sentava na cadeira número 2 entre os fundadores da Academia Brasileira de Letras (ABL).
Mas não se faz justiça histórica citando logo que o pai era o “Príncipe dos Prosadores”. Carioca, João Coelho Netto era sócio do Flu antes mesmo de nascer. As glórias, reza-se, não se resumem aos campos. Diz que Preguinho é votação unânime de maior atleta da história do Tricolor, já que foi campeão no futebol, mas também em remo, vôlei, basquete, polo aquático, saltos ornamentais, natação, hóquei e atletismo.
Em campo era atacante e orgulhosamente amador, tendo se recusado a receber salário quando da profissionalização da modalidade. Terminou a carreira com 128 gols e é hoje o oitavo maior artilheiro da história do Fluminense — a média de gols, porém, o coloca bem acima. Bicampeão carioca, faleceu em 1979, vítima de problemas pulmonares.
Dentro de um triangular onde apenas um dos times avançava já às semifinais, o Brasil levou a pancada na estreia e já precisava torcer contra os algozes para não soltar o fio da esperança. Em 17 de julho, a Iugoslávia precisava perder para a Bolívia de forma que seleção carioca-brasileira ainda tivesse chances.
Aparentemente, O POVO de 18 de julho de 1930 não sabia disso.
“O POVO Desportivo” trazia os resultados da rodada do dia anterior e, com ela, a derrota por 4 a 0 de bolivianos para sérvios. Assim, os balcânicos chegavam a 4 pontos (vitória valia 2), enquanto os brasileiros só podiam galgar 2, como o fizeram. “Apesar de derrotados, os bolivianos acturaram excellentemente” (O POVO, 18/7/1930, página 7), resume, sem menção aos conterrâneos dos assinantes.
No 20 de julho, o Brasil vencia a primeira. E de goleada. Era dia seguinte quanto O POVO relatou.
“MONTEVIDEO, 21 — A. A. — Vinte mil pessoas assistiram o jogo Brasil-Bolívia, hontem, realizado. Os brasileiros mostraram-se optimos jogadores, desenvolvendo regular technica. Preguinho foi o homem da tarde; quasi todos 'goals' brasileiros foram feitos por elle. Os brasileiros venceram pela 'score' de 4 x 0” (O POVO, 21/7/1930, página 2)
Após três interlúdios sobre Paraguai x Bélgica ontem, Romênia x Uruguai hoje e os times já classificados de cada chave, descobrimos que já estávamos fora da disputa. “MONTEVIDEO, 21, A.A. — Além do Brasil e da Bolívia, já estão eliminados do campeonato a Belgica e o Paraguy”.
Na terça-feira, 22, a nota final, em tom otimista.
"MONTEVIDEO, 22. A.A — O jogo brasileiro de domingo deixou no espirito publico optima impressão. Jogaram bem no primeiro tempo e melhor ainda no segundo. A delegação brasileira regressará nestes dias para o Brasil, não participando, porisso, de quaesquer jogos amistosos<br><br>"
Descrita a invasão argentina ao Montevidéu, o resultado do cara ou coroa e os primeiros chutes na bola, assim O POVO descreveu o primeiro gol em final de Copa. “Decorridos os primeiros 10 minutos, os uruguayos permanecem atacando, havendo novo escanteio contra os argentinos. Dois minutos mais tarde Scarone marca o primeiro ponto dos locaes” (O POVO, 1º/8/1930, página 2). E isso se segue a virada, com Poncello e Stábile — com as grafias usadas à época —, antes do fim do primeiro tempo.
Só que veio nova virada para os “locaes” na segunda etapa. Cea, Marte e Scarone completam o 4 a 2 derradeiro daquela Copa tão histórica quanto pouco conhecida. “A assistencia prorompe em palmas, surgem vários protestos de parte da colonia argentina, alguns exhaltados acusam o 'referee' de actuar parcialmente. E assim terminou o jogo com a victoria dos uruguayos, pela 'score' de 4 x 2.
Diz a matéria que, insatisfeitos, os argentinos partiram rumo ao Consulado uruguayo para expressar o desagrado na forma de pedras lançadas rumo ao prédio. “A polícia carregou sobre os manifestantes, desenvolvendo-se serio conflito, do qual sahiu um policial e um popular ferido, este em estado grave”.
A tarde mais triste da história do Maracanã se escreveu há 70 anos, quando o Brasil perdeu a Copa do Mundo para o Uruguai