A tarde mais triste da história do Maracanã se escreveu há 70 anos. Público de quase 200 mil pessoas viu a certeza de título brasileiro desvanecer quando Ghiggia acertou chute cruzado, fazendo do Uruguai bicampeão mundial
Episódio 2
A Copa do Mundo de 1950 e o Maracanaço no O POVO
A tarde mais triste da história do Maracanã se escreveu há 70 anos. Público de quase 200 mil pessoas viu a certeza de título brasileiro desvanecer quando Ghiggia acertou chute cruzado, fazendo do Uruguai bicampeão mundial
Perdeu, assim, a equipe nacional uma oportunidade como nunca mais encontrará para ser detentora do cetro do futebol mundial" O POVO, 17/7/1950, página 4
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Na quarta Copa do Mundo da história, pela terceira vez um anfitrião chegava à final. Era 16 de julho de 1950. Maracanã apinhado como nunca antes, como nunca depois, recebeu o invencível recorde de 199.854 pessoas — à boca miúda, consta que muitos mais. De um lado, de branco, o Brasil, que vinha de largas goleadas por 7 a 1 e 6 a 1 sobre Suécia e Espanha. Do outro, de azul-celeste, o Uruguai, que não passou de 3 a 2 e 2 a 2 sobre os mesmos times.
Os anfitriões precisavam apenas de um empate e abriram o placar já no segundo tempo, aos 2 minutos, com Friaça. Ao final da partida, conta O POVO de 17 de julho de 1950, foram 12 escanteios para cá, 2 para lá. Mas eis que opera um agente implacável: o futebol.
“No futebol existem coisas imprevisíveis. Daí por que é comum dizer-se que no “association” não há lógica. Esta, se prevalesse-se, o Brasil não teria perdido o título de campeão mundial ontem à tarde, para o Uruguai” (O POVO, 17/7/1950, página 4)
Curiosamente, o texto diz que o Uruguai “conquistou pela terceira vez o título de campeão universal”. Lá eles se consideram Tetra, em referência às Olimpíadas de 1924 e 1928; são de fato Bi, com as Copas de 1930 e 1950. O Tri deve ser fruto da ausência de computadores, Internet, Google, fundados décadas depois.
Ao contrário de 1930, em que a cobertura foi focada em textos de agência escondidos em páginas internas, a edição de 17 de julho de 1950 — um dia após o evento que viria a ser conhecido como “Maracanaço” (ou "Maracanazzo", à espanhola —, trazia duas páginas de cobertura, sendo uma delas a Capa. Trazia textos autorais, bem como mesclas de duas agências diferentes. E imprimiu o sentimento de incredulidade que invadiu o Rio de Janeiro após Ghiggia calar o maior estádio do mundo.
Na Primeira Página do O POVO, três assuntos dividiam espaço. O destaque principal era para a Guerra da Coreia. “Os soldados sulistas infligem duros revezes aos comunistas”, em texto da agência France-Presse. Logo ao lado, “Os motoristas do Ceará com o Brigadeiro e Edgar de Arruda” — um “manifesto” dos “chauffeurs” em apoio ao candidato à Presidência pela UDN, que viria a ser derrotado por Getúlio Vargas na eleições presidenciais de outubro.
Todo o restante era dedicado ao que ocorreu no Rio de Janeiro. “Desolação em todo o País diante da tragica derrota de 2 x 1”, cantava o topo da página. “O tragico 2 x 1 repercutiu como um dobre de finados na alma esportiva do Brasil”, enunciava a matéria/chamada âncora. Ao lado, o técnico da seleção tentava justificar: “Com a palavra, Flávio Costa: Todos somos responsaveis pela derrota”. Lá em cima, discreto, o outro lado. “Delírio em Montevidéu com a vitória do seu selecionado”.
“Perdeu, assim, a equipe nacional uma oportunidade como nunca mais encontrará para ser detentora do cetro do futebol mundial”. É nesta hipérbole, que se provou errada 8 anos depois (e novamente 12, e 20, e 44, e 52 anos depois), que a incredulidade transborda. Se o Brasil não ganhou em 1950, quando tudo conspirava em favor, não ganharia nunca. “Talvez por excesso de otimismo” dos “comentadores”, aponta o texto, olhando para os dias anteriores de festa e certeza.
Onze rostos adornam a página 7 do O POVO de 15 de julho de 1950 — a última antes do jogo em si, já que a publicação não circulava aos domingos. À esquerda, Barbosa no topo, Augusto no centro, Juvenal abaixo. No lado oposto, Bauer, Danilo, Bigode. No centro vinham Maneca, Zizinho, Ademir, Jair e Chico. Quarenta e oito horas depois, eles seriam vilões para uns, vítimas para outros. Ali, eram heróis que levariam toda uma nação a outro patamar.
“O Brasil marchará confiante para a conquista do título máximo do futebol mundial” (O POVO, 15/7/1950), crava o abre. Pouco abaixo, a chancela internacional. “Os dirigentes espanhois nunca viram futebol igual”, reza o texto assinado pela agência Asapress.
O texto principal, de alcunha do O POVO, é cauteloso.
“Há quem aponte os orientais (uruguaios, em referência ao nome do país, República Oriental do Uruguai) como presa fácil para os comandados de Ademir (de Menezes, destaque do time) (...). Outros observadores, menos otimistas, consideram, porém, os uruguaios os adversários mais perigosos, não só por conhecerem melhor o padrão do futebol nacional, mas pelo fato de terem reservado todas as suas energias para o último embate”.
A segunda parte, hoje sabe-se, preconizava o futuro. A matéria não conta com assinatura, mas intui-se que tratava-se de obra de Antonio Tavares, primeiro correspondente do O POVO em uma Copa do Mundo.
Também no 15 de julho, a matéria secundária lembra do 6 a 1 sobre a Espanha e cita que “todos os jornais apareceram com títulos explosivos, exaltando o triunfo nacional e divulgando farto serviço fotográfico dos jogadores brasileiros”.
No dia anterior, a mesma página 7 trazia, em dizeres enormes, “Brasil 6x1 Espanha”, com fotos de Ademir às esquerda, Zizinho à direita. No texto não falta grandiloquência. O “seleccionado brasileiro” “abatendo a representação espanhola”, “aniquilado pelo scratch nacional”, “desapareceu como encanto a decantada ‘fúria’ espanhola”. (O POVO, 14/7/1950, página 7)
Abaixo, discretamente, O POVO avisa: “Dificil a vitoria dos uruguaios sobre os suecos” — “embate fraco e renda decepcionante”.
No dia seguinte, a reverência espanhola é debulhada. “Perdemos — é certo — mas ante um onze que apresenta um futebol que nós espanhóis nunca vimos antes igual”, fulmina Munhoz Calero, chefe da delegação do país ibérico. Comissário da Fifa na delegação europeia, Pedro Scartin cita que o trio Zizinho, Ademir e Jair seria capaz de “brechar qualquer defesa”.
Ministro brasileiro da Guerra, equivalente à atual Defesa, general Canrobert Pereira encerra o texto. “Estou certo que devemos vencer os uruguaios”.
A opinião pública condenou, e a história termina por tentar absolver, o mártir escolhido a dedo na repercussão nacional. Ao repórter Helvídio Mattos, em 1994, Moacir Barbosa — o goleiro Barbosa — fechou a definição de como foi representado.
“Olha, as leis de condenação aqui no país, quanto é? Quanto é? A maior condenação quanto é? É 30 anos, né? É 30 anos que o sujeito tem que cumprir. (...) Nós estamos com 43 anos (desde 1950), e eu acho que paguei dez anos ou quatorze anos a mais” (CORNELSEN, Elcio Loureiro, em “A memória do trauma de 1950 no testemunho do goleiro Barbosa”)
O POVO mantinha a tese que imprimira em 17 de julho de 1950 e até hoje é debatida. “Uns querendo colocar a culpa em Bigode, de cujo setor de marcação nasceram os dois tentos que aniquilaram os brasileiros, e outros ainda mal encarando Flávio Costa, que desprezára este ou aquele elemento para colocar protegidos” (O POVO, 20/7/1950, página 7), assina Antonio Tavares, via “News Press”.
No dia anterior, Flávio Costa falava da responsabilidade coletiva, mas citava apenas Barbosa nominalmente — no que tanto pode ser edição local, quanto pode ter sido expressão que vazou na frustração. Já no dia 19, ele cita os méritos do rival, garantindo não ter faltado luta.
A Copa do Mundo de 1950 só acaba mesmo nas páginas do O POVO em 25 de julho, mais de uma semana após o gol de Ghiggia que impôs o maior silêncio da história do Maracanã, para o maior público da história do futebol.
Antonio Tavares interpreta, agora com distanciamento, o sentimento do Rio de Janeiro. “A vitória dos uruguaios foi uma vitória coração. A derrota foi também uma derrota do coração”. Para ele, a pressão de 200 mil, que em tese ajudaria o Brasil, acabou por pesar nas chuteiras. Os “orientais” nada tinham a perder e jogaram com a gana que os marca até hoje.
O repórter aponta a heterodoxa tese de que o “goal” de Friaça, para o Brasil, selou o triunfo do Uruguai. “Se o jogo fosse no Uruguai, acreditamos que o teriamos forçosamente ganho a partida, porque não incorreriamos no mesmo erro que incorremos quando conquistamos o nosso tento, sendo tecnicamente superiores, sem descaso nenhum ao adversário, ajudados mais pelo coração, no mínimo chegaríamos a um empate”.
Pouco antes, no dia 20, o enviado especial já tratava de reerguer os ânimos e projetar. “Preparemo-nos agora para as (disputas) que virão e talvez a lição aprendida hoje não seja esquecida tão rapidamente”. Oito anos depois, Hilderaldo Bellini levantava a taça Jules Rimet na Copa do Mundo da Suécia.
Caminho até a fase final
Era 22 de junho de 1950 quando O POVO divulgou quadro com o ranking de 11 das 13 seleções que vieram ao País disputar o certame. Em primeiro lugar, profeticamente, vinha o Uruguai. O critério, pouco convencional, eram pontos perdidos na história da Copa do Mundo. Os “orientais”, que só tinham participado da edição de 1930, entraram e saíram invictos do Brasil.
Os anfitriões acumulavam três derrotas, uma em 1930, outra em 1934, a final em 1938. Vinha em sexto, atrás de seleções como a Bolívia, que jogara duas partidas e perdera ambas. Números implacáveis. O POVO tratava a fase de grupos como “semifinais do Campeonato do Mundo”— não haveria final de fato, já que o torneio previa um quadrangular decisivo — e era visto com “indescritível ansiedade” (O POVO, 22/6/1950, página 7)
O Brasil, segundo o técnico da Suíça, figuraria entre os favoritos ao lado de Inglaterra e Itália, os de “melhor futebol na Europa”.
Na véspera da partida, a bela vitória por 3 a 2 sobre o “scratch” do Flamengo aumentava a expectativa. Já a Primeira Página do dia 24 de junho e 1950 mancheta, em dizeres em oito colunas. “Tem a certeza da vitória”. O tema, porém, era a campanha presidencial e tratava da confiança do Brigadeiro Eduardo Gomes nas eleições. O Brasil viria a ser derrotado pelo Uruguai em 16 de julho. O candidato da UDN foi preterido por Getúlio Vargas em 3 de outubro.
A mesma capa trazia uma foto do Maracanã, numa então rara referência a esportes no espaço mais nobre da publicação. Longa matéria na página 7 cravava o Brasil como “favorito no prelio de hoje”. Ilustrando, fotos dos 11 prováveis titulares para o jogo das 15 horas, com o México, na abertura da Copa do Mundo de 1950.
A cobertura foi retomada na segunda-feira, 26 — não havia edição aos domingos —, a fácil vitória por 4 a 0 dos anfitriões sobre a “Azteca” era comemorada, com destaque a Danilo, Bigode, Ademir e Jair na página 7.
Seguiu-se o empate por 2 a 2 com a Suíça, noticiado de forma protocolar, bem como a expectativa para Brasil x Iugoslávia, decisão de quem avançava às finais.
Segunda-feira, 3 de julho de 1950, o enviado especial do O POVO celebrava o espetáculo de dois dias antes. “Os iugoslavos, mesmo derrotados, estiveram à altura dos brasileiros”, crava. “O ‘colosso do Maracanã’ apresentava um aspecto magnífico, completamente lotado que estava, apesar das previsões (...) de que nunca chegaria a ficar cheio”.
Com assinatura e pompa autoral, o texto de Antonio Tavares é um salto descritivo na fortuna jornalística. Cada lance ganha propriedade. “Alguns minutos depois, apontam do túnel os craques nacionais, tendo á sua frente o técnico Flávio Costa, que, dando o grito de “Viva o Brasil”, foi correspondido por todos os jogadores. Nesse momento foi indescritível o entusiasmo da torcida que gritava e agitava os lenços brancos e as inúmeras bandeiras brasileiras” (O POVO, 3/7/1950, página 4)
No texto sobre o 2 a 0 brasileiro, a conservadora (e acertada) previsão para a fase final. “Com quem ficará o cetro? É uma dolorosa interrogação. Dadas surpresas registradas nas semifinais, cada qual mais surpreendente, expõe-se ao erro todo aquele que fizer prognósticos. Mas quem, que fala pela ‘bola de cristal’ poderá antecipar o resultado”.
Política e futebol: o Mundial em editorial
Às vias da fase decisiva, O POVO apresentou expediente inédito ao tratar do futebol em editorial. Dirigido por Paulo Sarasate (UDN-CE), então deputado federal e que viria a ser governador do Ceará cinco anos depois, a publicação dispunha de caráter crítico ao que chamava de “pão e circo”.
“As concentrações do povo se acham concentradas nestes dois polos galvanizadores: o futebol e o pleito de 3 de outubro” (O POVO, 4/7/1950, página 3, editorial “Polegar para baixo”)
O ataque era indiretamente a “um pessedista gaúcho”, afeito a “telegramas procedidos do extremo sul”. No caso, Getúlio Vargas, que concorreria — e venceria — o candidato da UDN.
A crítica central foi ao monumento romanesco que era a construção do estádio Mário Filho, o Maracanã. “O maior do mundo era o de Glasgow, na Escócia. Comportavam 130.000 pessoas. O do Brasil superou-o na acomodação para 150 mil”.
A crítica segue. “Para os nossos tempos (...) a cousa não é de estarrecer. Sobretudo se estabelecermos ligeiro paralelo com o (...) Coliseu romano”, firmava, sobre a tese do “pão e circo”.
A “diferença capital”, argumentava O POVO, era entre espetáculo e espectadores. Se em Roma, o anfiteatro de Flávio mantinha a distância segura entre as feras em campo e o público nas arquibancadas, no Maracanã era um “fôsso” "cheio d'água" quem fazia as vezes de agente de segurança. “Para evitar que a multidão — a maior das feras — invada o campo e devore os jogadores…”.
O Distrito Federal era então dirigido pelo marechal Ângelo Mendes de Moraes, nomeado pelo general Eurico Gaspar Dutra (PSD), presidente da República desde as eleições de 1945, quando venceu o Brigadeiro Eduardo Gomes (UDN).
Na página 7 da mesma edição, a cobertura seguia. Na manchete, a garantia que as finais do Campeonato Mundial de Futebol teriam juízes neutros.
Quatro times para um cetro
“Espetacular vitória do Brasil”. “Pelo quilométrico escore de 7 x 1, foi derrotada a Suécia” (O POVO, 10/7/1950, página 4) Foram oito gols ao todo, um pênalti perdido e pouco espaço para descrição. O Uruguai fez este 7 a 1 sumir da memória coletiva, visto que fez-se irrelevante para o resultado final da Copa do Mundo. Diferentemente de um 64 anos depois, em Belo Horizonte.
A crônica do O POVO, então, acendeu o pavio da confiança. “Com a vitória alcançada ontem, os jogadores brasileiros ficaram de moral elevada para os prelios do futuro, pois somente agora conseguiram acertar realmente, fazendo o que podem fazer, isto é, praticar um futebol produtivo e vistoso, que é caracteristicamente nosso”.
Quatro dias depois era “Patenteada a superioridade do futebol nacional” (O POVO, 14/7/1950, página 7). Após o 6 a 1 sobre a Espanha, o Brasil acumulava 13 gols marcados, dois sofridos e precisava de um empate com o Uruguai para levantar a taça.
“O vencedor do prelio do domingo, entre brasileiros e uruguaios, será o campeão mundial. Ao quadro brasileiro basta, porém, um empate para conseguir o ambicionado título". Bastava não perder no Maracanã, naquele 16 de julho de 1950.
Naquela data, o Uruguai levantou a última taça do mundo de sua história. São, ao todo, 13 participações em 21 Copa do Mundo. O Brasil é a única seleção que participou de todos os Mundiais. Venceu cinco, em 1958, 1962, 1970, 1994 e 2002. Em 2014, teve uma segunda chance de conquistar o "cetro" em casa. Caiu ainda nas semifinais, derrotado por 7 a 1 pela Alemanha, eventual campeão. Assim, 1950 foi a maior chance do país tornar-se um anfitrião campeão.
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