Logo O POVO+
Pandemia e boêmia no Ceará: com décadas de história, estabelecimentos dão adeus
Reportagem Especial

Pandemia e boêmia no Ceará: com décadas de história, estabelecimentos dão adeus

Bares e restaurantes não resistem à recessão causada pelo avanço do novo coronavírus e têm despedida do público abreviada pelo isolamento social. Donos e frequentadores lamentam e revivem locais na memória

Pandemia e boêmia no Ceará: com décadas de história, estabelecimentos dão adeus

Bares e restaurantes não resistem à recessão causada pelo avanço do novo coronavírus e têm despedida do público abreviada pelo isolamento social. Donos e frequentadores lamentam e revivem locais na memória
Tipo Notícia Por

O “novo normal” do cenário boêmio no Ceará conta com o adeus de alguns dos estabelecimentos mais antigos do Estado. Sucumbindo à pandemia do novo coronavírus e fechando, definitivamente, as respectivas portas, bares e restaurantes populares de Fortaleza dão um ponto final na relação que mantinham com a Capital, permanecendo vivos apenas na memória de frequentadores e proprietários.

Um dos estabelecimentos a mais recentemente se despedirem do público foi o restaurante Alfredo, O Rei da Peixada. Em nota, lançada na última semana, representantes informaram que o espaço não resistiu à crise provocada pela pandemia e anunciaram o encerramento das atividades, após mais de seis décadas em funcionamento.

| LEIA MAIS |

Crise causada pela pandemia pode levar à falência quase 2 mil restaurantes no Ceará

Entenda o protocolo de reabertura de restaurantes em Fortaleza a partir desta segunda-feira, 22

Retirada de academias, bares e escolas da 4ª fase da retomada foi para impedir retrocesso, diz Camilo

Com localização na Beira Mar, o estabelecimento foi fundado em 1958 por Alfredo Lousada de Sousa, natural de Acaraú. Conhecido pela tradicional peixada cearense, o empreendimento cresceu junto à Cidade e marcou a memória gastronômica de frequentadores como a dona de casa Rita de Oliveira, de 60 anos, que nunca esqueceu do que viveu no estabelecimento.

Saudosa, ela lembra de ter ido pela primeira vez ao espaço quando tinha apenas 18 anos. Desde então, as noites em que saía com os amigos para “jantar no Alfredo” se tornaram intrínsecas às memórias que guarda da juventude. Como que lembrando da famosa peixada servida no local, a dona de casa lamenta nunca mais poder ter a oportunidade de viver a sensação gastronômica que o lugar proporcionava.

Muito além de percepções gustativas, no entanto, estabelecimentos podem ser responsáveis pelo sentimento de acolhimento que transforma qualquer local em casa. Pelo menos essa é a experiência que o estudante Antonino Izidro, 24, viveu nos anos em que frequentou o Mambembe, bar localizado na Praia de Iracema e cujas portas foram fechadas em abril deste ano.

"Era um local mágico, onde eu podia ser eu mesmo, sem medo ou sem receio", afirma Izidro, revelando que o espaço permitiu que ele encontrasse pessoas "fora do padrão", semelhantes a ele. Vindo do Interior, o jovem confessa que o que viveu dentro da "casa azul" o fez se sentir abraçado, tendo ajudado para que ele entendesse a sexualidade própria e libertando-lhe do medo de não ser aceito pela família.

Com o encerramento das atividades do espaço, tudo o que fica de lembrança ao estudante são as amizades e os amores que viveu entre as paredes do estabelecimento. Com uma parte extremamente importante da vida ligada ao local, Antonino leva agora a missão de manter o bar vivo por meio da lição que aprendeu com ele: "Quem te ama se faz lar! Sem essa de padrão algum. Assim como o Mambembe se fez pra mim".

O Mambembe - Comida e Outras Artes realiza festas temáticas e, durante o Pré-Carnaval, promove parceria com o Bloco das Travestidas
O Mambembe - Comida e Outras Artes realiza festas temáticas e, durante o Pré-Carnaval, promove parceria com o Bloco das Travestidas (Foto: Beatriz Boblitz)

Por trás do adeus, lamento e esperança

"Às vezes penso que estou vivendo um pesadelo do qual não acordo", desabafa o ex-empresário Alfredo Filho, que herdou o Rei da Peixada em 2009 quando seu pai, fundador do estabelecimento, faleceu. Prestes a completar 67 anos, o homem revela que trabalhou no local desde adolescente, indo de ajudante de garçom a gerente.

FORTALEZA, CE, BRASIL,28.12.2019: Alfredo Filho, restaurante Alfredo o Rei da peixada, Av. Beira mar. Movimentação de turistas em Fortaleza.  (Fotos: Fabio Lima/O POVO)(Foto: FÁBIO LIMA/O POVO)
Foto: FÁBIO LIMA/O POVO FORTALEZA, CE, BRASIL,28.12.2019: Alfredo Filho, restaurante Alfredo o Rei da peixada, Av. Beira mar. Movimentação de turistas em Fortaleza. (Fotos: Fabio Lima/O POVO)

Com a morte do pai, Alfredo passou a se dedicar ainda mais ao local para dar continuidade ao trabalho do genitor. "O restaurante representa a vida do meu pai, como também a minha história pessoal e profissional", afirma, revelando que fez de tudo para que o local não fechasse as portas, lutando até o fim contra a crise que ameaçava o negócio de família.

Quando perguntado sobre o que pretende fazer agora, o ex-empresário confessa que espera conseguir se reerguer e reconstruir o espaço em outro local, mantendo o nome do pai como homenagem. Com a esperança fortalecida mesmo em meio à tristeza, o homem afirma que mantém o sentimento de gratidão por tudo que viveu e aprendeu no estabelecimento. 

Em nota de despedida, as redes sociais do Mambembe também se mostraram esperançosas, mesmo com o fim do ciclo da casa. Em texto emocionado, as organizadores defendem que as paredes da casa de número 368, da Rua dos Tabajaras,  "se enraízam na energia de muitas mãos" e que, por isso, a saudade do espaço dará "forças para pensar o futuro".

Lamentando o encerramento do ciclo de quase uma década, as proprietárias agradecem os momentos vividos junto a frequentadores e colaboradores, recordando dos dias de Carnavais e risos frouxos que viveram no espaço. "Pensaremos, organizaremos, buscaremos maneiras para que o Mambembe continue pulsante dentro de cada um de nós", prometem.

Outras despedidas e um pedido de ajuda

O Rei da Peixada e o Mambembe não foram os únicos estabelecimentos a fecharam suas portas. O restaurante e Pizzaria Floresta Brasil, localizado na Varjota, anunciou o encerramento das atividades por meio de uma nota, divulgada nas redes sociais em abril.

Pedro Machado, um dos sócios do local, confessou ao jornalista do O POVO, Jocélio Leal, que ele e sua equipe fecharam o estabelecimento com "lágrimas nos olhos", após faturamento cair 90% por conta da pandemia e do empreendimento ter, desta maneira, acumulado dívidas.

Dia depois do anúncio público de encerramento do Floresta, o bar de rock Boozer's Pub, na Aldeota, divulgou que também encerraria a sua história com a Cidade. "Esses seis anos que passamos ao lado de vocês e da nossa equipe foram incríveis! Tivemos a honra de criar um pub único, com personalidade e muito rock’n roll", afirmou os organizadores em nota.

O Boozers era um pub com programação de Rock e Blues
O Boozers era um pub com programação de Rock e Blues (Foto: DIVULGAÇÃO)

De acordo com informações divulgadas pela Associação Brasileira de Bares e Restaurantes no Ceará (Abrasel-CE),  esses não são os únicos estabelecimento que devem ser vitimados pela Covid-19 na Capital. Em balanço, órgão apontou que cerca de 1,8 mil restaurantes de Fortaleza devem encerrar suas atividades por conta da pandemia.

Fatima Silva, proprietaria do Lions, restaurante e bar que fica na Praça dos Leões, no Centro da cidade,  (Foto: Aurélio Alves)
Foto: Aurélio Alves Fatima Silva, proprietaria do Lions, restaurante e bar que fica na Praça dos Leões, no Centro da cidade,

Essa previsão revela dificuldades que, mesmo aqueles proprietários que não faliram, já sentem na pele. É o caso de Fátima Silva, 68, dona do conhecido bar Lions, localizado no Centro de Fortaleza, e que apelou às redes sociais para pedir ajuda financeira, a fim de manter o estabelecimento em ativa.

Ao O POVO, a empresária desabafou e confessou que a situação financeira do espaço chegou ao limite, afirmando que está tendo de pagar o aluguel do local e arcar com despesas como conta de luz. Preocupada, Dona Fátima revelou que o seu marido, com quem divide a empresa, já pensa em desistir.

Os impactos para o Estado

A despedida desses estabelecimentos não representa apenas o fim de histórias antigas. Ricardo Coimbra, presidente do Conselho Regional de Economia do Ceará (Corecon-CE) afirmou que a previsão da Abrasel, caso concretizada, causaria impacto negativo na economia de todo o Estado.

Ainda assim, o especialista acredita que novos estabelecimentos devem se reerguer a longo prazo. Devido à alta demanda que serviços como bares e restaurantes têm, Coimbra defende que novos investidores devem surgir e, desta maneira, possibilitar uma recuperação gradativa dessas atividades.

Outro setor a ser afetado é o gastronômico. Segundo Eveline de Alencar, atual coordenadora do Curso de Gastronomia da Universidade Federal do Ceará (UFC), mesmo com um otimismo de que restaurantes se recuperem com o tempo, a história gastronômica do Estado será fortemente impactada pelo fechamento de bares e restaurantes.

Para evitar esse cenário, Eveline defende que é importante existirem medidas assistencialistas para que esse segmento consiga superar a crise e, dessa maneira, evitar que pratos regionais, como a famosa "peixada do Alfredo", virem apenas memória gustativas. "O Estado poderia ter um olhar mais especial para o segmento gastronômico, sabendo que o mesmo está direitamente ligado ao turismo", afirma a especialista.

Procurado pelo O POVO, o Governo do Ceará, por meio da Secretaria da Fazenda (Sefaz CE), afirmou que elaborou 23 medidas para apoiar empresas do setor de alimentação, com o intuito de evitar que a crise provocada pela pandemia encerrasse atividades. 

Entre as ações, 11 já foram executadas, tais como: suspensão do pagamento do Fundo Estadual de Equilíbrio Fiscal; prorrogação do credenciamento automático dos contribuintes e transportadoras;  implantação a agenda tributária e a prorrogação de regimes especiais de tributação (RET).

Mesmo com medidas estaduais e o otimismo de especialistas, o fechamento de estabelecimentos seguem encerrando ciclos e modificando a vida boêmia do Ceará. Novos lugares devem surgir em um cenário "pós pandemia", mas serão erguidos sobre anos de histórias que se foram.

O que você achou desse conteúdo?