Mediador. Talvez seja esse o adjetivo que melhor simbolizou a imagem do Brasil nas últimas décadas quando falamos do cenário político internacional. Simbolizou, sim, no passado. Isso porque o País, com tradição de prezar pela conciliação na resolução de questões e conflitos, hoje vê postura histórica de pragmatismo ameaçada pela forma como a atual gestão opta por conduzir a política externa.
Com anos seguidos de crescimento econômico vistos com entusiasmo na primeira década do século XXI, o Brasil chegou a ver o Cristo Redentor decolando como um foguete em uma das capas da revista The Economist, uma das principais publicações do mundo a tratar de finanças globais, em 2009.
A simpatia estrangeira, aliada ao uso intenso do melhor que o Brasil tem a oferecer em termos de soft power, nos rendeu o feito de sediar uma Copa do Mundo de Futebol (2014) e os Jogos Olímpicos do Rio (2016) em sequência, atraindo atenção de investidores e turistas.
Essa reputação avançou e voltou a ter um certo grau de protagonismo internacional após a redemocratização (1985), com destaque para os períodos dos governos Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e Lula (2003-2010). Entretanto, nos últimos anos a imagem promissora de outrora ganhou ares mais polêmicos e problemáticos.
Em especial por posições e discursos do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e de ministros como o chanceler Ernesto Araújo. Atitudes de ambos têm minado relações com diversos países em nome da ideologia, embora o discurso muitas vezes queira fazer crer na inexistência dessa mesma ideologia.
Até o início de 2020, as principais críticas giravam em torno da falta de ações concretas na política ambiental e das falas com teor antidemocrático por parte membros do governo. Mas a aceleração do deterioramento perante os olhos do mundo se deu pela condução da pandemia do novo coronavírus. A piora da percepção que estrangeiros tiveram do Brasil já é palpável.
De acordo com estudo realizado pela consultoria de imagem Curados & Associados, que analisou publicações de sete veículos de imprensa internacionais (Estados Unidos, Inglaterra, Espanha, França e Alemanha) a percepção pública do Brasil no exterior piorou no segundo trimestre de 2020 se comparada aos três meses iniciais. A cobertura da gestão brasileira diante da Covid-19 cresceu 146% de abril a junho e em mais de 95% das vezes foi retratada negativamente.
Ariadne Araújo, jornalista que vive no exterior há 18 anos, aponta que em Portugal houve piora na imagem brasileira mesmo antes do coronavírus. “A forma como o governo trata a questão ambiental pesa contra a reputação do País. O tema do aumento do desmatamento na Amazônia chegou antes da pandemia”, diz, acrescentando que o Brasil geralmente está em evidência nas manchetes e nas conversas diárias pela questão da língua.
“A impressão que tenho nestes anos fora é que antes havia mais interesse de ir ao Brasil”, relata explicando que atualmente há uma “incompreensão” dos portugueses referente aos discursos relativistas do governo brasileiro.
A pergunta que mais se escuta por aqui é: ‘o que está havendo no Brasil?’. A resposta é difícil porque às vezes nem nós sabemos dizer como chegou-se a isso
Ariadne AraújoO consultor comercial Lucas Arruda, 28, retornou da China no início de 2020 (pouco antes de o novo coronavírus surgir por lá e se tornar o que se tornou), após três anos vivendo no país asiático, maior parceiro comercial do Brasil. Ele relata as mudanças de percepção dos chineses no período em que lá esteve.
“Chineses não têm costume de falar sobre política”, aponta ao revelar que a pandemia trouxe maior interesse em relação aos países do ocidente. Em depoimento gravado em vídeo, Arruda diz ter percebido maior interesse pelo Brasil após aproximação com os EUA. “Surgiam perguntas de amigos chineses sobre medidas sendo tomadas e como estamos lidando com a pandemia”.
Lucas Arruda
Residindo na Alemanha desde 2017, o engenheiro de software Marcelo Moreira, 30, comenta a mudança de percepções em relação a imagem brasileira. “Muitas nações europeias entendem como um problema global e não apenas brasileiro”, diz sobre a devastação da Amazônia. Mas o que de fato, pôs o Brasil no centro do noticiário alemão foi a maneira como conduziu a pandemia da Covid-19.
“As pessoas ficam impressionadas (negativamente), muito por conta do contraste com as ações locais (na Alemanha). Aqui autoridades chegaram a falar que o coronavírus era a maior crise desde a segunda guerra mundial”, afirma o engenheiro, acrescentando que há um misto de incredulidade e pena em relação ao Brasil. "As pessoas não entendem como chegamos nesse ponto”.
Há também de ser citado o desconhecimento sobre a gestão Bolsonaro. Na Tailândia, por exemplo, o Brasil é pauta somente pela posição de destaque que ocupa no ranking mundial do coronavírus (2° lugar em casos e mortes totais). É o que relata o empresário Danniel Oliveira, 34, que reside há quatro meses no país. Com passagens por diversas nações da África, Leste Europeu e Oriente Médio ele cita a falta de protagonismo brasileiro em discussões internacionais.
“Por aqui, o Brasil não está tanto no debate. Na minha experiência internacional, muitas pessoas não sabem quem é Bolsonaro e quais são suas atitudes. Sabe-se que estamos mal em relação ao vírus, mas não sabem o porquê”, diz. O próprio fato do Brasil não estar na discussão em alguns países acaba por evidenciar, de certa forma, uma perda de relevância.
A radialista Beatriz Marins, 28, e a historiadora Roberta Estimado, 28, residem na Argentina e na França, respectivamente. Elas gravaram depoimentos em vídeo relatando a transfiguração da imagem brasileira nas cidades de Buenos Aires e Paris.
Beatriz Marins
Roberta Estimado
Atuando na área de relações públicas e residindo no Panamá, Anderson Spina, 29, revela ponto curioso sobre a imagem da atual gestão brasileira. Amigo de venezuelanos que também residem no país da América Central, o brasileiro relata que há uma comparação frequente entre as políticas praticada por Bolsonaro e por Nicolás Maduro, embora ambos os presidentes estejam em lados opostos no espectro político-ideológico.
“Para eles (os venezuelanos) o Bolsonaro leva o Brasil muito próximo ao que a Venezuela é hoje. Por conta do militarismo, do desrespeito à imprensa, pela atuação nas redes sociais, como o Maduro” explica.
Anderson Spina
O contraste entre as medidas para conter a pandemia é outro fator que gera desgaste da imagem brasileira. “Aqui no Panamá estamos no lockdown fase um. Eu tenho dia e horário para ir ao mercado e no Brasil é o contrário. Então as pessoas ficam confusas em como um país com imagem tão diversificada e alegre conseguiu eleger um líder que não mostra ter plano para a saúde pública. Eles viam o Brasil, até pelas novelas, como um país aberto, diverso e muito à frente”, relata, acrescentando que há certa indignação por parte de estrangeiros.
A política de equidistância pragmática que o Brasil praticou ao longo dos anos versa sobre o diálogo com diversos atores. Até mesmo se eles são opositores entre si, na busca pelo melhor para os interesses do País.
Tal prática, que perpassou – em maior ou menor grau – governos das mais diferentes correntes políticas no Brasil nos últimos 80 anos, perdeu espaço para afirmações ideologicamente negacionistas. Bolsonaro ganhou espaço frequente no noticiário internacional que narra diariamente um país antes em posição de destaque alinhando-se a postura de nações tidas como párias internacionais no que diz respeito a Direitos Humanos em votações da Organização das Nações Unidas (ONU).
Em uma discussão recente, no último dia 17 de julho, o Brasil se absteve sobre documento liderado pelo México que visa estabelecer parâmetros para eliminar a discriminação contra mulheres e meninas. Fato por si só já evidenciaria a mudança postural do país, mas o Brasil ainda chegou a propor mudanças no texto durante a fase de negociações que alinhavam-se ao pensamento de países conservadores como Arábia Saudita, Egito e Paquistão.
Hoje, o Brasil caminha à margem da construção da agenda internacional progressista e é visto por algumas nações como país-problema. A perda de prestígio se dá em diversos campos.
Exemplos concretos são as recentes proibições impostas por países da União Europeia e pelos Estados Unidos aos voos vindos do Brasil devido aos números da pandemia. O próprio presidente Donald Trump se referiu ao Brasil como mau exemplo na conduta do combate à pandemia.
Além disso, a pressão estrangeira sobre a questão do desmatamento fez o vice-presidente Hamilton Mourão, que comanda o Conselho da Amazônia, reunir-se com ministros e investidores este mês para tratar de ajustes na preservação do meio ambiente. Junho de 2020 teve o maior número de alertas de desmatamento para o mês em toda a série histórica, iniciada em 2015, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
O descaso pode afetar inclusive negociações comerciais futuras. No fim desse mesmo mês de junho, um grupo de fundos de investimentos estrangeiros administradores de um montante que beira a casa dos US$ 4 trilhões fizeram um alerta sobre o descaso com a questão ambiental. Os gestores afirmaram que o fracasso do governo brasileiro em proteger as florestas pode obrigá-los a reconsiderar seus investimentos.
Lucas Leite, professor de relações internacionais da Fapesp, destaca que até o governo Bolsonaro tivemos, com diferenças ideológicas, uma condução da política externa dentro de um padrão respeitado no mundo e que a mudança de postura no cenário internacional faz o Brasil ser visto como piada e chacota.
Hoje somos vistos como um país que não agrega, um país que nega questões climáticas e históricas, que nega agendas que ajudou a construir, que perde apoio financeiro por falta de ação, como na questão do desmatamento na Amazônia
Lucas LeiteSobre a condução do ministro das relações exteriores, Ernesto Araújo, Lucas Leite destaca que se trata de uma política de exclusão. “Ele isola o país, não busca interesses coletivos e regionais, não aumenta nosso poder, não atrai turistas e investidores. Não nos coloca junto a países que estão em ascensão como China e Índia. O governo Bolsonaro não tem só uma parcela de culpa, mas uma culpa inteira pelo modo como somos vistos hoje”, pontua.
Para Bosco Monte, presidente do Instituto Brasil África (Ibraf), o que tem ocorrido nos últimos dois anos é uma diminuição do diálogo internacional por parte do Brasil, fator que considera “muito danoso” para o crescimento.
“Se não há diálogo não há ganho. Não nos mostramos para o mundo e não há comprovação de que o Brasil está no jogo internacional”
Bosco MonteEntretanto, ele salienta que não acredita que a imagem do país esteja danificada de modo irreversível. Para ele, o Brasil é maior que seus governantes. “Bolsonaro, Lula, Dilma, FHC, as lideranças chegam e marcam seu tom. Com exceção do governo Bolsonaro, e diria até que do governo Dilma, houve uma busca acentuada pelo diálogo internacional. Isso não está perdido”.
Em conversas com colegas de outros países, ele salienta que não há sentimento de que o governo brasileiro vai ruir. “O momento é muito mais de expectativa do que qualquer outra agenda”, finaliza.