Essencial a qualquer sistema democrático, a representatividade está no centro de um debate as ressignificações às quais o termo foi submetido no decorrer da história. No atual sistema eleitoral brasileiro, a deficiência nesse âmbito é clara e raramente um eleitor se sente representado por completo pelo político no qual depositou seu voto.
Buscando alternativa a esse paradigma, tem ganhado eco um novo modelo para composição de gabinetes: os mandatos coletivos. Baseados em construções sociais, eles se sustentam pelo o ideal da deliberação grupal para decisões de um mandato. Assim, indiretamente, propõem que mais pessoas ocupem espaços institucionais.
Outro aspecto fundamental à criação desse modelo é o econômico. Fazer uma campanha eleitoral exige, via de regra, muito dinheiro. Isso faz com que haja o afastamento de agrupamentos periféricos das disputas. Com essa nova proposta, nasce a ideia do financiamento em grupo, no qual os colaboradores do mandato repartem os custos da campanha entre si, possibilitando um canal mais acessível.
Um dos exemplos mais recentes de iniciativas do tipo com êxito nas urnas é a "Mandata Ativista". Composta inicialmente por nove pessoas - atualmente são cinco remanescentes -, o grupo foi eleito em 2018 para ocupar um cargo parlamentar na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp)
No Brasil, segundo estudo realizado pela Rede de Ação Política Pela Sustentabilidade (Raps), há experiências com candidaturas coletivas e compartilhadas desde 1994. De acordo com o instituto, essas experiências foram crescentes, com ápice ocorrendo nas eleições municipais de 2016, quando 98 candidaturas disputaram cadeiras no Poder Legislativo. Hoje, pelo menos 20 mandados com esse modelo estão em atuação em todo o País.
A pesquisa ainda apontou que, dos mais de 1,2 milhão de votos que todas as chapas já receberam na história das eleições no Brasil, a maior concentração está na região Sudeste, onde conseguiram conquistar 886.613 eleitores, somados todos os pleitos que participaram.
Em relação a posicionamento ideológico que esses grupos ocupam no espectro político, a Raps constatou que a maioria das candidaturas é de centro-esquerda. A Rede é o partido com mais lançamentos na história, sendo 23 no total.
Apesar de ter ganho mais adeptos no Brasil, esse tipo de candidatura ainda não é reconhecida formalmente pela Justiça Eleitoral. Os coparlamentares acabam exercendo um trabalho nos bastidores, a partir dos debates e discussões que direcionam a atuação do mandato.
Para Raquel Machado, professora de Direito Eleitoral da Universidade Federal do Ceará (UFC), esse sistema de coletivos ainda é recente, no âmbito jurídico e social, por isso deve ser preciso muito tempo para ser regularizada.
“Dentro do universo de mandatos, esse modelo ainda é pouco aplicado. É necessário ter voz para que haja mudança, e hoje eles ainda não têm. Além disso, socialmente é uma questão que está começando a ser debatida agora, não há conhecimento da grande parte da população”, disse.
Raquel Machado ressalta que a aplicação jurídica e eleitoral dos mandatos seria extremamente complicada, mas que eles podem servir de exemplo para uma tentativa de renovação.
“Iria ser complexo, sem dúvidas. Teria que haver um mapeamento das pessoas participantes do coletivo, para saber as respectivas responsabilidades dentro do processo eleitoral. No exercício do mandato, seria necessária uma grande alteração da legislação, pois, juridicamente, só um representante detém esse direito, aquele que foi registrado”.
A professora da UFC também avalia que há perspectiva de aumento quantitativo de candidaturas compartilhadas para as próximas eleições. E que o modelo pode ganhar cada vez mais força, devido a possibilidade de união política e financeira.
“Deve haver um certo crescimento, advento da complexidade na realização das campanhas. A verba é pouca e o desafio é grande. Assim, a unificação de forças é uma boa saída, tendo mais pessoas comprometidas com um só projeto”, finalizou.
Na avaliação de Paula Vieira, professora vinculada ao Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídias da UFC (Lepem-UFC), a modalidade de mandatos coletivos, apesar de recente, é “interessante em termos de aumento da representatividade política".
“Imagine o seguinte: pessoas com deficiência, LGBTQI+, mulheres e do movimento negro; cada um tem um espaço específico para captação de votos. Um mandato coletivo constituído por integrantes desses grupos aumenta o potencial de liderança, ao mesmo tempo em que eleva o conhecimento qualificado de pessoas que estão inseridas nesses espaços. Ou seja, tanto aumenta a possibilidade de ser eleitos, quanto a de termos mais grupos representados em um único mandato”, pontua.
A pesquisadora destaca que, em termos eleitorais, a modalidade torna-se estratégia de captação de votos. “Podem ser pessoas de territórios diferentes, territórios no sentido geográfico e de inserções sociais distintas. Então acaba juntando-se possibilidades de angariar mais votos”, explica, acrescentando que também é um modo de adaptar-se a novas regras eleitorais. “É também uma nova estratégia para atingir o quociente eleitoral, agora sem as coligações proporcionais nas eleições municipais”, afirma, declarando que não vê como a Justiça Eleitoral poderia, de fato, intervir já que "em termos de registro eleitoral" está tudo correto.
Por último, Vieira ressalta necessidade de atenção para eventuais casos de mandatos coletivos em que uma mulher seja cabeça de chapa e o restante da composição seja representada por homens.
Em Fortaleza, o Psol lançou o “Nossa Cara!”, uma candidatura coletiva de mulheres negras e periféricas para as eleições 2020. A chapa, que é composta por Adriana Gerônimo, Lila M. Salu e Louise Santana, vai disputar uma cadeira na Câmara Municipal com proposta de mandato compartilhado entre as três.
“Para nós, entrar em coletivo é uma estratégia de ocupação e sobrevivência, estamos buscando representatividade em meio a atual estrutura política”, comenta Adriana, assistente social que foi escolhida para ter o nome formalmente registrado perante à Justiça Eleitoral.
Caso eleitas, Adriana garante que as três integrantes do grupo irão tomar uma série de medidas para a manutenção de uma estrutura compartilhada. “Haverá a criação de um grande conselho político com interlocuções de movimentos sociais, que irão pautar nosso mandato diretamente. Também projetamos a ideia de criar um laboratório popular de leis, que irá direcionar as diretrizes de forma descentralizada”.
Sobre a escolha dela como eventual porta-voz do grupo dentro da CMFor, a assistente social disse que essa decisão foi tomada coletivamente, junto aos movimentos sociais, e que isso não era uma questão de relevância para elas, já que pretendem deliberar de forma conjunta.
“No nosso pensamento, isso é secundário, apenas para cumprir a formalidade. Assim como foi para formação da chapa, que foi decidida em plenária. Discutimos entre nós a disponibilidade de cada uma e meu nome acabou sendo escolhido, mas isso é o que menos importa para nós. Independentemente disso, iremos vivenciar uma mandata que será coletiva em todos os sentidos”, relatou.
No último dia 30 de setembro, o Ministério Público Eleitoral (MPE) no Ceará entrou com pedido de impugnação da candidatura “Nossa Cara”. Entre as argumentações apresentadas pelo órgão na ação, a promotora Ana Maria Gonçalves Bastos de Alencar aponta não haver respaldo jurídico para uma candidatura no modelo coletivo e que as cocandidatas estariam induzindo o eleitorado ao erro. Segundo o órgão, não registro dos nomes de Louise e Lila M. em ata de convenção do partido.
“Logo, entende-se que, as três indicadas no grupo NOSSA CARA, caso quisessem concorrer à vaga de VEREADOR, deveriam ser filiadas a um partido político, ser escolhidas em convenção e apresentar, individualmente, seus respectivos Registros de Candidatura”, diz a ação.
A promotora também contestou um banner da campanha, alegando que há interferência na propaganda eleitoral, pois o conteúdo estabelece dúvida quanto à identidade, induzindo ao erro de que estará votando em três candidatas. “Situação não permitida em nosso sistema eleitoral, no qual as candidaturas são individualizadas”, diz o texto.
Segundo as cocandidatas, a ação é uma ofensiva excludente que se enquadra em ato de perseguição política e resistência ao formato de candidatura. “Lemos isso como um ataque direto ao modelo que escolhemos para fazer política, sendo esse um modelo que agrega corpos negros, periféricos, LGBTs, de trabalhadoras e trabalhadores que ousam subverter a lógica dos lugares pré-estabelecidos, essa lógica reserva lugares para os mesmos nomes perpetuando uma história de ausências de acesso e direitos para o nosso povo” apontam as cocandidatas.
De acordo com Adriana Gerônimo, os mandatos coletivos já são “uma realidade desenvolvida e aplicada pelo mundo” e que têm conseguido “fortalecer os debates sobre reforma política que ampliam a lógica de democracia participativa”. “Existe uma ofensiva real contra as novas formas de fazer política e a nova cara da política. Não abriremos mão dessa candidatura coletiva porque é urgente a ocupação da política por mulheres negras e periféricas que são maioria social do povo”, aponta.
No último dia 3 de outubro, a chapa Nossa Cara inaugurou comitê de campanha no Rodolfo Teófilo. Participando do ato, o candidato do Psol à Prefeitura de Fortaleza, Renato Roseno, destacou que o partido não desistirá da candidatura. "É exatamente o contrário, nós estamos sendo punidos porque somos absolutamente transparentes. O eleitor está sabendo que, ao votar 50.180, ele vai votar nas três", diz Roseno, que destaca exemplos de candidaturas coletivas já eleitas em todo o País, como a Mandata Ativista (Psol) na Alesp.
“Vamos até o Tribunal Superior Eleitoral”, afirma. Além de Fortaleza, o Psol deve investir em candidaturas coletivas em outros municípios cearenses, como Maracanaú, Caucaia, Iguatu, Juazeiro do Norte, Limoeiro do Norte e Crato.
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