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Brasil registra em 2020 recorde de indígenas eleitos
Reportagem Especial

Brasil registra em 2020 recorde de indígenas eleitos

Dados parciais de organizações do movimento indígena do Brasil já dão conta do maior número de eleitos de toda a história. O Ceará tem quatro representantes.

Brasil registra em 2020 recorde de indígenas eleitos

Dados parciais de organizações do movimento indígena do Brasil já dão conta do maior número de eleitos de toda a história. O Ceará tem quatro representantes.
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Em 2017, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), junto a outras organizações indígenas, lançou uma carta às comunidades étnicas de todos os estados brasileiros incentivando a formação de lideranças para as eleições municipais que estavam por vir. Ao que tudo indica, o chamado foi atendido e, em 2020, um total de 2.212 representantes de povos originários lançaram-se na disputa por cargos eletivos, um aumento de 27% em comparação com 2016.

Como resultado, houve também recorde de indígenas eleitos: 236 contabilizados pela organização, representando 71 etnias. No Ceará, dois vereadores foram reeleitos e outros dois estreiam em cargos legislativos.

FORTALEZA, CE, BRASIL, 23.11.2020: Weibe Tapeba, Vereador de Caucaia (PT), reeleito vereador de Caucaia, é lider da comunidade Tapeba.
Foto: Aurelio Alves
FORTALEZA, CE, BRASIL, 23.11.2020: Weibe Tapeba, Vereador de Caucaia (PT), reeleito vereador de Caucaia, é lider da comunidade Tapeba.

Em 2016, concorreram às eleições municipais 1.715 indígenas. Desse total, foram eleitos 169 vereadores, 6 prefeitos e 10 vice-prefeitos. Agora, estão eleitos para os próximos quatro anos 214 vereadores, 10 prefeitos e 12 vice-prefeitos indígenas.

Caucaia, segundo maior colégio eleitoral do Ceará, reconduziu Weibe Tapeba ao cargo de vereador pelo PT. Além de ser o único indígena, o advogado também representa sozinho o partido no município.

“Eu sou um cumpridor de tarefas do movimento indigena que definiu, em 2016, que precisávamos de um candidato em Caucaia”
Weibe Tapeba

Além de Weibe, o movimento também colocou o cacique Luís Antônio Ferreira, agente de saúde indígena da etnia anacé, na segunda suplência do partido.

Weibe lembra que eleitos pelo movimento não defendem somente a causa indígena, mas também a classe trabalhadora e de comunidades tradicionais, bandeiras de luta da classe progressista. Apesar de ainda serem poucos, o advogado lembra que os candidatos indígenas são alvos de ataques pelos concorrentes, que tentam criminalizar a causa e espalhar informações falsas contra eles.

“No meu caso, chegaram a fazer um panfleto e espalhar nas comunidades aqui da região tentando me atacar”, disse.

O potiguara Vicente Sampaio Filho foi eleito em Monsenhor Tabosa
Foto: Divulgação
O potiguara Vicente Sampaio Filho foi eleito em Monsenhor Tabosa

No município de Monsenhor Tabosa, no Sertão de Crateús, o potiguara Vicente Sampaio Filho chega ao quinto mandato pelo PDT. Assim como o Weibe, ele explica que seu nome foi lançado pela necessidade das comunidades, que ficam na zona rural, de terem um representante na Câmara.

Algumas das conquistas que atribui à legislatura são a melhoria do acesso à água, energia elétrica e o próprio reconhecimento da existência de aldeias.

“Criamos o projeto que reconheceu os quatro povos indígenas do município: potiguara, tabajara e, tubiba-tapuia e gavião. Antes, se você fosse receber uma carta, tinha que botar como se aqui fosse fazenda. Hoje, colocamos como aldeias indígenas”, remonta o vereador e agricultor.

Moizeis dos Santos Feitosa, eleito em Tamboril, é considerado indígena pela Apib, embora tenha se autodeclarado pardo ao TSE
Foto: Divulgação
Moizeis dos Santos Feitosa, eleito em Tamboril, é considerado indígena pela Apib, embora tenha se autodeclarado pardo ao TSE

De acordo com levantamento da Apib, também é um representante indígena o vereador Moizeis dos Santos Feitosa, eleito no município de Tamboril, pelo PDT. Ele afirma pertencer a etnia tabajara, da Aldeia Grota Verde.

No registro do TSE, contudo, o vereador eleito se declarou como pardo e não como indígena. Essa foi a primeira vez que Moizeis se candidatou e diz que deve construir a legislatura junto às aldeias.

A única mulher indígena eleita conseguiu mandato na Câmara Municipal de Aratuba, no Maciço de Baturité, pelo Democratas. Elque Atanaelle Barroso da Silva faz parte dos canindés de Aratuba e defende a valorização do esporte, cultura e turismo ecológico na aldeia a que pertence.

Elque Atanaelle Barroso, em Aratuba, foi a única mulher indígena eleita no Ceará
Foto: Divulgação
Elque Atanaelle Barroso, em Aratuba, foi a única mulher indígena eleita no Ceará

“O povo da minha comunidade se dispôs a me ajudar e fizemos a visita de casa em casa. O apoio deles foi essencial para essa vitória”, conta.

A Federação dos Povos e Organizações Indígenas do Ceará (Fepoince) estima que existam no Estado cerca 36 mil pessoas pertencentes a 15 povos indígenas e habitando 20 municípios. No entanto, o Governo Estadual reconhece a pouco mais de 26 mil aldeados, distribuídos entre 14 povos e 18 municípios. Mesmo com a contagem oficial, o Ceará ainda ocupa a 8ª colocação em número de habitantes indígenas no Brasil.

As candidaturas de indígenas, no entanto, ainda não acompanham o número da população. Em 2016, foram registrados 41 postulantes que alegam pertencer a alguma etnia.

Em 2020, foram lançados 44 nomes à disputa, sendo somente dois em chapas majoritárias: Caio dos Índios como candidato a vice-prefeito em Caucaia, pelo PCdoB, e Mácio Alves encabeçando chapa do Psol em Iguatu.

 

 

Campanhas com pouco dinheiro e no meio da pandemia

FORTALEZA, CE, BRASIL, 23.11.2020: Weibe Tapeba, Vereador de Caucaia (PT), reeleito vereador de Caucaia, é lider da comunidade Tapeba.
Foto: Aurelio Alves
FORTALEZA, CE, BRASIL, 23.11.2020: Weibe Tapeba, Vereador de Caucaia (PT), reeleito vereador de Caucaia, é lider da comunidade Tapeba.

Rifas, bingos e doações de professores, profissionais de saúde e simpatizantes da causa foram algumas das formas que Weibe encontrou para arcar com os custos da primeira campanha, em 2016. Agora, com a pandemia da Covid-19, essas ações não puderam ser realizadas, explica. Juntando isso a problemas estruturais básicos da aldeia, que muitas vezes não dispõe de acesso à Internet, por exemplo, dificultou ainda mais o processo.

“A prioridade das famílias é sobreviver. Tem família que mal tem dinheiro para a alimentação, única renda que tem é o Bolsa Família e outras que nem isso. Muitas estão sobrevivendo com o auxílio emergencial. Pagar Internet seria uma regalia, por assim dizer”
Weibe Tapeba


Assim, contou com a ajuda de agentes multiplicadores. Os mesmos professores, agentes de saúde e lideranças que buscaram doações para a campanha foram também os responsáveis por divulgá-la, conta o advogado. Também houve adesão de organizações como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e Levante Popular da Juventude. Ainda levantou R$ 38.300,00, quase integralmente vindos de doações, de acordo com dados do TSE.

Enquanto isso, Elque levantou R$ 7.651, Vicente fez campanha com R$ 3.400 vindos do Fundo Especial e Valdemar, de acordo com informações do TSE, não recebeu recursos para campanha.

 

 

Candidaturas incentivadas nacionalmente

Sônia Guajajara foi candidata à vice-Presidência na chapa encabeçada por Guilherme Boulos (Psol) em 2018
Foto: Divulgação
Sônia Guajajara foi candidata à vice-Presidência na chapa encabeçada por Guilherme Boulos (Psol) em 2018

Kleber Karipuna, assessor Político da Apib, demonstra confiança que os resultados desta eleição, favoráveis aos povos indígenas, terão influência no próximo pleito. “Nós temos uma obrigação como cidadãos, como brasileiros e, mais ainda, como povos indígenas, de, em 2022, fazer um processo de enfrentamento de sinalização de alianças para derrubar essa extrema direita fascista e contrária aos direitos dos povos indígenas que está no governo hoje”, argumenta.

A ocupação de cargos eletivos por representantes das etnias também é importante para o enfrentamento dos constantes conflitos em terras indígenas, explica Karipuna. Ele lembra que os casos de invasão de territórios, garimpo ilegal e desmatamento das terras para venda de madeira, situações muito presentes principalmente na região Norte do País, são problemas antigos mas que têm sido reforçados pelo atual Governo Federal.

“O discurso que esse Governo faz incita o ódio e gera muito mais conflitos no campo, e gera, além dos conflitos, o assassinato de lideranças que é o que vem ocorrendo constantemente”, afirma.

A fala do assessor está de acordo com o último levantamento do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), divulgado pela Agência Pública em abril deste ano e que indica 11 assassinatos de indígenas somente em 2019, primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro (sem partido). O dado representa um recorde negativo dos últimos 11 anos.

Karipuna afirma que candidaturas de 2018 foram importantes para incentivar o lançamento de novos nomes, como a de Sônia Guajajara, que concorreu como vice na chapa do presidenciável Guilherme Boulos (Psol) e a eleição de Joenia Wapichana (Rede) para a Câmara Federal, representando o estado de Roraima.

Joenia Wapichana (Rede) foi eleita deputada federal pelo estado de Roraima
Foto: Luis Macedo/Câmara dos Deputados
Joenia Wapichana (Rede) foi eleita deputada federal pelo estado de Roraima

A Apib lançou uma plataforma online de mobilização e divulgação dessas candidaturas, a Campanha Indígena. Com caráter suprapartidário, a iniciativa pretende “ampliar a representação dos povos nas instâncias dos poderes Legislativo e Executivo em todo o país”, segundo informações do próprio site.

 

 

Amazonas lidera número de eleitos e Nordeste também se destaca

O estado do Amazonas elegeu 46 indígenas a cargos municipais este ano, segundo dados da Apib. O estado da região Norte é seguido por dois do Nordeste: Paraíba e Pernambuco que elegeram, respectivamente, 20 e 17 representantes indígenas.

Kleber Karipuna, assessor político da Apib, destaca a importância da reeleição de Weibe Tapeba (PT) para vereador em Caucaia, no Ceará, e do cacique Marquinhos Xukuru (Republicanos) para prefeito em Pesqueira (PE). Ele aponta que os dois são alinhados com as causas do movimento, embora de partido ideologicamente antagônicos. No segundo caso, Marquinhos ainda foi eleito em um município marcado pelo conflito com povos da etnia.

Segundo informações da Apib, o primeiro indígena eleito no Brasil, que o movimento indígena tem registro, foi Manoel dos Santos, seu Coco, do povo karipuna, em 1969. Ele cumpriu mandato como vereador na cidade de Oiapoque, no Amapá.

 

 

Um cargo federal só foi ocupado por um indígena em 1982, com o cacique Mário Juruna, pelo estado do Rio de Janeiro. Já o primeiro prefeito do movimento foi eleito em 1996. João Neves, do povo galibi-marworno, comandou o executivo do município de Oiapoque, no Amapá. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) só passou a incluir registro de cor e raça dos candidatos em 2014.

De acordo com o Censo do IBGE de 2010, a população indígena do país girava em torno de 817.963 pessoas espalhados por todos os estados, incluindo o Distrito Federal. Eles estão distribuídos em 305 diferentes etnias, falando 274 línguas.

Contudo, esse dado ainda pode variar muito, pois a Fundação Nacional do Índio (Funai) também dá conta de outras 69 referências de povos indígenas não contatados, além de outros grupos que ainda buscam reconhecimento.

Para especialistas, candidaturas indígenas têm grande potencial de identificação e defesa de demandas específicas

ITAPIPOCA, CE, BRASIL, 06-11-2019: Expedição Borboletas. índios tremembés dançando o torem (Foto: Aurelio Alves/O POVO)
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ITAPIPOCA, CE, BRASIL, 06-11-2019: Expedição Borboletas. índios tremembés dançando o torem (Foto: Aurelio Alves/O POVO)

De todas as comunidades indígenas reconhecidas no Ceará, apenas os tremembé, da Aldeia do Córrego do João Pereira, dispõem de demarcação completa de território, localizado em Itarema. Dessa forma, o antropólogo Kléber Saraiva, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) destaca que a entrada desses grupos na política só tem a contribuir para as causas dos povos originários.

“Sobretudo, contribui para que essas populações indígenas possam ter um espaço maior nas decisões legislativas municipais e voz ativa para implementar políticas importantes para essa comunidade”, argumenta o coordenador dos cursos de graduação indígena pitakajá e kuaba.

Saraiva explica que essa busca por cargos políticos eletivos demonstra um amadurecimento das comunidades, que passam a compreender que também precisam participar efetivamente da vida pública para solucionar suas demandas. No entanto, segundo ele, a “romantização” do imaginário popular sobre o indivíduo indígena dificulta o êxito dessas candidaturas.

 

“Do mesmo jeito que o cearense mudou a cultura, o índio também mudou. Mas este segundo é muito cobrado para ter uma cultura objetivamente distinta. Essa cobrança faz com que o preconceito seja um agravante no momento eleitoral”, afirma, reiterando que, muitas vezes, os eleitores deixam de votar em um candidato indígena por desacreditar da origem dele. Não levando em conta que, como qualquer outra pessoa, esse indígena também tem acesso a recursos tecnológicos, educação e cultura.

O sentimento de identificação é o principal fator dessas candidaturas, avalia Felipe Vicente, doutor em História Social. “Mais do que uma herança genética efetiva, a identidade indígena se ancora em um sentimento de pertencimento a uma comunidade”, explica. Dessa forma, essa candidatura tem grande potencial representativo quando voltada a defender os interesses coletivos daquela comunidade.

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