“Este ano não vai ser igual àquele que passou”, compôs H. Silva e Paulo Sette na tradicional marchinha “Até Quarta-feira”. Talvez a canção, entoada nos mais diversos Carnavais deste Brasil, seja adequada. Em 2020, mesmo com a iminência de uma pandemia no País, o ritual mágico do Ciclo Carnavalesco levou às ruas milhares de foliões. Devido à Covid-19, em 2021, a poética dos corpos aglomerados numa Cidade colorida mora no lugar da saudade.
O Ciclo Carnavalesco, que abre o calendário festivo do País e integra a identidade do povo deste território, estaria pulsante nesta época do ano. Realizado muitas vezes a céu aberto, o espetáculo acha-se na vida em sua diversidade, com sorrisos, fantasias, alegorias, danças, cantos e batuques pelos caminhos. Um fenômeno artístico, econômico e até turístico — para além dos quatro dias marcados no calendário. O Pré-Carnaval (referência da Capital nos últimos anos) não aconteceu. Neste sábado, 13, seria o início da principal festa.
No Carnaval, contam-se histórias individuais ou coletivas. Trata-se de um canal fantástico de expressão com o mundo. Narrativas que transitam por diversas linguagens: da plástica à música. Entre enredos de diferentes expressões e pessoas, o que este carnaval faltante ecoa na Capital? Apaixonados pelo Pré-carnaval e Carnaval de Fortaleza vivem o vazio da ausência, mas carregam consigo a essência da festa: o respeito e a alegria pelo viver. Mais de 230 mil brasileiros morreram pela doença até hoje. Por isso, parafraseando o cantor e compositor Chico Buarque, foliões estão se guardando para quando o Carnaval — for possível — chegar.
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Nos registros desta reportagem (capa e galeria acima), o projeto audiovisual independente “Quanta saudade cabe em fevereiro?” (no Instagram @saudadesdefevereiro). Idealizado por Bianca Kethulen, Lia Ponte, Marcela Benevides, Márcio Murinelly, Maurício Casas e Roberto Kwengwe, trabalho passeia pela ausência do Carnaval em 2021.
Da alegria carnavalesca, Mariana Bessa, 21, estudante de Serviço Social, lembra bem. Brincante do Carnaval desde que se entende por gente, ela vive a paixão pela folia como se não pudesse ser diferente. Isso porque, quando criança, a casa de sua avó era palco para a magia de jogar confetes, ouvir marchinhas e se fantasiar em família. As recordações também passeiam pelo tradicional Carnaval na Avenida Domingos Olímpio, onde desfilam maracatus, afoxés, cordões, blocos e escolas de samba — está aí a sua paixão pelo Maracatu Cearense.
"O Carnaval impulsiona felicidade para a rotina ao longo do ano. Nesse sistema tão complicado em que vivemos, nos dá alegria para o enfrentamento."
“As fotos até provam”, brinca. Nos registros compartilhados ao O POVO, a pequena Mariana posa, ora vestida de Emília — personagem da obra infantil “Sítio do Picapau Amarelo”, de Monteiro Lobato, eternizada no seriado de televisão homônimo — ora já sem a fantasia, mas ainda na festa.
“O Carnaval impulsiona felicidade para a rotina ao longo do ano. Nesse sistema tão complicado em que vivemos, nos dá alegria para o enfrentamento”, diz Mariana. Para a foliona, 2021 já começa “com uma grande falta”, como se não tivesse propriamente um início. A banda cearense Selvagens à Procura de Lei desvenda: “Porque eu sou brasileiro/ Meu ano só começa quando passa fevereiro”.
No período do Ciclo Carnavalesco, ela “vai para tudo que der”. Quando possível, seu lugar é onde a folia está. Para citar: Praça dos Leões e Praça do Ferreira, Praia de Iracema, Gentilândia, Benfica, Pré-Carnaval da Mocinha, Mercado dos Pinhões e Avenida Domingos Olímpio. Se fosse para escolher sua festa preferida, optaria pelo bairro Benfica. “Muita gente vai fantasiada e tem todo tipo de Carnaval, do maracatu aos blocos com marchinhas, música brega, música popular brasileira e canções mais contemporâneas”, comenta.
Ao rever as imagens dos carnavais passados, Mariana divaga em nostalgia: “É difícil, ver as fotos, as lembranças… Os amigos que você fez, que você gostaria de curtir neste carnaval… Os amores que você fez, os lugares novos que se construíram na cidade. Até outras cidades que você gostaria de conhecer ou mesmo aproveitar o feriado para o descanso”.
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Num País que ama tanto a festa, será complicado. A tristeza, contudo, faz-se necessária. Com a família, Mariana espera marcar o período de alguma forma em sua residência. “É importantíssimo que cada um se contenha com as suas lembranças e faça um Carnaval em casa. Essa pandemia vai passar”, aconselha.
Apaixonado pelo Carnaval, especialmente os prés, o publicitário Yaggo Arruda, 26, acredita na festa como potente manifestação da identidade brasileira. “É um momento de expressar nossa cultura, o que a gente sente e o que a gente não faz o ano inteiro. Nos divertimos, demonstramos alegria e curtimos todo mundo junto nessa época. Quando passa uma pessoa na rua, nem se conhece, mas ela já está ali socializando. É um momento de descontração, alegria total e representatividade. Se anda como quiser, da forma que se quer mostrar para a sociedade, sem sofrer preconceito algum”, ressalta.
A relação de Yaggo com o Carnaval iniciou na adolescência, quando marcava de ir aos Pré-carnavais da Cidade com os amigos. Aproveitavam, desde aí, os blocos e as escolas de samba, como Unidos da Cachorra e Baqueta. À época, faziam uma espécie de excursão — quando terminava um, iam para outro. Com o tempo, outras agremiações surgiram, como o Bloco das Travestidas e o Glitter.
"Só vai ser saudade de estar com os amigos, mas infelizmente esse ano não vai poder. Vou sentir muita falta de estar nos bloquinhos de rua, me divertindo..."
A união continua. Geralmente, o grupo se planeja com bastante antecedência e monta um calendário do circuito carnavalesco. Como a foliona Mariana Bessa, Yaggo e os amigos passeiam “bloco a bloco” — é que nem a canção de Moraes Moreira: “Eu sou o carnaval em cada esquina”. Além dos já citados, a turma adora as apresentações musicais no Aterrinho da Praia de Iracema, o Bloquinho do Colosso e o Bloco Pra Quem Gosta é Bom.
Yaggo também considera que o ano só começa depois do Carnaval. Confessa que levantou muitas expectativas para 2020. Com a Covid-19, não foi fácil. Sem o Carnaval, 2021 parece ainda mais difícil, “sem poder se abraçar e estar na rua demonstrando alegria”, aponta. “Só vai ser saudade de estar com os amigos, mas infelizmente esse ano não vai poder. Vou sentir muita falta de estar nos bloquinhos de rua, me divertindo, bebendo, paquerando... De estar com glitter em todo corpo, com sorrisão aberto, ocupando os espaços”, diz. O desejo é por uma ampla campanha de vacinação.
O tradicional Carnaval da Saudade, promovido pelo Náutico Atlético Cearense, estaria comemorando o seu 54º ano consecutivo. Realizado pela primeira vez em 17 de fevereiro de 1968, sob idealização do diretor Helano Studart Montenegro e apoio do músico Cristiano Camara, este baile de Carnaval é um dos mais longevos do País.
Acompanhada por marchinhas, samba e frevo, a festa recebe diferentes gerações de fortalezenses a cada ano. No “sábado magro” — que antecede o fim de semana do Carnaval — “o ritual do Carnaval da Saudade abre o sentido simbólico do Carnaval de Fortaleza”. Assim explica Jardson Cruz, presidente do Náutico Atlético Cearense: “Acontece a coroação do Rei Momo, da Rainha e da Princesa e o Prefeito entrega a chave da Cidade à majestade”.
Segundo Jardson, este Carnaval dá início ao período momino na Cidade. O momento é tão emblemático que há, na Câmara Municipal, um projeto de tornar o Carnaval da Saudade patrimônio cultural imaterial da Capital cearense. O baile conta ainda com concursos de melhor fantasia e de melhor bloco. Munidos de um livreto com composições, pessoas acompanham cantando músicas. Por isso, para o presidente, “não adiantaria fazer algo virtual” neste 2021.
“Tem todo o clima do Carnaval, desde o acompanhamento dos foliões, à música, ao palco. Infelizmente, neste ano não foi possível. Vamos torcer para que a gente consiga fazer no próximo”, reforça Jardson, que tem ouvido algumas considerações sobre a falta da folia. Contudo, o presidente ressalta: “As pessoas entendem que o momento não é de aglomerar”.
Fica a saudade — justamente — do Carnaval que leva no título este sentimento de recordação nostálgica. A cada edição, a festa homenageia uma personalidade pública. Em 2020, a trajetória da cantora Beth Carvalho foi celebrada. No registro audiovisual, um tempo onde distanciamento social e máscaras não eram ainda realidade por aqui.
É na militância carnavalesca que o comunicador, compositor e produtor cultural Dilson Pinheiro atua. “Eu digo que eu milito carnaval”, brada um dos principais nomes do Carnaval de Rua da Cidade, criador do bloco “Num Ispaia Sinão Ienche” e tantos outros. Desde a infância, a festa faz parte de sua vida. Acompanhava seu pai, repórter fotográfico, na cobertura do Carnaval da rua Senador Pompeu, no Centro de Fortaleza. Cresceu observando a folia — não à toa, vive a paixão incessante pela festa.
No bloco “Num Ispaia Sinão Ienche”, Dilson propaga os bailes de Carnaval a céu aberto, com orquestra entoando as chamadas “marchinhas eternas”. Assim ele mesmo define. Outro destaque são as camisas exclusivas, idealizadas a cada ano. Nas estampas, as máscaras do Carnaval de Veneza são as protagonistas. Parte do Polo Bar da Mocinha, localizado na Praia de Iracema, o bloco se mantém pela venda de camisas, edital e apoio de amigos. Inúmeras vezes, o carnavalesco tirou verba do próprio bolso para dar conta dos custos.
O encerramento do “Quem é de Bem, fica”, também criado por Dilson na década de 1990, marca a história do “Num Ispaia Sinão Ienche”. Isso porque o bloco — uma analogia ao bairro Benfica, onde se estabelecia — tinha “crescido demais”. Foliões começaram a passar do ponto na folia, com carros de som e etc. Por desgosto e, também, respeito à comunidade, Dilson encerrou o bloco. “Ninguém acreditava, todo mundo pensava que era papo”, conta. À época, comentou: "Vou fazer um bloco na Praia de Iracema, mas ‘Num Ispaia Sinão Ienche”. A fundação ocorreu em 10 de janeiro de 1998.
Dilson vê com alegria o crescimento do Carnaval de Fortaleza. A Cidade vendia o “não Carnaval”, segundo o carnavalesco. “Nós obrigamos o poder público”, diz, sobre o movimento crescente de blocos, bandas e escolas. Neste ponto, afirma que os editais de fomento à festa foram fundamentais para o crescimento responsável.
Também apresentador da TV Ceará, Dilson realizou transmissões on-line solidárias em 2020, com outros artistas, para ajudar músicos cearenses durante a pandemia. Para Dilson, o Carnaval “morreu neste ano”. Não há como se comemorar o que não é, de fato, a festa. Ele descarta, inclusive, a folia em outro mês do calendário: “Se é fora de época, para mim, não é Carnaval”, afirma. “É chato... vir fazendo isso há mais de 40 anos e parar. Mas tem que parar mesmo! É preciso ter consciência e equilíbrio". Sobre o trabalho, Dilson diz: "Prefiro ganhar dinheiro estando vivo”.
Gil Messê Folia, 34, conhece bem as festas de Messejana, bairro de Fortaleza. Ele é produtor do Messê Folia — como já cita ao se apresentar —, responsável por organizar o tradicional Pré Carnaval de Messejana e o São João do bairro. Orgulha-se de dizer que a festa movimenta a cultura e a economia local há cerca de seis anos, com arrecadação de alimentos não perecíveis para instituições da cidade. O Bloco Messê Folia acontece nas imediações da Praça Paulo Benevides, com repertório musical para variados gostos: marchinhas, forró, axé e o que mais imaginar. Já passaram pela festa os músicos Felipão e Waldonys.
Tudo começou como uma brincadeira. Gil e amigos frequentavam o Bloco de Pré-Carnaval Jeguerê, que acontecia no Centro da Messejana. Nas rodas de conversa, os comentários repercutiram a vontade de também realizarem uma folia. Começaram a pesquisar sobre organização de eventos e, em 2015, realizaram a primeira festa. "Pensávamos em receber no máximo 500 pessoas, apareceram 2000”, menciona.
De lá para cá, o Bloco Messê Folia só cresceu. O que antes fechava apenas uma rua, passou a ocupar duas vias. Para produzir a festa, a equipe Messê Folia conta com o patrocínio das empresas do bairro. Em 2020, os organizadores realizaram o São João on-line, com o apoio dos empresários locais. Não há perspectiva de programação deste tipo para o Carnaval de 2021, mas Gil frisa: “a gente faz o evento porque gosta e só tem expectativa de melhorar para os próximos”. Ele lembra que, neste momento, a Prefeitura de Fortaleza poderia promover editais de fomento à folia virtual.
Em nota, a Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza (Secultfor) informou que o Ciclo Carnavalesco de 2021 não ocorrerá de forma presencial: "Diante do cenário pandêmico, estão sendo estudadas alternativas que obedeçam aos protocolos sanitários e decretos de isolamento em vigor".
“Eu sou louco por Carnaval!", exclama o ator e artista plástico Silvinho Gurgel. Há mais de 20 anos, o amante da folia vive o Carnaval de Fortaleza — seja desfilando na Avenida Domingos Olímpio, brincando nos blocos ou mesmo vendendo guloseimas pelos Prés-Carnavais da Cidade.
"Infelizmente, tudo vai ficar para 2022. A gente não pode fazer nada"
Silvinho iria desfilar na avenida com o Maracatu Rei do Congo e, também, com a Escola de Samba Grêmio Recreativo Sambamor em 2021. Em ambos, coincidentemente, sairia às ruas como uma florista. “Infelizmente, tudo vai ficar para 2022. A gente não pode fazer nada”, lembra.
Ator, Silvinho deveria ter estreado um espetáculo recentemente. Não foi possível. “Talvez, se conseguirmos vaga, ficará para fevereiro ou março”, diz. Durante a pandemia, o artista realizou o pedido de Auxílio Emergencial. Tem continuado fazendo suas artes. “Aparece algo para mim de vez em quando”, conta.
Na fantasia da personagem Chapeuzinho Vermelho, Silvinho aproveitava a folia para vender doces e salgados diversos nos Prés-Carnavais. “Me divertia e, ao mesmo tempo, fazia ali uma renda. Unia o útil ao agradável”, comenta. Do carnaval, reverbera a saudade. “Na época, eu vou para tudo que é canto. Para mim, esta situação é terrível, porque eu amo o Carnaval. Mas é isso mesmo, levantar a cabeça e seguir em frente” — se entrega à nostalgia.
Pingo de Fortaleza, 53, cantor, compositor, músico, escritor e pesquisador cultural, tem mais de três décadas de carreira, mais de 20 discos autorais e dois livros. Dessa trajetória, são anos dedicados ao Carnaval de Fortaleza. Essa história começa ainda na infância: na lembrança, a folia com os pais na Avenida Duque de Caxias. Em sua fala, há a celebração do simbolismo, mas, também, do investimento na festa nos últimos anos. “Antes, ao chegar o período carnavalesco, tinha a pergunta ‘Vai pra onde?’. Hoje, passou a ser ‘Vai brincar onde?'” — reflete.
" “Não sou saudosista. O tempo é agora. Temos que aprender a crescer no tempo. Não vai ter Carnaval."
Coordenado por Pingo, o Maracatu Solar tem o intuito de difundir tal manifestação cultural e formar novos brincantes na Cidade. Para Pingo, é um espaço de aprendizado e curas coletivas. Desde o início do período de isolamento social, os brincantes têm se mobilizado on-line, com ensaios e discussões sociais. Realizaram, também, algumas apresentações virtuais.
Para este Carnaval, o Maracatu Solar contempla o orixá tempo. Muitas discussões acerca do Kitembo — do bantu angola, divindade do tempo — foram fomentadas pelo grupo. “Escolhemos o tema e o ritmo e estamos estudando virtualmente. Não é fácil, mas é o possível”, diz Pingo,que está em dez grupos do Maracatu Solar no aplicativo de mensagens do seu celular. Isso porque este maracatu tem cerca de 100 integrantes permanentes e mais de 300 brincantes no período carnavalesco.
Sobre a saudade do Carnaval, Pingo declara: “Não sou saudosista. O tempo é agora. Temos que aprender a crescer no tempo. Não vai ter Carnaval. Vamos pontuar simbolicamente, difundir o que fizemos, trabalhar a cabeça. Quando o corpo sente a ausência, eu corro, nado”. Ao O POVO, Pingo compartilha os versos da canção “De um Tempo Mais que Solar”, loa (tema e composição) oficial do Maracatu Solar em 2021.
De Um Tempo Mais que Solar*
(Pingo de Fortaleza)
Aquele que dá
Aquele que tira
Só ele faz passar
Todas as dores
Também nossos amores
Ao Tempo nós vamos cultuar
Um Altar para esse Tempo
O Tempo nós vamos venerar
Nzara Tempo
Eu sou D'angola
Eu sou de um tempo
Mais que Solar
Porque eu sou bantu
De bandeira branca
Pra evoluir e sempre melhorar (repete 1 vez)
Tema 2 A (solene)
E nos perdoar
Se nem ele nos melhorar
Porque só esse tempo
Dá paciência para recomeçar
Repete Tema 1
Tema 2 B (Solene)
E acreditar
Quando tudo está fora de ti
Subir na escada da vida
Com a flecha apontada pro céu
Repete tema A
Tema 2 C
E referenciar
O presente do existir
Dançar a qualquer tempo
O carnaval é dentro de Si
Repete tema A e acrescentar no fim
...Pra sempre melhorar
Pra sempre ser Solar...
(*) Loa oficial do Maracatu Solar 2021
A Associação Cultural e Educacional Afro Brasileira Maracatu Nação Iracema conquistou o 1º lugar na “categoria maracatu” do sábado, primeiro dia do tradicional Desfile da Domingos Olímpio. Com o resultado, competiria no grupo principal, no domingo de Carnaval deste ano.
Para William Augusto, presidente do Nação Iracema, “a situação é dolorosa”. “Investimos o que tínhamos e o que não tínhamos", sublinha. Ao mesmo tempo, o grupo tem consciência de que a realidade não permite aglomerações. Em 2020, com a retomada das atividades econômicas e comportamentais, os brincantes de Fortaleza do Nação Iracema chegaram até a ensaiar e realizar oficinas de montagem de roupas.
Nas mídias sociais, a Associação propõe discussões e divulga memórias. O presidente lembra que toda a situação é difícil, pois o grupo não está somente na Capital cearense. Existem brincantes no Crato, no Canindé e em Pindoretama, para citar alguns. De acordo com William, “as nossas atividades são feitas para desembocar no Carnaval. A linguagem do Maracatu é importantíssima e movimenta toda uma estrutura”.
Dos 67 anos de idade de José Maria de Paula Almeida, 40 são de maracatu. Destes, 36 anos são dedicados à atuação enquanto Rainha de Maracatu do Ceará, a figura mais importante dos cortejos. Mestre Almeida tornou-se memória viva desta manifestação cultural — que, para ele, é a "principal agremiação do Carnaval de Fortaleza”.
Pertencente ao Maracatu Nação Iracema desde 2003, Mestre Rainha Almeida tem sua história marcada pela difusão da Cultura Popular Tradicional. Não à toa, em 2018, ganhou os títulos de Tesouro Vivo da Cultura do Estado do Ceará do Maracatu e de Notório Saber em Cultura Popular pela Universidade Estadual do Ceará (Uece).
Natural de São João do Jaguaribe, na região do Vale do Jaguaribe, nageado Mestre Almeida foi homeno 61º aniversário do município, por “relevantes serviços à comunidade”. Sua história com o carnaval começa ainda nas escolas de samba. Brincava no Império Ideal, na Corte do Samba, Mocidade do Mucuripe e Girassol, aqui em Fortaleza.
A partir da década de 1980, se encontrou no Maracatu. Junto ao jornalista Paulo Tadeu Sampaio, fundou o Maracatu Vozes da África para celebrar a ancestralidade e a cultura popular. O encontro com o maracatu tomou conta de corpo e alma. “Me transformou totalmente”, conta Almeida. Desde 2018, por motivos de saúde, teve que abdicar da avenida por conta do peso da indumentária da Rainha. Márcio Almeida, seu primo, o substituiu.
Com a pandemia da Covid-19, Mestre Almeida diz: “É uma grande saudade, mas o afastamento se torna imprescindível para que possamos nos preservar”. Para o Tesouro Vivo, “ficamos privados de nos transbordar”.
Entrevista
Catherine Furtado, doutora em Educação Brasileira, se debruça sobre o Carnaval de diferentes maneiras, desejos, estímulos e perspectivas. Professora do curso de Música da Universidade Federal do Ceará (UFC), baterista e percussionista, ela tem experiência marcada pela música, educação musical e etnomusicologia.
Coordenadora e regente do Grupo de Música Percussiva Acadêmicos da Casa Caiada, pesquisa percussão popular brasileira e africana. Brincante do Maracatu, Catherine Furtado fala ao O POVO sobre a expressão cultural do Carnaval, as saudades do período e a relação da música e da percussão com a festa.
O POVO - Quando começa a sua relação com o Carnaval?
Catherine Furtado - Minha relação com o Carnaval acontece diretamente através dos tambores dos maracatus. Nos ensaios, nos encontros, nas apresentações e nos desfiles carnavalescos. O carnaval, de certa forma, sempre esteve presente na minha vida, mas o encantamento, a magia, o ser e sentir dessa festa me atravessa quando, em grupo, tocamos aos sons dos tambores. Em especial, no Maracatu de Fortaleza, como o Solar, Nação Fortaleza etc. Isso aconteceu em 2008, quando tive a alegria de batucar em parceria, amizade e aprendizado com nosso Griot Descartes Gadelha.
"Acredito cada vez mais que a nossa festa carnavalesca possa ser a avenida aberta para o palco do desenvolvimento do respeito, do compromisso, da valorização dos e das artistas, da arte como um todo. "
O POVO - O que significa o carnaval enquanto expressão cultural? De que forma a festa se enlaça à cultura brasileira?
Catherine Furtado - A festa é a própria Cidade em sua dinâmica, movimento, lideranças e compromisso cultural. O viver se expressa na cultura. É algo valioso, que vale sim como o bem maior que é a própria vida. Por isso, a sociedade necessita de espaços, tempos e lugares que acolham as expressões culturais. Nesse caso, o Carnaval. Para que o fluxo da humanidade siga dentro dessa obra de arte em cor, música e dança, que marcam desde sempre o calendário festivo do nosso País. Carnaval, cultura e arte não são adornos (aquilo com que se enfeita).
Como festa popular, há sempre uma resultante que marca as transgressões, as memórias, os encontros e, acima de tudo, a luta de fortes representações de gênero, étnica, política, musical e, por completo, do ser humano. Acredito cada vez mais que a nossa festa carnavalesca possa ser a avenida aberta para o palco do desenvolvimento do respeito, do compromisso, da valorização dos e das artistas, da arte como um todo. O brincar também é espaço de vida e, por isso, é coisa séria. Tem que investir, cuidar, manter, respeitar e valorizar tudo o que se refere à nossa construção cultural brasileira.
"As marchinhas nos expressam em tempo, espaço e arte musical. Apresenta o nosso Carnaval de baile, das calçadas, das ruas, das rádios."
O POVO - A música está sempre presente nos Carnavais. O que as marchinhas dizem sobre nós e sobre a festa?
Catherine Furtado - As marchinhas nos expressam em tempo, espaço e arte musical. Apresenta o nosso Carnaval de baile, das calçadas, das ruas, das rádios. Nesse retorno ao passado, se faz presente por meios de festivais, composições e artistas jovens que nesse movimento carnavalesco fazem um excelente trabalho com esse estilo musical. As letras em poesia ou contos históricos nos embelezam com as melodias ritmadas, para que o confete e a serpentina permaneçam sempre no nosso carnaval. É um marco em marcha colorida contínua!
"A percussão, o batuque, o tambor é a constante resistência que nós temos."
O POVO - Como a percussão popular brasileira e africana está atrelada à festa?
Catherine Furtado - É inspiração! Resistência! Protagonismo! E, novamente, resistência! Agô (pedido de licença para movimentos de passagem) para fazer referência à musicalidade africana sempre tão importante. Ao mesmo tempo, ainda não tão reconhecida com o seu valor de fato. A percussão, o batuque, o tambor é a constante resistência que nós temos. Mesmo que, por vezes, ainda inviabilizada, é o farol cultural, histórico e social que mais nos fez e faz como música, som e costura do povo brasileiro. Faço um salve e gratidão à nossa cultura dos povos indígenas. É preciso viver o tambor para cada vez entender que somos tudo o que o tambor África nos abraça.
O POVO - Enquanto coordenadora do Acadêmicos da Casa Caiada da UFC, como foi esse ano de 2020, sabendo que provavelmente em 2021 não teria a programação do Ciclo Carnavalesco?
Catherine Furtado - O Casa Caiada tem trabalhado ultimamente mais na perspectiva da apresentação anual de espetáculos percussivos. Nesse período carnavalesco, nossas atividades acontecem mais como um Pré-carnaval com apresentações em escolas, algumas programações da Cidade. Com muita alegria, quase todo nosso batuque desfilou com grupos carnavalescos da cidade. É uma forma de vincular uma atividade acadêmica com a perspectiva popular no palco da rua, sempre.
O POVO - Você é brincante do Maracatu. O que a cultura do Maracatu representa na sua vida e como ela se enlaça ao Carnaval?
Catherine Furtado - Representa o meu desejo de vida! É o pulsar para que eu possa sempre acordar e agradecer pela oportunidade de ter música, tambor e gente para trabalhar e ser feliz. É o meu compromisso em ser uma pessoa que possa contribuir artisticamente para sociedade, universidade etc. É ser feliz mesmo em tantos caos que há na própria existência humana. Isso não é apenas um sentimento romântico. É, para além disso, uma missão de compartilhar que sigo na minha profissão e me realizo como pessoa.
"O recolhimento, o isolamento e as demais necessidades de sobrevivência mexeu de forma constante no nosso dia a dia. E, claro, a cultura também foi afetada diretamente."
O POVO - Muitos foliões estão sentindo falta da festa. Pessoalmente, como está sendo esse período?
Catherine Furtado - Um momento difícil. Infelizmente, em meio às tantas perdas e às inúmeras agressões governamentais, certamente, vivemos em um período duro. O recolhimento, o isolamento e as demais necessidades de sobrevivência mexeu de forma constante no nosso dia a dia. E, claro, a cultura também foi afetada diretamente. As adaptações, os novos formatos de contato e as reinvenções, inclusive tecnológicas, estiveram a favor de muitos para reelaborarem formas de manutenção e contato. Nem sempre é o suficiente, mas foram meios adquiridos. ‘O hoje’ está bem diferente dos outros. Temos saudades, memórias e a certeza de que isso vai passar. A resistência continua.
“A saudade prova que valeu a pena”, destaca o jornalista, historiador, pesquisador e colecionador Miguel Ângelo de Azevedo, o Nirez. De acordo com o dono de um dos maiores acervos sobre Fortaleza, as manifestações artísticas do período carnavalesco eram comemoradas como entrudo — “uma festa popular com brincadeiras muito pesadas e até antisociais”, explica.
No início do Século XX, no Rio de Janeiro, foi determinada a extinção do entrudo. A festividade deu lugar ao Carnaval como um movimento regrado pelas autoridades. Naquele momento, começaram a se formar diversos blocos brincantes — mais organizados — pelas ruas.
À época, Chiquinha Gonzaga já compusera o que viria a ser o hino do Carnaval brasileiro: “Ó Abre Alas” (1899). Ainda Capital do Brasil, a cidade influenciava as Capitais dos demais Estados. Segundo Nirez, não poderia ser diferente por aqui. As Sociedades Carnavalescas começaram a se formar, com carroças e bondes como carros alegóricos. Pelas esquinas, entre danças e risos, as marchinhas eram a trilha sonora.
Ao falar sobre o Carnaval de Fortaleza, logo vem à mente os maracatus. De acordo com Danielle Maia Cruz, doutora em Sociologia e autora do livro "Maracatus no Ceará: sentidos e significados", essa expressão popular rememora rituais de coroação dos reis negros no contexto da diáspora (imigração forçada) africana. Tais festividades aconteciam no fim do Século XIX na Cidade, no âmbito das irmandades religiosas de Nossa Senhora do Rosário.
“Naquele período, os cotejos ocorriam próximos ao Ciclo Natalino, mas mudanças aconteceram no decorrer das décadas. No fim do século XIX, os desfiles dos maracatus nas ruas da Cidade já ocorriam notadamente no período carnavalesco”, afirma Danielle.
Mais para frente, surgem maracatus que acentuam o enlace ao Carnaval de Fortaleza — o principal seria o ainda atuante Az de Ouro. Dentre as características do maracatu cearense, está a máscara negra — chamada de negrume — uma pintura na pele com tinta preta. No cortejo, a rainha é a personagem principal, posição tradicionalmente ocupada por pessoas do gênero masculino.
Para Nirez, “o maracatu existia como folclore”. Na sua visão, a expressão cultural, enquanto parte da festividade carnavalesca, parte da fundação do maracatu Az de Ouro, em 1936.
Devido às configurações das escolas e das competições, Nirez considera o Carnaval de Fortaleza até os anos de 1960. “A partir daí, não tomei mais conhecimento. O Carnaval daqui morreu de tal forma que até hoje não conseguiu se reerguer por completo. Restam expressões interessantes, como os Maracatus. Em síntese, o Carnaval daqui foi soterrado por um documento da Prefeitura que deixou parecido com o do Rio de Janeiro”, exclama.
Ainda assim, Nirez vê o Pré-Carnaval como um movimento "interessantíssimo". Na festa, que integra o Ciclo Carnavalesco e antecede o Carnaval propriamente dito, as marchinhas se proliferam. Tem-se pessoas saindo às ruas, fantasiadas, puxando blocos. O historiador afirma: “O nosso Pré-Carnaval é muito mais Carnaval do que o próprio Carnaval”.
Das transformações no maracatu cearense ao longo do tempo, uma das que mais chama atenção é a inserção efetiva de mulheres — antes proibidas de participarem da festa — como brincantes a partir dos anos de 1970. Danielle Maia Cruz explica: “Essa censura estava intimamente relacionada com o contexto social da época, que demarcava com vigor a proibição de mulheres em determinados espaços de sociabilidades, dando ênfase aos papéis sociais possíveis que podiam desempenhar”.
A reportagem rememora os primeiros registros do carnaval de Fortaleza nas páginas do O POVO. Nos escritos, a menção ao “o que foi o Carnaval cearense de 1929”. A crise econômica afetou as festas públicas da Cidade. À época, o corso de automóveis não foi tão expressivo quanto os anos anteriores. Daquela madrugada do dia 13 de fevereiro, o destaque ficou por conta do Carnaval dos salões — “o mais vibrante que Fortaleza já viveu”, dizia.
Em 1934, falando sobre os “ecos do Carnaval” do Clube Iracema, os dizeres lembram o âmago desta festa: um lugar “onde a alegria jorra liberta dos preconceitos sociais”. As páginas trazem, por vezes, referência ao Rei Momo, personagem da mitologia grega símbolo do carnaval.
No livro Maracatus no Ceará: sentidos e significados (2011), Danielle Maia Cruz derrama seu olhar sobre a preparação do maracatu Nação Iracema, por uma vertente sociológica e antropológica. Na obra, apresenta como seus dirigentes entendem a manifestação como representativo do negro no Ceará e da valorização da cultura afrodescente.
“Por trás da máscara negra, pulsam singularidades”, diz Danielle. Segundo a pesquisadora, o arsenal cênico dos maracatus reflete sobre uma Cidade marcada pela desigualdade social e que, por vezes, nega suas expressões de matriz africana. “Além de rememorar a coração de reis negros, os maracatus são, para os brincantes, mecanismos de expressar suas subjetividades, emoções e motivações de mundo”.
A pesquisa de Danielle teve início em 2006, mas o caminho já estava traçado. “Como nada na vida se faz de imediato, o desenho desse campo já estava configurado no meu inconsciente desde a infância, quando os ventos certamente me traziam as loas de grupos com sede no bairro da Bela Vista, onde residi na primeira década da vida”, poetiza.
Apreciador do Maracatu do Ceará, o professor e cineasta Valdo Siqueira indica o curta-metragem Contramão - História do Maracatu Cearense. A obra tem pesquisa e roteiro de Osiel Neto, Célia Gurgel, Rafael Cunha e Danielle Rotholi. “Esse filme é adotado no Programa de Pós-graduação da Universidade Federal do Pernambuco (UFPE) para ajudar a diferenciar o nosso maracatu para o de Recife”, diz Valdo. No documentário, relatos de personalidades do movimento.
O Bloco Luxo da Aldeia lançou, recentemente, a música “Marcha do Desencontro”. Gravada em casa, no formato voz e violão, a faixa está disponível nas mídias sociais do Bloco. Composição é uma parceria entre Bruno Perdigão, Thales Catunda e Marcus Dias. Mesmo de uma maneira informal, o grupo quer marcar o período e rememorar a vivência do Carnaval dos encontros e desencontros.
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Para afago dos carnavalescos, O POVO preparou uma playlist de canções que remetem à festa. Além do Luxo da Aleida, tem Novos Baianos, Margareth Menezes, Daniela Mercury, Caetano Veloso, Chico César, Olodum, Chiclete com Banana e outros. Confira!
“Não deixe o samba morrer!”
Live "O Trio: Ivete, Claudia e Você" com Ivete Sangalo e Claudia Leitte
Quando: 13 de fevereiro, às 17 horas e 30 minutos
Onde: No canal no Youtube da Claudia Leitte e da Ivete Sangalo
Live Camaleão com Bell Marques
Quando: 14 de fevereiro, às 16 horas
Onde: No canal no YouTube de Bell
Festival Jazz&Blues 2021
Quando: de 13 a 16 de fevereiro
Onde: No canal Jazz&Blues no YouTube