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Christian Dunker: "Nossa cultura se entranhou na depressão"
Reportagem Especial

Christian Dunker: "Nossa cultura se entranhou na depressão"

Naturalizada no mundo contemporâneo, a depressão e o que sabemos dela parecem ter nascido junto com o mundo. Em sua nova obra, Christian Dunker apresenta uma biografia da doença em relação à história da humanidade

Christian Dunker: "Nossa cultura se entranhou na depressão"

Naturalizada no mundo contemporâneo, a depressão e o que sabemos dela parecem ter nascido junto com o mundo. Em sua nova obra, Christian Dunker apresenta uma biografia da doença em relação à história da humanidade
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Considerada pela Organização Mundial de Saúde como a doença no século XXI, a depressão se instaurou, na nossa compreensão de mundo e da vida, como algo quase impossível de se fugir em algum momento da existência. Mas nem sempre foi assim. É o que diz o psicanalista Christian Dunker, professor titular do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP, com pós-doutorado na Manchester Metropolitan University, além de ser professor convidado em mais de 15 universidades internacionais. Ele foi duas vezes agraciado com o prêmio Jabuti por livros publicados, e agora apresenta seu novo trabalho: "A Biografia da Depressão", pela Editora Planeta. 

Ao longo do livro, Dunker refaz os passos genealógicos do transtorno, a partir de seus parentes distantes nas famílias da tristeza e da melancolia, para mostrar que a depressão é "um nome demasiado pequeno para tantas formas e cores, que reúne coisas que não andam juntas".

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A obra também analisa a doença e sua relação com fenômenos contemporâneos, como as redes sociais. "A novidade trazida pela vida digital é que o princípio da bilheteria pode ser universalizado. Todos podem entrar e praticar o show do eu criando uma espécie de ilusão dentro da ilusão, ou de teatro dentro do teatro, no interior do qual vamos enfim saber o tamanho de cada eu (pelo número de curtidas). O resultado, para ganhadores e perdedores, é o mesmo: irrelevância, mesmidade e banalidade", ele afirma. 

Em entrevista ao O POVO, fala sobre a importância da compreensão, do percurso da doença ao longo dos anos e sua relação com capítulos importantes da história da humanidade. 

 

"A pergunta deste livro é: Como foi tão fácil a gente aceitar que as nossas dificuldades, as nossas culpas, a nossa imobilidade, a nossa recusa em produzir ou assumir tem esse nome convergente ou catalisador que é a depressão?"

 

O POVO - Compreender e recontar a história da depressão é um caminho, uma forma de ajudar o mundo a superá-la? O que lhe motivou nesta jornada?

Christian Dunker - A ideia de contar, de fazer a história da depressão me parece uma maneira importante para enfrentá-la no seu devido volume e com a sua devida diversidade. A ideia de que a depressão seria uma diabetes mental, refratária à forma como a gente a descreve, como uma doença orgânica, me parece ter feito muito mal para o campo dos transtornos mentais, e refazendo a invenção da depressão a gente percebe quais são as suas valências com a nossa forma de trabalhar, de amar, de usar a linguagem, com nossa maneira de desejar. A confiança que se estabeleceu em torno da unidade da depressão, ainda que a gente tenha 17 diagnósticos distintos disponíveis, a ideia é de que diante da depressão as palavras não são eficazes, sendo as palavras da própria pessoa, sua hermenêutica, sua história de vida, sua biografia, o que ela vê de sentido e contra sentido daquilo que lhe ocorre. O campo da palavra é fundamental para a gente enfrentar a depressão. Pensando desta maneira não estou elidindo as modificações que efetivamente acontecem no cérebro, mas é difícil ainda para as pessoas aceitarem que a linguagem muda o cérebro e o cérebro muda a linguagem.

O POVO - Vendo o percurso pelo qual a humanidade passou em relação à depressão, o senhor acredita que vivemos hoje em um mundo cada vez mais depressivo? Ou é a ciência que compreende e consegue diagnosticar melhor a doença?

Christian Dunker - É possível que a ciência tenha dirimido melhor o processo depressivo, mas não deixa de ser uma grande coincidência que a invenção dos antidepressivos, basicamente na década de 80, tenha coincidido com a expansão do diagnóstico de depressão. Ou seja, como se a gente tivesse primeiro inventado o remédio e, daí, começamos a ver a doença, o transtorno em mais e mais lugares. Isso é sempre suspeito. Remete um pouco àquela ideia de que a pessoa, com um martelo na mão, vai estar mais propensa a ver pregos por toda parte. Além disso, é preciso pensar que a depressão passou a ser mais facilmente diagnosticada e principalmente por não especialistas. A maior parte dos receituários, de antidepressivos, vem de cardiologistas, dermatologistas, gastroenterologistas, quando não são receitas emprestadas de um amigo, e do autodiagnóstico. Ou seja, a nossa cultura se entranhou na depressão. A pergunta deste livro é: como foi que isso aconteceu? Como foi tão fácil a gente aceitar que as nossas dificuldades, as nossas culpas, a nossa imobilidade, a nossa recusa em produzir ou assumir tem esse nome convergente ou catalisador que é a depressão? É importante lembrar aqui que a expressão depressão é conhecida desde o século XIX, não é tão antiga assim, e ela se populariza depois do uso deste termo pelos economistas. A `Grande Depressão de 29´, a `Crise Depressiva das Economias no Pós-Guerra´, ou seja, há algo que faz com que a gente aceite melhor esta narrativa à medida que ela chega de diferentes pontos de vista.

Christian Dunker: novo livro resgata a história da depressão
Foto: Walter Craveiro/ FLIP FESTA LITERÁRIA / Divulgação
Christian Dunker: novo livro resgata a história da depressão

O POVO - Muito se fala sobre o fenômeno das redes sociais e o efeito maléfico sobre as mentes. O senhor considera estes canais de interação nocivos do ponto de vista das individualidades?

Christian Dunker - Há uma associação consistente entre um certo uso de rede social e o aumento do sentimento de solidão. Este aumento gira em torno de um ponto, um ponto e meio desde a geração dos baby boomers, depois do final da Segunda Guerra. Essa relação com o uso da linguagem mais acelerado, talvez mais impessoal, o uso da linguagem que me põe em bolhas, não vou dizer que tenha um papel etiológico, não tem um papel causal, mas acaba amplificando certos tipos de depressão, principalmente aquelas depressões que dependem basicamente da nossa gramática de reconhecimento, ou seja, da relação que a gente faz entre os nossos ideais, ou seja, do que gostaríamos de ser, nossa apreciação do que somos e nossa apreciação de como fomos amados até aqui. As redes sociais manipulam essa equação, fazem com que a gente procure ir, se satisfaça e vá diminuindo o tamanho do mundo, em função do negacionismo, em função da lacração, em função do cancelamento. E isso produz indiretamente uma expansão do volume do 'eu'. Essa expansão do volume do 'eu' ela pode, para muitos casos, ser um agente facilitador.

Christian Dunker: novo livro resgata a história da depressão
Foto: Walter Craveiro/ FLIP FESTA LITERÁRIA / Divulgação
Christian Dunker: novo livro resgata a história da depressão

O POVO - O cenário político brasileiro de intenso acirramento e divisão, transbordando da cena pública para a privada, pode contribuir para o desenvolvimento de uma depressão?

Christian Dunker - Vamos considerar a depressão uma síndrome, muito diversa, talvez ela sofra de uma personalidade múltipla, mas que ela é sensível à forma como a gente lida com conflitos. Ela é sensível à maneira como a gente interioriza conflitos, como a gente dirige agressividade, que poderia ir para fora em forma de ódio, para si mesmo. Ela pode depender também da maneira como a gente interpreta nossas perdas e vulnerabilidades. Então um discurso ascendente de ódio, de imputação de culpa a grupos minoritários, um discurso que preza a violência, ele pode produzir de forma discriminada um sentimento de melancolização do poder. A gente não consegue fazer frente a um poder que se coloca desta maneira, autoritária para alguns, fascista para outros. A polarização tem o efeito de romper laços. A gente viu isso nas famílias, nas empresas, nas comunidades. A ruptura de laços é como se fosse a retirada de elementos que podem ter uma função protetiva para processos depressivos. Pessoa muito individualizada, muito solitária, muito fechada em si mesmo, não quer dizer que ela seja depressiva, mas ela pode estar mais exposta a processos depressivos, sugerindo que a depressão é um transtorno ligado à circulação do desejo, a compartilhamento social de afetos, ligado ao pertencimento a comunidades de destino, mais funcionais. A depressão tem a ver com a maneira como a gente fala, mas também com a maneira como a gente negocia nossa vinculação a grupos que me fazem me omitir como sujeito, que me fazem funcionar como um personagem. Isso esvazia o sujeito. Diminui sua capacidade de abrir-se à experimentação de novas formas de satisfação, o que talvez se ligue com a perda gradual, mais generalizada de satisfação que os depressivos testemunham.

 

"A depressão pode ser a cura para a polarização, mas ela pode ser também a continuidade, o acirramento da polarização. Me diga como você conta a história da sua pandemia, que eu te direi como vai ser seu novo normal"

 

O POVO - Estudiosos divergem sobre o mundo pós-pandemia. Como o senhor vislumbra o futuro, a partir da superação deste vírus, do ponto de vista comportamental? Haverá mudanças?

Christian Dunker - É obviamente uma projeção de como a gente está interpretando este percurso. Se a gente interpreta que foi um hiato na nossa obsessão com produtividade, com nossa obsessão por perfeição, por um trabalho 24 horas por dia, sete dias por semana, talvez isso traga um outro posicionamento das pessoas que, quiçá, queiram ficar mais em casa, trabalhar home office, valorizar um tempo mais lento, que é o que temos na experiência privada da casa. Por outro lado, isso pode ensejar experiências de travessia da pandemia baseadas no medo, baseadas no aumento, por exemplo, da depressividade, no corte de ligação com os outros, porque os outros são perigosos, podem transmitir o vírus. Dos dois lados há perdas e ganhos. Do lado daqueles que querem aglomerar, daqueles que negam a periculosidade, que em geral são aqueles que também estão negando o luto coletivo que estão enfrentando, perda de condição financeira para muitas pessoas, o desastre ambiental, a perda de perspectivas e ideais. Tudo isso são processos ligados ao luto e que agem muito sobre as depressões. O que quero dizer é que a gente pode ter por um lado um mundo mais depressivo no sentido de com menos esperança, menos satisfação e um mundo mais depressivo no sentido de que alguns psicanalistas falam na depressão como aquele ponto de vista, aquela posição diante do mundo, que permita se apreender o mundo na sua realidade, na sua integração do objeto, não só o lado mau ou lado bom. A depressão pode ser a cura para a polarização, mas ela pode ser também a continuidade, o acirramento da polarização. Me diga como você conta a história da sua pandemia, que eu te direi como vai ser seu novo normal.

Capa do livro "Uma Biografia da Depressão", de Christian Dunker
Foto: Divulgação Editora Planeta | Selo Paidós
Capa do livro "Uma Biografia da Depressão", de Christian Dunker

Sobre o livro

Título: A Biografia da Depressão

Autor: Christian Dunker

Páginas: 240

Preço: R 46,90

Editora: Planeta | Selo Paidós 

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