Fortaleza concentra cerca de 41% da infraestrutura de oxigênio hospitalar do Estado. Ao todo, são 117 unidades somente na Capital, e 171 distribuídas por outras 183 cidades da Região Metropolitana e do interior do Ceará. Com menos de um equipamento por município e considerando que nem todos eles funcionam em estabelecimentos que atendem pacientes com Covid-19, a situação preocupa pelo atual cenário da pandemia e das dificuldades de logística quanto à distribuição de oxigênio medicinal já apresentadas por gestores locais.
Com essa disparidade, existem desertos de oxigênio no Estado. Neles estão cidades com Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) médio ou baixo e uma população de 3,4 milhões de cearenses expostos a risco alto ou altíssimo para incidência do coronavírus. O levantamento foi feito pelo Data.doc — Núcleo de Dados do O POVO — com base em informações do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) e nos índices de risco para Covid-19 e de ocupação de leitos no Estado.
Nessas regiões expostas a risco alto ou altíssimo para incidência da Covid-19, os novos casos por dia chegam a 410,5 por 100 mil habitantes, pelo menos, de acordo com os níveis de alerta para incidência do Estado. Já o IDHM leva em consideração as mesmas dimensões utilizadas no IDH Global — longevidade, educação e renda — de forma ajustada à realidade dos municípios.
Sobre a concentração desse tipo de infraestrutura na Capital, Rodrigo Silva, pesquisador do Laboratório de Inovação Tecnológica em Saúde da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Lais/UFRN), aponta a necessidade de se avaliar a relação entre número de leitos e população das regiões. Dados do Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece) mostram que apenas em cinco municípios o número de habitantes por quilômetro quadrado (hab/km²) vai de 500,01 a 8.601,20. Em contrapartida, 113 cidades possuem até 50 hab/km².
“Então, as unidades de saúde acabam se concentrando mesmo na capital. E isso não é ruim, mas também não é necessariamente bom”, aponta o pesquisador. Isso porque, de acordo com ele, quando não há investimento em infraestrutura setorizada, ao longo de todo o território, aumenta-se o fluxo de pacientes para hospitais dos grandes centros e, consequentemente, a lotação dessas unidades.
Com base nos dados informados pelos próprios gestores ao preencherem o CNES, 154 unidades de saúde do Ceará possuem pelo menos uma usina de oxigênio, e essa rede tem um perfil de estabelecimentos de alta e média complexidade. Ao todo, constam na plataforma 288 equipamentos, dos quais 66% (190) pertence à rede do Sistema Único de Saúde (SUS). Na Capital, embora exista um equilíbrio, 54% (63) estão no sistema particular.
A lista inclui desde hospitais, maternidades e Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) a centros especializados em Odontologia e Oftalmologia, entre outros. Também estão presentes nesse levantamento hospitais e UPAs que possuem leitos para Covid-19, sejam eles de enfermaria ou de Unidade de Terapia Intensiva (UTI).
Porém, nem todos estão registrados no CNES com esse tipo de infraestrutura, apesar de possuírem o equipamento. É o caso da UPA de Pentecoste e da Santa Casa de Paracuru — Nesse último caso, uma usina foi instalada em 2020, por conta da pandemia, e o secretário municipal da Saúde, Ângelo Nóbrega, afirma que o Cadastro Nacional tem sido preenchido normalmente.
Essa ausência de informações sinaliza para uma falta de transparência administrativa, tendo em vista que a Portaria 1646/2015 obriga a atualização e informação mensal dessas unidades pelas gestões locais. Os dados utilizados para este levantamento são de fevereiro deste ano e foram consolidadas em março.
Para a declaração sobre a existência desse tipo de infraestrutura na unidade de saúde, o CNES possui um campo denominado “usina de oxigênio”. De acordo com a resolução Nº 70/2008 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), uma usina concentradora de oxigênio funciona por meio do processo de Pressure Swing Adsorber (PSA).
Nem todos os estabelecimentos de saúde que declaram, no CNES, possuir usinas têm equipamentos que se encaixam nessa definição. Alguns, por exemplo, possuem apenas cilindros que são abastecidos por empresas fornecedoras ou espaços reservados para guardá-los.
Em Fortaleza, essa confusão pode ser percebida nas UPAs pertencentes à rede municipal. No Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, consta que cada uma das seis Unidades de Pronto Atendimento tem uma usina de oxigênio, mas na realidade apenas três delas — Edson Queiroz, Vila Velha e Bom Jardim — têm esse tipo de equipamento.
“(Elas) geram e armazenam cerca de 5,6 m³ de oxigênio por hora aos pacientes que necessitem do insumo, mantendo os estoques abastecidos. Em casos de emergência, as unidades também contam com cilindros de backup”, informa, em nota, a Secretaria Municipal da Saúde (SMS).
Na última terça, 30, a capacidade dessas três usinas começou a ser ampliada. O equipamento da UPA Edson Queiroz teve a capacidade triplicada, e as Unidades Vila Velha e Bom Jardim receberão novas usinas até o próximo dia 6.
Na rede estadual, por sua vez, apesar de estabelecimentos como o Hospital Geral Dr. César Cals e o Hospital Infantil Albert Sabin (Hias) informarem que possuem uma usina cada, a Secretaria da Saúde do Estado (Sesa) esclarece que a infraestrutura existente nas unidades da Rede Sesa diz respeito a tanques criogênicos fixos — ou tanques de armazenagem fixa.
“É um recipiente estacionário com isolamento térmico, destinado à armazenagem de gases medicinais na forma líquida. A empresa White Martins realiza o abastecimento para essas unidades”, finaliza a nota enviada ao O POVO.
Com o aumento da internação de pacientes com Covid-19 no Ceará, a maior demanda por oxigênio medicinal e o alerta sobre a possibilidade de desabastecimento no Interior, o governador Camilo Santana (PT) afirmou, no dia 14 de março, que hospitais e equipamentos de saúde estaduais tinham suporte de oxigênio suficiente. O problema seria a questão logística envolvendo municípios e empresas contratadas por eles.
A obrigação legal de garantir o insumo é dos gestores municipais, porém, tanto a Sesa quanto o Ministério da Saúde (MS) têm papel enquanto agentes de coordenação e de fiscalização, conforme explicou o promotor de Justiça Enéas Romero de Vasconcelos ao O POVO. No dia 23 de março, a Assembleia Legislativa do Estado do Ceará (ALCE) aprovou projeto de lei que possibilita que o Governo do Estado, por meio da Sesa, adquira e distribua oxigênio para unidades hospitalares municipais e hospitais filantrópicos que atendem pacientes com Covid-19.
No início da década de 1990, Francisco Barbosa Neto trabalhou na Secretaria de Educação Superior do Ministério da Educação (Sesu/MEC) como consultor da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) na área de Hospitais de Ensino e Residência Médica. Docente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), ele conta que, na época, uma das estratégias era implantar, desenvolver e aperfeiçoar usinas de oxigênio — inicialmente nos hospitais de ensino e, posteriormente, em todo o SUS.
“O objetivo era enfrentar e superar o oligopólio das empresas que comercializam oxigênio hospitalar e outros gases medicinais”, conta. Chegou-se a implantar programas de residência em Engenharia Clínica em Hospitais de Ensino para garantir o desenvolvimento desse projeto e de outras áreas tecnológicas em Saúde. Porém, o propósito não foi alcançado.
“Infelizmente, como muitas outras iniciativas neste nosso sofrido Brasil, acabaram sendo bloqueadas pelas duas maiores 'pragas' da gestão pública no País: a descontinuidade e a falta de transparência, impedindo os projetos pioneiros e fundamentais para a sustentabilidade das instituições”, lamenta Neto.
"O caos instalado pelo desabastecimento deste gás essencial à vida demonstra cabalmente que não é possível garantir o direito fundamental social à saúde confiando a prestação de serviço somente ao setor privado, pela privatização da saúde"
Entre 2017 e 2021 — especialmente desde o início da pandemia —, houve aumento do número de leitos de UTI ofertados na rede pública do Estado. A infraestrutura de oxigênio existente no SUS e notificada no CNES não seguiram o mesmo caminho. Em série histórica desde 2012, percebe-se que o número delas pouco variou. Para o professor da UERJ, isso pode sinalizar a dependência das produtoras de oxigênio e outros gases medicinais.
Essas produtoras, porém, podem ter subestimado a demanda na Covid-19, segundo o engenheiro clínico José Nilson Fernandes. A maneira tradicional de se planejar a compra de oxigênio medicinal já não funcionava para o cenário de agravamento da pandemia pelo aumento no consumo desse insumo em tratamentos invasivos ou não-invasivos. “O planejamento desse tipo de demanda depende basicamente do engenheiro clínico, que não é visto ainda como um profissional estratégico”, comenta.
O Projeto de Lei 1069/21 visa a tornar obrigatória a instalação de usinas geradoras de oxigênio medicinal em unidades hospitalares e de saúde que possuam leitos de internação. De acordo com o PL, a capacidade de produção do equipamento deve ser equivalente, pelo menos, ao triplo da quantidade utilizada na unidade no ano anterior. Isso porque deverá atender o número de leitos disponíveis e a quantidade média de atendimentos na unidade.
De autoria do deputado José Ricardo (PT-AM), o texto aborda a crise de desabastecimento de oxigênio que ocorreu em Manaus em janeiro último. "O caos instalado pelo desabastecimento deste gás essencial à vida demonstra cabalmente que não é possível garantir o direito fundamental social à saúde confiando a prestação de serviço somente ao setor privado, pela privatização da saúde", argumenta. Ainda segundo o PL, o atual cenário aponta a necessidade de o SUS ter o próprio sistema de fornecimento de oxigênio.
De acordo com a portaria nº 1.646/2015, do Ministério da Saúde, o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) é o sistema oficial de cadastramento de informações de todos os estabelecimentos de saúde do País, independentemente de pertencerem ou não ao SUS. Em teoria, nele se deve conseguir visualizar a “realidade da capacidade instalada e mão-de-obra assistencial de saúde no Brasil”. Ele é, ainda, a base cadastral para a operacionalização de mais de 90 sistemas.
Dessa forma, o CNES deve auxiliar no planejamento em saúde tanto para municípios e estados quanto para o Governo Federal. O impacto da falta de transparência e de atualização pode ser tão grande que, no início da pandemia de Covid-19, no Rio Grande do Norte (RN) e na Paraíba (PB), foi necessário realizar um censo para se entender melhor a realidade das unidades de saúde e os gestores poderem se programar para atender à demanda de leitos.
“É extremamente trabalhoso, porque, infelizmente, os gestores não olham para o CNES como uma ferramenta essencial pro trabalho, mas como parte de uma obrigação que eles acreditam que pode penalizá-los. Acaba que não usam o CNES da forma adequada”, afirma Rodrigo Silva.
A pandemia permite perceber a inconsistência dos dados devido à lógica da alimentação de base de dados sobre Saúde, de forma geral. Como não precisavam ser atualizados constantemente — como tem ocorrido com as informações sobre disponibilidade de leitos e número de casos e de óbitos por Covid-19 —, eles já estavam desatualizados ao serem divulgados. É o caso de dados epidemiológicos que retratam o ano anterior.
“Já existia essa percepção de que os dados estavam defasados. Então, foram fazendo puxadinhos para corrigir isso. Por exemplo, o sistema de notificações da Covid-19. Criaram um módulo para falar, todos os dias, a ocupação e a oferta de leitos. E o que estamos verificando é que a oferta de leitos nesse sistema não é igual ao que tem no CNES, então é difícil saber em qual das fontes do Ministério da Saúde confiar”, afirma Fernanda Campagnucci, diretora executiva da Open Knowledge Brasil (OKBR).
A falta de atualização e de fiscalização dessa medida deixa o próprio gestor público sem informações para se antecipar para solucionar problemas. “Na medida em que o Governo (Federal) não se preocupa com a transparência, ele não se preocupa em garantir que isso seja preenchido e atualizado, e nos falta informação. Inclusive, o próprio Ministério da Saúde, sem informação, vai fazer uma gestão inadequada dos cuidados da saúde”, afirma Manoel Galdino, diretor-executivo da Transparência Brasil.
No contato com a assessoria de comunicação da Secretaria da Saúde de Fortaleza (SMS), foi informado que o CNES está passando por atualizações e os números referentes a "usinas de oxigênio" estão sendo corrigidos. O Ministério da Saúde foi questionado sobre a atualização do sistema e previsão para que ela termine, mas não respondeu até o fechamento desta reportagem.
O POVO também demandou à Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) e ao Conselho das Secretarias Municipais de Saúde do Ceará (Cosems-CE) sobre utilização ou não dos dados do CNES para planejamento durante a pandemia; fiscalização e auditoria do cadastro dos estabelecimentos e incentivos para expansão da infraestrutura de oxigênio hospitalar no Estado. Porém, até o fechamento deste texto, não foram recebidas respostas.
O Data.doc utilizou dados do Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde (CNES), IntegraSus e IDH municipal. Foram analisados dados agregados para todo o Estado: do CNES usamos o indicador de Equipamento, relacionado a Infraestrutura, referentes a Usina de Oxigênio. Do Integrasus extraímos os dados referentes às unidades de saúde que compõem a rede com leitos para Covid-19 e a situação de risco de cada município. E do IDHm baixamos os indicadores referentes ao desenvolvimento humano de cada cidade.
Nossos dados são auditáveis. Como forma garantir a integridade e confiabilidade da nossa análise, disponibilizamos aqui as bases e documentos utilizados na produção deste material.
Saiu a primeira produção do Data.doc, núcleo de dados do @opovoonline, sobre infraestrutura de oxigênio hospitalar no CE e transparência. A reportagem foi feita em parceria com o núcleo de Cotidiano. Segue o fio com bastidores e aqui o link: https://t.co/6wTfpssNJZ
— Thays Lavor (@thayslavor) April 1, 2021