Mais de um século depois, as colunas da Estação João Felipe, desenhadas no estilo neoclássico, resistem ao tempo. O relógio em algarismos romanos instalado no topo do frontão triangular do prédio assiste Fortaleza se transformar ao longo de décadas. A peça agora saiu de cena para aguardar mais uma mudança. Em reformas, o local espera a Estação das Artes, prevista para ser entregue até o primeiro trimestre de 2022.
Inaugurado em 1880, o imóvel está localizado na rua Dr. João Moreira, no Centro da Capital, de frente para a praça Castro Carreira, mais conhecida como Praça da Estação. Batizada primeiro de Estação Central, passou a ser chamada Estação Fortaleza em 1941, por decreto do então presidente Getúlio Vargas.
Apenas em 1946, por outro decreto federal, ganhou o nome de Estação Ferroviária João Felipe — uma homenagem ao engenheiro de Tauá. Aos 80 anos, o memorialista e engenheiro Hamilton Pereira, ex-funcionário da Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA), recorda com detalhes o cotidiano movimentado na João Felipe.
“Toda a sociedade gostava de viajar de trem, era muito confortável, à vontade”, conta. Filho de ferroviário, Hamilton cresceu admirando a beleza dos cenários da janela do trem, nas viagens de mudança entre Cedro, Aurora e Quixeramobim.
A história da Estação, todavia, começa antes, com a chegada da ferrovia no Ceará — marco do desenvolvimento econômico na Capital. A ferrovia cearense nasce impulsionada pelo cenário de exportação de algodão. O lucro da exportação algodoeira permitiu o retorno para um maior investimento na infraestrutura da Cidade.
O historiador Sebastião Ponte, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC), define que o produto colocou o Estado no rol do “mundo capitalista internacional”. Daí a necessidade de agilizar o escoamento do algodão de Fortaleza.
“Até então, a mercadoria vinha em lombos de animais, em carroças, algo muito lento e demorado. E a ferrovia já era realidade na Inglaterra, e no Sudeste do Brasil também”, conta Sebastião.
A Estação que se tornou símbolo de um anunciado progresso econômico na virada do século XIX para o XX foi erguida, principalmente, pelas mãos dos retirantes provenientes da “Seca dos Três Setes", ocorrida entre 1877 e 1879.
Cerca de 100 mil pessoas chegaram a Fortaleza fugidas da seca que atingiu o Estado, mas a maioria morreu acometida pela epidemia de varíola. “Os retirantes que não estavam tão enfraquecidos pela fome ou contaminados pela varíola foram empregados em várias obras públicas”, resgata o professor Sebastião.
Parte das oficinas que compõem a Estação, que estão à direita do prédio principal, foram construídas onde ficava o extinto cemitério São Casimiro, desativado em 1865 por questões sanitárias. Túmulos e ossadas chegaram a ser encontrados durante as escavações para a construção das oficinas.
A localização estratégica aproveitava a estrutura da Estrada de Ferro de Baturité (1873) e tinha proximidade com o antigo porto da Capital, atual Poço da Draga. Acompanhada de outros prédios históricos, como o Passeio Público e antiga Cadeia Pública de Fortaleza (atual Centro de Turismo do Ceará - Emcetur), a Estação constitui um corredor cultural que resguarda parte importante da história da Cidade.
Os trens partiam da João Felipe, em Fortaleza, por duas linhas: Norte e Sul. A Norte passava por Sobral, até Altos e Teresina, no Piauí, enquanto a linha Sul, passava pelo Crato, até Sousa, na Paraíba.
Em 1909, a Estação passou a integrar o sistema de ferrovias da Rede de Viação Cearense (RVC). Já a partir de 1957, a Rede Ferroviária Federal S/A (RFFSA) assumiu a administração da João Felipe.
O engenheiro Hamilton Pereira relembra a evolução dos trens ao longo do tempo, dos vagões feitos de madeira até a substituição pelos metálicos. “O que mais chamava atenção do público era o ‘Sonho Azul’, pintado de azul, tinha muito conforto interno, poltrona reclinável, ar-condicionado, restaurante”, descreve.
Uma edição do O POVO de 1988 registra que, em média, 60 mil passageiros eram atendidos em 68 viagens realizadas diariamente, cobrindo as linhas Norte (Caucaia) e Sul (Maracanaú) à época.
A fachada imponente da Estação Ferroviária João Felipe é dos elementos mais chamativos no Centro de Fortaleza. Projetada pelo austríaco Henrique Foglare, a esplanada de quase um quilômetro de extensão Leste-Oeste é uma verdadeira barreira física entre o Centro e a orla marítima.
Composta por vários edifícios, a estrutura dista uma quadra da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, marco inicial da Cidade, zona densamente ocupada e majoritariamente comercial.
Seu frontão e a colunata denotam o estilo neoclássico. O historiador Sebastião Ponte pontua que as características neoclássicas estavam em voga no ambiente urbanizado e modernizado pela beleza e sofisticação, que remontam às belas construções da Antiguidade Clássica greco-romana. “É aquele estilo com as colunas, os frontões triangulares que lembram muito as edificações gregas antigas”, compara.
Apesar das reformas pelas quais passou no decorrer dos anos, componentes da estrutura original da Estação, especialmente do seu prédio central, como pisos, janelas, paredes e colunas ornamentadas foram preservados.
O arquiteto Romeu Duarte, professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, avalia que o imóvel da estação sempre foi bem mantido por causa do uso.
“É uma manifestação que tem poucos exemplares na Cidade, que se organizou do ponto de vista urbano tardiamente e seus principais exemplares arquitetônicos são ecléticos”, comenta. O pesquisador acrescenta, no entanto, que alguns armazéns que fazem parte do complexo estavam comprometidos por falta de manutenção.
A Estação foi tombada no dia 24 de abril de 1980 no âmbito federal pelo Programa de Preservação do Patrimônio. O tombamento estadual aconteceu no dia 30 de outubro de 1983 pela Lei nº 16.237.
Além disso, a edificação integra, juntamente com os demais imóveis que compõem o complexo ferroviário da João Felipe, a Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário, estabelecida nos termos da Lei nº 11.483, de 31 de maio de 2007.
A inscrição é motivada pelo valor histórico, artístico e cultural do espaço, além do fato de ser oriunda do patrimônio da extinta Rede Ferroviária Federal SA (RFFSA). Atualmente, a João Felipe é administrada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
A Estação foi desativada para embarques e desembarques em janeiro de 2014 para obras da Linha Leste (do Centro ao Edson Queiroz) do metrô. Desde aquela época, a Secretaria da Cultura do Estado (Secult) divulgava o projeto de instalar no prédio um equipamento de cultura e lazer. Tapumes cercam o complexo desde 2019 para a reforma do projeto da Estação das Artes.
“O coração do complexo Estação das Artes”. Esse é o futuro planejado para a Estação João Felipe no projeto de reforma em andamento, com mais de 52% dos serviços de engenharias executados.
Construído em parceria entre o Governo do Ceará e a Prefeitura de Fortaleza, a previsão de inauguração do projeto é até o primeiro trimestre de 2022, segundo a Secretaria de Cultura do Estado (Secult-CE). A programação é que sejam inaugurados de maneira integrada.
A Estação das Artes ocupará uma área de aproximadamente 67 mil metros quadrados (m²), e contará com Mercado Gastronômico, Mercado das Artes, Pinacoteca do Estado, sede do Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico (Iphan) e da Secult, além do Museu Ferroviário e biblioteca. Haverá ainda duas áreas de estacionamento.
O anexo da Secult ganhará um prédio a ser construído. O projeto prevê ainda a ligação com a Escola de Gastronomia e Hotelaria instalada ao lado da Estação. Outra instituição que compõe o projeto é o Centro de Design do Ceará, que conta com ambientes de formação, de negócios, de exposições e de muita criatividade.
A ideia inicial do projeto era centrada na Pinacoteca, mas foi ampliada para o conjunto integral da Estação João Felipe, segundo explica Fabiano Piúba, titular da Secult-CE.
“Não fazia sentido recuperar os galpões para o funcionamento da Pinacoteca e deixarmos ‘abandonados’ os demais elementos arquitetônicos que compõem a base principal da própria estação”, pondera. O complexo da Estação das Artes será parte da rede de equipamentos culturais da Secult quando estiver pronto.
O secretário caracteriza a Estação como um complexo que promove um conjunto de políticas culturais: fomento às artes, promoção do patrimônio cultural e memória, formação artística, economia criativa da cultura e cidadania cultural
Para Fabiano, não há dúvidas dos impactos sociais e econômicos que serão movimentados, “gerando emprego e renda e promoção de cidadania cultural.” Além disso, o projeto está inserido no âmbito do plano Fortaleza 2040, que prevê uma série de intervenções na Cidade a curto, médio e longo prazo.
“A Estação das Artes também é uma promoção de requalificação do Centro da Cidade e do convívio social em seu entorno por meio dessas políticas culturais”, completa.
As edificações destinadas ao novo equipamento cultural estadual foram cedidas pelo Iphan ao Governo do Estado por meio de um termo de cessão provisória de uso gratuito.
Cândido Henrique Bezerra, superintendente do Iphan no Ceará, explica que o estado de preservação e conservação das edificações que constituem o complexo ferroviário era diferenciado.
“De forma geral, o conjunto estava do ponto de vista da preservação bastante íntegro, podendo eventuais intervenções inadequadas serem revertidas por meio do restauro”, descreve.
Segundo Cândido, o Iphan tem cumprido suas obrigações como cedente dos imóveis, analisando, orientando e fiscalizando quaisquer planos ou projetos relativos aos bens, visando a preservação de seus valores histórico-arquitetônicos.
O projeto de restauração foi aprovado pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) Cidades Históricas ainda em 2013. Por falta de repasses do Governo federal, a reforma começou apenas seis anos depois. De agosto até novembro de 2019, foi realizado um estudo preliminar minucioso para prospecção histórica no conjunto de estruturas.
No começo da obra, a verba divulgada para o projeto era de R$ 63,7 milhões por meio do programa Juntos por Fortaleza, mas o orçamento teve acréscimos recentes. O valor subiu em outubro de 2020 para R$ 68,3 milhões, devido a serviços adicionais, e chegando neste mês a R$ 79.489.760,12, conforme consta no portal Ceará Transparente. A data marcada como fim previsto para a obra é 18 de dezembro de 2021.
A supervisão das intervenções está a cargo da Superintendência de Obras Públicas (SOP). As empresas Morais Vasconcelos, Lomacon e Marsou compõem o consórcio responsável pela execução.
Celso Lelis, superintendente adjunto de edificações da SOP, salienta que os restauros em andamento têm buscado “conciliar o novo e o velho”. “Quem passar lá vai ter essa ideia de como era a memória preservada e vai ter acesso também aos equipamentos modernos que vão agregar cultura e gastronomia”, afirma.
De todos os equipamentos previstos para a Estação das Artes, o que mais empolga o engenheiro e memorialista Hamilton Pereira, 80, é o novo Museu Ferroviário. “O museu deve ser o ícone, sem desmerecer os outros”, defende bem-humorado.
Hamilton faz parte da Associação dos Engenheiros da Rede Viação Cearense (AERVC) e foi um dos que contribuíram com a implantação do Museu do Centro de Preservação da História Ferroviária do Ceará, em 1982.
“Estamos aguardando só o projeto, de museologia, do layout, pra gente participar com as nossas ideias da associação para montagem do museu. Pensamos que o museu vai ser a luz de toda a reforma do complexo”, argumenta.
Um dos galpões da João Felipe foi reservado para o espaço que detém um acervo estimado em mil peças, segundo Hamilton. Desde parafusos, telefone, trilhos, relógios, documentos até locomotivas, sendo um exemplar da máquina apelidada de “maria-fumaça” (locomotiva a vapor), e outra mais moderna a diesel elétrico.
“Só para se ter uma ideia de que o museu tem uma riqueza muito grande. Quando for instalado, a gente vai selecionar as peças mais nobres. O acervo é muito rico, centenário”, conta.
Com a extinção da Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA), o museu foi desativado em 1998 e a Associação dos Engenheiros assumiu o acervo, realizando ações culturais, como exposições, publicações de livros e documentários.
Existiram tentativas de instalação do museu em 2004 e em 2015 no Centro de Controle Operacional (CCO) da antiga RFFSA, anexo à Estação Central João Felipe. Porém, houve empecilhos burocráticos e falta de verba.
Assim, as peças do museu estavam sendo expostas na sede da Associação, o Chalé (Casa do Engenheiro Construtor da Ferrovia), situado também no conjunto da Estação João Felipe, até que veio a necessidade de desocupar o local para reforma do projeto da Estação das Artes.
Devido à obra, o acervo precisou ser dividido em duas partes. Conforme Hamilton, os materiais mais pesados estão guardados no bairro Vila das Flores, em Pacatuba, em um espaço cedido pelo Metrofor.
Outra parte está no prédio da Sociedade Beneficente do Pessoal da Rede Viação Cearense, no Centro, a três quarteirões da Praça da Estação e do Chalé (antiga sede do Museu). Lá funciona a sede provisória do museu, que será reaberta ao público. “Quando passar a pandemia [de Covid-19], teremos visitas para consultas. As peças mais nobres estarão lá”, adianta Hamilton.
(Colaborou Miguel Ponte/Data.Doc)