Logo O POVO+
Mundo gamer: A luta das mulheres contra o assédio no ambiente virtual
Reportagem Especial

Mundo gamer: A luta das mulheres contra o assédio no ambiente virtual

Maioria entre os jogadores online, as mulheres continuam sendo alvos de comentários sexistas e de assédios nos espaços virtuais. O POVO reuniu relatos e destaca a força e a luta no combate desse problema reflexo do mundo real

Mundo gamer: A luta das mulheres contra o assédio no ambiente virtual

Maioria entre os jogadores online, as mulheres continuam sendo alvos de comentários sexistas e de assédios nos espaços virtuais. O POVO reuniu relatos e destaca a força e a luta no combate desse problema reflexo do mundo real
Por

 

Entre os diversos gêneros de jogos eletrônicos, a luta está como um de maiores apelos. Para o público feminino, no entanto, a luta vai muito além das histórias e dos personagens virtuais e se torna uma questão de sobrevivência e de demarcação de território. O combate que elas travam não pode ter “game over”, pois diz respeito às suas lutas e conquistas. É a luta contra o assédio e o machismo existente no universo gamer.

Segundo dados da Pesquisa Game Brasil de 2021 (PGB 2021), as mulheres são a maioria dos jogadores digitais, com predominância sobretudo nos smartphones como plataforma favorita. Os números vão de encontro, no entanto, à visão geral construída historicamente sobre o ambiente gamer, antes considerado majoritariamente masculino.

 

Nos últimos anos, as mulheres passaram a protagonizar uma verdadeira reviravolta nesse cenário, tornando-se o maior público a consumir jogos eletrônicos, proporcionalmente ao número de mulheres na sociedade fora das telas.

Junto com isso, o ambiente gamer também passa a refletir comportamentos reprováveis no mundo real e que afetam diretamente as mulheres, como assédio, misoginia e machismo. Tudo isso, infelizmente, ainda é recorrente tanto em plataformas de transmissão de jogos como durante as próprias partidas.

Sabendo ser isso algo comum, meninas passam a criar estratégias para evitar constrangimentos, como esconder seus nomes e batizar suas personagens com “nomes masculinos”, mutar os microfones nas partidas em equipe ou jogar apenas com a presença de pessoas conhecidas.

Ainda assim, elas acreditam na importância da conquista de espaço e de destaque pelas mulheres, nutrindo seu amor pelos jogos e pelas experiências vividas no ambiente virtual.

 

"Quando estou jogando, se erro alguma coisa ou às vezes nem preciso errar, vejo no chat ou escuto falarem: ‘Ah, tinha que ser mulher. Não adianta vir aqui jogar jogo, vai brincar de boneca, vai pra cozinha" Ana Laura, gamer e streamer


Falas como essa se repetem entre as mulheres presentes nos jogos onlines, os quais permitem o contato e a interação com diferentes pessoas, de diferentes locais, por meio de chats escritos e pela conversa por áudio.

Esses espaços, criados pelas plataformas de jogos e de transmissão para que os jogadores possam interagir e ter uma maior imersão na experiência do game, são usados por muitos para destilar comentários preconceituosos, além de diversos tipos de violência verbal e simbólica. Alguns se escondem e se amparam na ideia de impunidade e anonimato no universo digital.


"Eu já chorei por causa disso porque para se acostumar é difícil, sabe? Ser aceita nesse meio gamer como mulher é muito difícil”" Vitória Nobre, gamer e streamer


Essas características presentes nos jogos são um recorte do que é vivenciado na vida fora das telas, como explicam as especialistas Luiza Carolina dos Santos, doutora em Comunicação e Informação, e Beatriz Blanco, pesquisadora de cultura dos jogos. Elas conversaram com O POVO na reportagem “Conservadorismo, misoginia e extremismo na cultura gamer no Brasil”.

Para Luiza Carolina, jogadoras mulheres sofrem violência simbólica, são questionadas sobre suas habilidades e seu conhecimento “verdadeiro” em relação aos jogos, sendo agredidas verbalmente ou a partir de ações no próprio jogo e até pelo seu próprio time.


"Eu jogo há vários anos e raramente encontro mulheres jogando nesses jogos. Eu acho que não é nem questão de quantidade, eu acho que o ambiente é meio tóxico e acredito que muitas delas jogam sozinha, então elas não falam, não escutam nem interagem com ninguém. É como se fosse uma pessoa contra todos..." Lara Carioca, gamer

 

Segundo Beatriz Blanco, a cultura de jogos digitais é historicamente excludente pela forma com que a publicidade se posicionou durante os anos mais importantes da formação desse público. Ela pontua ainda que o Brasil é um país bastante machista, onde mulheres que estão expostas publicamente passam a sofrer ataques com maior frequência.

“Quando estou jogando, se erro alguma coisa ou às vezes nem preciso errar, vejo no chat ou escuto falarem: ‘Ah, tinha que ser mulher. Não adianta vir aqui jogar jogo, vai brincar de boneca, vai pra cozinha” Ana Laura, gamer e streamer.

A vivência do machismo e o enfrentamento dele é uma realidade diária para a maioria das mulheres. A existência desse tipo de comportamento atinge pessoas com histórias de vida bem distintas, mas que, pelo fato de serem o alvo, como é o caso das mulheres, suas experiências se cruzam e se assemelham em muitos aspectos.


"É super comum, muitos querem pagar de machão. Nós, mulheres, estamos sujeitas a esse tipo de situação 24h por dia, porque em qualquer canto que a gente vá, vai ter um cara machista que vai te olhar torto, então você tem que ficar preparada para situações assim..." Laura Gois, gamer e streamer


As meninas sofrem no mundo digital gamer aquilo que já vivenciavam fora desses espaços, o que as levam a reagir de diferentes maneiras, seja denunciando nas plataformas, seja batendo de frente e buscando a conquista do seu espaço.

O POVO conversou com quatro jogadoras mulheres. Personalidades, sobrenomes carreiras diferentes. O que as une são seus interesses pelo mundo gamer, bem como a luta para demarcar posição, ao passo em que pedem respeito.

Elas tiveram contato com os jogos desde cedo, ainda quando crianças, a partir da convivência ou influência de familiares, como irmãos e primos, que possuíam videogames e frequentemente jogavam.

 

Para elas, o jogo significa a possibilidade de desestressar das atribuições do dia a dia. Jogar é sinônimo de diversão e encontro virtual com amigos, sejam os que vivem próximo, mas já não veem há um tempo devido a pandemia de Covid-19, sejam os conhecidos apenas a partir do ambiente virtual.

 

 

Assédios…


Mas, e quando esse hobby vem acompanhado de assédios, comentários machistas e preconceitos em geral destilados nos chats e microfones entre uma partida e outra?

Apesar de serem maioria entre o público gamer, são os meninos que dominam os espaços muito massivos, como os jogos pelos consoles (61,9%) e pelo computador (59,6%), de acordo com a PGB 2021.

Essa diferença é, na prática, percebida pelas meninas entrevistadas. Todas elas jogam pelo computador e afirmam notar que os espaços das plataformas dos jogos são ainda muito masculinos, o que as fazem se sentir, em muitos dos casos, hesitantes em jogar ou não serem acolhidas.

Ana Laura, Lara, Vitória e Laura compartilharam depoimentos sobre suas experiências nos diferentes jogos que exploram e seus pensamentos acerca desses comportamentos.

 


 

Gamers, streamers e plataformas no combate ao assédio

 

Para a construção de uma comunidade forte, é preciso união em busca de objetivos em comum. No caso dos jogos virtuais, plataformas e usuários ganham como aliados importantes os próprios streamers (jogadores que transmitem ao vivo suas partidas).

Os streamers são aqueles jogadores que realizam a transmissão de conteúdos em plataformas como Facebook Gaming, YouTube, Mixer e Twitch TV. Nesta última, os gamers têm responsabilidades pelos seus seguidores, precisando monitorar, orientar e inibir eventuais condutas reprováveis.

Plataforma xodó do público de jogos virtuais, a Twitch TV tem investido severamente em políticas de combate ao assédio entre seus usuários. Contando com mais de 30 milhões de visitas diariamente, o serviço lista uma série de posturas que podem levar ao banimento de algum eventual usuário assediador.

Diretrizes da comunidade da Twitch TV sobre assédio sexual(Foto: Twitch TV / Reprodução)
Foto: Twitch TV / Reprodução Diretrizes da comunidade da Twitch TV sobre assédio sexual

Em suas “Diretrizes da comunidade”, são listadas no tópico “Conduta de ódio e assédio” comportamentos que podem fazer com que “usuários se sintam desconfortáveis e inseguros”, além de desestimulados a participar de comunidades online.


 

“Há pessoas que se aproveitam da inocência das meninas”

 

Gamer de Fortaleza que arrasta milhares de seguidores na Twitch TV(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Gamer de Fortaleza que arrasta milhares de seguidores na Twitch TV

Assumir o papel enquanto uma mulher que joga e transmite suas partidas em um ambiente desconhecido não é nada fácil. E não foi para Bia Gomez, fortalezense de 18 anos que começou a fazer lives em novembro de 2019. De lá para cá, mesmo com um notebook “bem velinho” e pouco potente, ela conseguiu aos poucos conquistar seu espaço, ajudar a própria família e as pessoas ao seu redor.

Mas quem dera que fossem os equipamentos seus únicos empecilhos. “No começo foi bem difícil. Há pessoas que se aproveitam da inocência de meninas que estão começando a streamar e oferecem uma falsa ajuda, mas que apresentam segundas intenções”, diz ela.

Dona de um canal na Twitch TV com mais de 23 mil seguidores, a gamer alerta para o cuidado “na hora de trocar mensagens” com desconhecidos. “E estar atenta a qualquer possível indício de assédio”, complementa, informando sobre a responsabilidade dos produtores de conteúdo na construção de um “ambiente saudável e livre de preconceitos”.

 

"Aos poucos as mulheres estão conseguindo conquistar seu espaço no mundo gamer, entretanto, condutas como ódio e assédio ainda persistem e acabam desestimulando a participação nas comunidades ou em jogos online. É importante denunciar e reportar qualquer tipo de conduta que ainda permanece nesse meio, na esperança que progressivamente estaremos cada vez mais longe de qualquer tipo de intolerância, não só nos meios digitais, mas também no cotidiano" Bia Gomez, fortalezense de 18 anos e streamer na Twitch TV

 


O que você achou desse conteúdo?