É durante a primeira infância, período que vai desde o nascimento até os 6 anos, que as crianças desenvolvem estruturas e circuitos cerebrais, além de adquirirem capacidades que contribuirão para o desenvolvimento de habilidades futuras mais complexas, incluindo a fala. Crianças começam a balbuciar por volta dos 6 meses, mas o processo de aquisição da linguagem tem início antes mesmo da primeira manifestação verbal. E, ainda que falem, as crianças, em sua maioria, não conseguem pronunciar as palavras de forma perfeita.
Mas, e o caso de Alice? A menina de 2 anos viralizou na internet após a sua mãe, Morgana Secco, compartilhar nas redes sociais vídeos em que a filha aparece falando palavras consideradas 'difíceis', como "oftalmologista", "Tiranossauro Rex", "proparoxítona" e "propositalmente". Morgana contou que o processo de aquisição da linguagem da filha começou por volta dos 8 meses. A partir de 1 ano, ela passou a tentar repetir todas as palavras que ouvia em casa e a falar frases com diversas palavras, segundo a mãe.
Qual o segredo de Alice? Os pais contaram que costumam explicar para Alice os motivos por trás de pedidos ou atividades do dia a dia, e Alice tem pouco acesso à TV. Em um dos vídeos, a mãe pergunta a ela por que se deve comer brócolis. "Pro corpo ficar forte. Faz muito bem pra saúde", responde Alice, enquanto come o vegetal. Essas explicações, segundo Morgana, ajudam a filha a decidir sobre fazer ou não algo, como na ocasião do vídeo. Ela não queria mais comer brócolis, mas depois de ouvir a explicação sobre a importância do alimento para a saúde, decidiu retomar as garfadas.
O desenvolvimento da linguagem oral passa por diversas fases, mas é diferente para cada criança. No entanto, segundo especialistas, as interações sociais contribuem para esse processo. Falar ficou entre os sinais mais importantes do bom desenvolvimento das crianças de até 1 ano para 31% do grupo de 203 mães biológicas que responderam a uma pesquisa, realizada em 2013 pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV), que tinha o objetivo de entender como a população brasileira vê o desenvolvimento integrado da criança pequena.
De acordo com a doutora em Educação e professora do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal do Ceará (UFC), Ana Célia Moura, quando a criança começa a construir pequenas frases, ora com verbos, ora sem verbos, ela vai estruturando pouco a pouco suas sentenças, até que alcance períodos mais complexos. Atingir esse estágio significa que ela internalizou a criatividade essencial da linguagem, e a partir disso, multiplicam-se as construções infantis.
Para que a criança desenvolva a linguagem, é indispensável que os pais conversem com elas. Isso porque, segundo a professora Ana Célia Moura, em geral, as primeiras manifestações de linguagem da criança acontecem quando ela está com os pais. “É importante que os pais permitam ser a linguagem verbal a principal intermediadora entre eles. Assim, a criança vai desenvolver com propriedade a linguagem e, também, aspectos cognitivos gerais”, afirma.
Ela ressalta que é importante que o adulto estimule a criança a dizer o que quer. A professora explica que por meio desse estímulo da manifestação oral, as crianças vão gradativamente nomeando objetos, construindo frases e desenvolvendo-se linguisticamente.
“Algumas vezes, a criança só aponta para a geladeira, e o adulto já lhe oferece água. Às vezes, se dirige para um brinquedo, e o adulto já espalha todos os brinquedos, sem esperar que ela se manifeste linguisticamente sobre seus desejos e sobre os objetos buscados”, exemplifica Ana Célia.
Conversar, cantar e ler para a criança pequena são algumas formas de interação que estimulam a linguagem, têm efeito sobre o aprendizado dos sons e da pronúncia, além da aquisição de vocabulário. Mesmo que a criança não compreenda o significado das palavras, ela gradativamente construirá associações e significados para a comunicação oral.
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A psicóloga e líder de portfólio da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV), Elisa Altafim, ressalta a importância dessas interações para o fortalecimento do desenvolvimento da linguagem da criança. “Mostrar e nomear objetos e imagens, contar histórias, tudo isso fortalece o desenvolvimento infantil. Mesmo que a criança pequena não compreenda no início, ela vai aprendendo também com os gestos. Essas ações estimulam a linguagem”, afirma a doutora em Saúde Mental.
Elisa afirma que quanto mais palavras os pais utilizam, mais forte a linguagem da criança. Olhar no olho, responder aos gestos das crianças, falar as palavras corretamente para que a criança compreenda os sons, fazer perguntas e esperar a criança responder são algumas estratégias que favorecem o processo de aquisição da fala, de acordo com ela.
Ainda durante a rotina, os cuidadores podem contribuir para esse desenvolvimento por meio de atividades comuns. Criar histórias junto com a criança, utilizando objetos de uso da família, fortalecendo a imaginação, e, durante o preparo de refeições, aproveitar para fortalecer o vínculo com a criança e conversar. A mãe pode explicar o que está preparando, por exemplo, sugere a psicóloga.
Os cuidadores não têm que "escolher'' palavras para usar enquanto a criança está na fase de aprendizagem da linguagem oral, explica a professora Ana Célia. “Isso não significa usar indiscriminadamente qualquer palavra, mas usar as mais adequadas ao contexto, explicando à criança sempre que ela fizer perguntas. Essa é uma forma de respeitar a criança, de não lhe sonegar o direito de descobrir palavras e estruturas, as mais diversas, da sua língua materna”, disse.
Na rotina de Clarice, filha da confeiteira Ana Cláudia, há bastante estímulo dos pais para que a criança tente sempre expressar o que quer de forma verbal. Segundo a mãe da menina de 2 anos e 6 meses, a comunicação com a criança é bem simples. "Quando ela aponta para alguma coisa que quer, nós falamos o nome para que ela repita e assim vá aprendendo a falar. No começo é um pouco difícil, mas vamos adaptando", afirma Cláudia.
Cantar, ensinar números, cores, vogais e, mais recentemente, ler livros tem sido parte dos incentivos que a menina recebe todos os dias. "A gente vai estimulando ela dessa forma, mostrando novos objetos, livros, filmes, desenhos, conversando com ela, com uma linguagem fácil para que ela entenda", disse.
A mãe de Noah, de 2 anos, Andreza Macedo, é outra que utiliza diversos meios para estimular a comunicação verbal com a criança. Ela toca violão e gosta de ensinar coisas novas para o menino por meio de canções. Além disso, costuma ler histórias para seu filho e, segundo a dona de casa, é um momento muito divertido porque ele costuma imitar as expressões, finge ler os livros, mesmo não sabendo ainda.
Andreza conta que o filho está sempre por perto durante a rotina dela, por isso tenta fazer com que ele participe de suas atividades, mesmo que ele ainda não tenha habilidades suficientes para desenvolvê-las. Ela afirma também que está sempre conversando, perguntando coisas e explicando outras. Grávida do segundo filho, ela também passou a explicar para Noah que dentro da sua barriga está o irmãozinho, Ravi.
Noah, assim como a pequena Alice, dos vídeos, não costuma assistir à televisão com frequência, tampouco utiliza celular, segundo a mãe. Nos fins de semana e junto com o pai, Tatiel Macedo, é que o menino assiste a um programa sobre caminhões, coisa que ele adora.
De acordo com Andreza, outro meio de ensinar palavras para o filho é mostrando objetos. Ela conta que comprou brinquedos para explicar a diferença entre ônibus e caminhão, e aos poucos o menino aprendeu a diferenciar e nomear o “bus” do “minhão”, como ele fala.
Pesquisa da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV) realizada em março deste ano, que buscou entender e mapear as relações de pais e responsáveis com as crianças de 0 a 3 anos em todo o Brasil durante a pandemia de Covid-19, mostrou que uma em cada quatro crianças (27%), de todas as classes, apresentou regressão no comportamento nesse período. Além disso, aumento do uso de equipamentos eletrônicos pode ter impactado no desenvolvimento das crianças na primeira infância.
Bárbara Brasileiro, mãe de Jorge, de 3 anos, sentiu o efeito do isolamento social no desenvolvimento do seu filho, principalmente da linguagem. Ela relata que o filho já consegue pronunciar várias palavras, mas a dicção ainda dificulta a compreensão. Isso fez com que Bárbara passasse a buscar informações sobre o assunto. Segundo ela, os marcos de desenvolvimento do filho estão todos normais e, por isso, a pediatra do menino afirmou que a linguagem deve melhorar a partir do convívio escolar.
Devido à pandemia, Jorge iniciou a vida escolar de forma virtual. A mãe conta que foi difícil para ele ficar por muito tempo na frente do computador, pois o menino se sente incomodado por não poder interagir com os colegas e professores. Bárbara afirma que mesmo que o filho não saiba expressar verbalmente o impacto da falta desse convívio social, ela percebeu isso em seu comportamento.
Apesar de saber o quanto faz falta o contato presencial com outras crianças, ela ainda não se sente segura para enviar o filho para a escola, mas afirma que será a primeira medida a ser tomada para tentar minimamente normalizar a vida dele.
A escola é um ambiente estimulador, não só para o desenvolvimento da linguagem, mas também para o emocional, social, cognitivo, motor. Por causa do isolamento, as crianças tiveram que ficar mais tempo em casa sem contato com outras pessoas, e isso afetou diretamente o acesso delas a esses estímulos, ressalta a psicóloga Elisa Altafim.
Até os 2 anos, não é recomendado que crianças fiquem expostas a telas, ressalta a psicóloga, e o mais importante nessa fase é o contato com a família. Ela recomenda aos pais, dentro do contexto familiar, buscarem alternativas para mostrar uma diversidade de objetos, palavras e brincadeiras para envolver as crianças em atividades interativas.
A professora Ana Célia Moura lembra que a interação com desenhos, filmes, jogos no computador ou no celular pode ser benéfica e contribuir enormemente para o desenvolvimento infantil. “Entretanto, torna-se prejudicial se a criança apenas for colocada na frente de telas sem nenhum outro incentivo, especialmente, sem a interação com o adulto, sem a troca de ideias, sem diálogo”, frisa.
Se o desenvolvimento da linguagem da criança está intimamente atrelado às interações com os adultos, o isolamento social também pode ser transformado em oportunidade. Oportunidade, segundo Ana Célia, para pais e irmãos mais velhos se dedicarem um pouco mais àquelas crianças pequenas que estavam no seu convívio cotidiano.