Mais de 21 milhões de pessoas já se recuperaram da Covid-19 no Brasil. No Ceará, essa estimativa chega a 880 mil. Em quase dois anos de pandemia, não é novidade que, mesmo após o susto da infecção, muitos apresentam relatos de efeitos colaterais após a cura da doença. É o que pesquisadores têm chamado de síndrome pós-Covid-19.
Segundo estudo publicado em agosto do ano passado pela revista científica Nature, estima-se que entre 50% e 80% das pessoas ainda apresentam sintomas persistentes três ou mais meses após o início da infecção. Contudo, em casos de pessoas em situação mais grave ou que tiveram complicações decorrentes da doença, a recuperação total requer ainda mais persistência, além de acompanhamento profissional.
Como tratamento, tanto a fisioterapia como a terapia ocupacional ajudam a restaurar a funcionalidade do indivíduo, melhorando a qualidade de vida e auxiliando o paciente a retornar para o convívio em sociedade.
A fisio é fundamental para os pacientes que apresentam debilidades respiratórias e neuromotoras, como perda de massa e força muscular. Também é importante para restaurar a expansão pulmonar e o condicionamento cardiorrespiratório, bem como auxiliar no processo de equilíbrio e coordenação.
Já a terapia ocupacional é aconselhada para os pacientes que apresentam transtornos mentais como ansiedade, depressão e estresse pós-traumático. É também indicada em casos de debilidades neuromusculares que interfiraam em atividades da vida cotidiana.
Segundo Ana Karine, gerente de fisioterapia do Hospital São José, em Fortaleza, e conselheira do Conselho Regional de Fisioterapia e Terapia Ocupacional da 6ª Região (Crefito 6), não é possível precisar o tempo em que um paciente ficará no processo de reabilitação. “Isso depende principalmente do grau das sequelas apresentadas, bem como das respostas ao tratamento. Por isso, se faz necessária uma avaliação minuciosa para definir o plano de tratamento e a sua frequência”, explica a fisioterapeuta.
No caso do servidor público Rodrigo Gomes de Oliveira Neto, de 61 anos, mesmo após dez meses desde que recebeu o diagnóstico da Covid-19, em fevereiro de 2021, os tratamentos para melhorar a saúde pulmonar ainda continuam. Os primeiros indícios da doença surgiram como febre, fraqueza muscular e perda de olfato e paladar. Ele conta que, em poucos dias, após realizar uma radiografia, foi constatado que seu pulmão já estava 50% comprometido.
Após uma avaliação, a fisioterapeuta Ana Karine sugeriu internação a Rodrigo, algo recomendado pelos médicos. Assim, em 15 de fevereiro de 2021, ele foi acolhido pelo Hospital São José. Ele conta que, apesar de não ter sido entubado, seu quadro clínico foi considerado grave.
Durante o período em que ficou internado fez, inclusive, uso de um concentrador de oxigênio, máquina que fornece oxigênio complementar para que a saturação permaneça acima de 90%, o que é ideal para a saúde. “Eu acho que foi um milagre. Pensei que eu não iria voltar para casa, que iria ser entubado”, refletiu.
Com o tempo, Rodrigo foi apresentando melhora e, no dia 24 de fevereiro, bem a tempo de comemorar seu aniversário de 61 anos, recebeu alta do Hospital São José. Em casa, no entanto, uma nova jornada se iniciou: os cuidados pós-Covid. Além de estar com dez quilos a menos, por conta da fraqueza muscular, desempenhar tarefas simples do dia a dia se tornaram atividades complexas. “Não conseguia andar em linha reta. Passei mais de dois meses com dor no pescoço e dor nas costas. Isso dificultava até para dirigir, se eu precisasse olhar para a esquerda ou direita, eu tinha que virar o corpo todinho”.
“Se eu levantasse o braço dava um cansaço, como se eu tivesse corrido dez minutos. Tinha que me sentar para voltar a respiração normal e me sentir melhor”, continua. Com a volta para a rotina de trabalho, o servidor público também percebeu efeitos colaterais neurológicos. “Eu não conseguia passar duas horas no home office. Me dava uma fraqueza, uma tontura, eu tinha que me deitar. Era como se eu precisasse de uma hora para recarregar as baterias para trabalhar. Isso se prolongou por quatro meses”, explica.
Segundo Rodrigo, profissionais do próprio hospital relataram que os sintomas eram comuns entre os pacientes. Felizmente, em cerca de quatro meses as dores e os principais sintomas sumiram. Segundo ele, a fisioterapia foi fundamental em todo o processo. Os tratamentos, porém, ainda não pararam.
O analista judiciário conta que realiza com frequência exercícios que estimulam a recuperação dos pulmões em uma ferramenta chamada Respiron, indicação da fisioterapeuta. “Dez meses depois, ainda não sinto aquele vigor, aqui e acolá ainda sinto uma fraqueza. Eu não me sinto totalmente recuperado, mas eu já me sinto 80% do que eu era antes”.
Um estudo preliminar realizado por pesquisadores norte-americanos resultou em uma lista com as 50 queixas mais frequentes das pessoas que contraíram a Covid-19 e apresentaram efeitos colaterais no pós-doença. A pesquisa preliminar foi divulgada em janeiro de 2021 no Medrxiv, site que distribui versões pré-publicação de artigos científicos sobre ciências da saúde. Confira os principais sintomas reportados:
Gerente de fisioterapia do Hospital São José, Ana Karine acredita que todas as sequelas da Covid-19 podem ser reversíveis. “Se forem bem acompanhadas por uma equipe multiprofissional, como fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, nutricionista, dentre outras, até que o paciente esteja apto a realizar todas as suas atividades cotidianas, não haverá sequelas para o mesmo. O que acontece é que muita gente não faz a reabilitação ou não conclui o tratamento”, explica.
Foi justo o que Antônia Alice evitou. A angústia de receber o diagnóstico da doença, aos 81 anos e com problemas cardíacos e de pressão alta, não a desmotivou nem por um segundo. Em maio deste ano, quando respirar se tornou cada vez mais difícil, ela procurou atendimento em um hospital em Mombaça, a 300km de Fortaleza, município onde mora.
O estado, porém, seguiu em piora. Por conta da idade e pela falta de estrutura nas unidades de saúde no município, ela foi transferida para o Hospital Leonardo Da Vinci (HLDV), em Fortaleza. No dia seguinte à sua chegada, Dona Alice foi entubada.
“Nós nunca perdemos a fé. Todo dia o hospital ligava para gente para dar notícias. Era um momento de muita angústia. Mas todos os dias vinham notícias boas, que ela estava melhorando”, conta Teresa Cristina, uma de suas filhas. Foram 14 dias seguidos na entubação. Após retirarem os aparelhos, ela levou cinco dias para despertar. Ao todo, foram 45 dias no Leonardo Da Vinci, sendo 35 dias na UTI. “Devido à idade dela, 81 anos, nós tínhamos muito medo. Quando nós fomos buscá-la tinha médico até chorando de alegria", conta, emocionada, Antônia Lucinete, outra de suas filhas.
Em casa, os efeitos colaterais do longo período de internação foram perceptíveis. A princípio, Dona Alice não conseguia andar e apresentava sinais de confusão mental. A idosa ainda relata que perdeu todas as memórias de quando estava no hospital, apesar de ter se comunicado normalmente com os médicos e enfermeiros.
Ela então começou tratamento intenso. “Nos primeiros dias a fisioterapia era mais deitada. Ele (o fisioterapeuta) me levantava, mandava ficar em pé, aí mandava dar aqui e acolá uma passada. Mas eu logo dizia 'já chega, eu tô cansada. Fazia nas pernas e nos pés (os exercícios). Todo dia ele fazia um exercício diferente”, conta a idosa.
Com 20 dias de tratamento, Alice já estava andando. “Ela é uma pessoa que tem muita força de vontade. No dia que não tinha fisioterapia e o rapaz não vinha, ela ficava só pedindo para ele vir. A força de vontade era tão grande, que ela se recuperou muito rápido”, diz Teresa.
"Quando eu vim daí (Fortaleza), eu pensava que nunca mais ia andar, nunca mais sair da cama", conta Dona Alice. Atualmente, suas funções pulmonares estão normalizadas, apesar de ainda sofrer com dores no corpo. "Ela anda direitinho, até fazer o almoço ela já tá fazendo. Ela quer fazer as coisas, mas a gente é que tenta evitar dela fazer. Ela disse que vai até fazer um almoço para as enfermeiras do hospital (risos)”, conta Antônia Lucinete.
O comerciante jaguaribano Ronaldo César, de 36 anos, também se emociona ao narrar sua história de superação. Em maio de 2021, após apresentar sintomas da doença por alguns dias, ele resolveu realizar uma tomografia e descobriu que seu pulmão já estava 75% comprometido. Ele foi internado em um hospital da cidade mas, por agravamento da doença, também foi transferido para o HLDV.
"Passei uma semana e meia consciente, acordado. Tentaram usar o capacete Elmo em mim, duas vezes, mas eu estava nervoso e acabou não dando certo. Eu estava muito cansado, dormi e só acordei cerca de dois meses depois", conta emocionado. Receber a notícia de que passou tanto tempo inconsciente foi difícil para Ronaldo. "Eu perdi muito peso. Eu pesava 80kg, quando eu acordei eu estava com 53 kg. Foi uma sensação difícil de explicar, mas uma sensação boa. Foi bom porque o primeiro sinal que eu tive foi que eu fui bem cuidado e que eu podia voltar e continuar com a minha vida. Mas eu fiquei sem acreditar que eu fiquei tanto tempo apagado”, relata.
Ao receber alta, ele conseguiu uma vaga na Casa de Cuidados Recanto Uirapuru, que auxilia na recuperação completa de pacientes que venceram a Covid-19. “Hoje eu tô me recuperando, mas ainda tenho sequelas. A Covid-19 me afetou em vários pontos, meu pulmão já estava comprometido 75% e acabou murchando, tiveram que fazer drenagem. Meus rins também pararam, porque passei muito tempo sem tomar água”, explica.
“Fiquei também com alteração no coração, por ter tomado muita adrenalina. Meu coração não chegou a parar, mas os batimentos caíram muito, ele bombeava pouco e o sangue não circulava direito”, explica. O comerciante conta ainda que perdeu 90% da audição esquerda. Por ter tido o equilíbrio do corpo prejudicado, ele também não conseguia andar.
Durante todo o processo, Ronaldo foi acompanhado por nutricionista, psicólogo, fisioterapeuta e fonoaudiólogo. Já em casa, o comerciante continua com os exercícios respiratórios e físicos. De segunda a quinta-feira, profissionais da saúde da Prefeitura de Jaguaribe o visitam para dar continuidade ao seu tratamento. Ele conta que também irá ser acompanhado por um neurologista e um otorrinolaringologista.
Ronaldo já se diz contente com os resultados que conseguiu até aqui. A cada passo que dá, ele sabe que está mais perto de uma recuperação completa. “Hoje eu agradeço aos profissionais que cuidaram de mim. Os médicos se admiraram porque eu me recupero muito rápido. Até hoje eles conversam comigo, para saber se estou me recuperando e para eu não parar de ver os médicos”, conta.
Com a frequência de casos da síndrome pós-Covid-19 e a variedade de sintomas apresentados, pesquisadores do mundo todo vêm realizando análises sobre os impactos do vírus ao longo prazo. No Brasil, alguns estudos envolvendo as áreas da neurologia, urologia e obstetrícia já apresentam resultados. Segundo os especialistas, mesmo os pacientes que obtiveram a forma leve da Covid-19 devem estar atentos aos reflexos da doença no organismo.
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Uma investigação conduzida por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade de São Paulo (USP) revelou que o vírus da Covid-19 é capaz de infectar células do tecido cerebral. Os resultados revelaram alterações significativas na estrutura do córtex, uma região rica em neurônios e responsável por funções como memória, atenção, consciência e linguagem.
O estudo foi realizado em duas etapas: através de um questionário on-line, que reuniu mais de 10 mil respostas, e com a avaliação presencial de mais de 500 pessoas, a maioria pacientes que não passaram por internação hospitalar. Segundo Clarissa Yasuda, integrante do Instituto de Pesquisa sobre Neurociências e Neurotecnologia (Brainn) e uma das responsáveis pela investigação, na prática, os efeitos da síndrome no cérebro podem tornar complexas até mesmo tarefas simples do cotidiano.
“A gente percebe que tem muita alteração do sono, sonolência diurna, muita dor de cabeça. Depois de dois ou três meses começam a ter alteração na cognição: atenção, memória e linguagem. Isso tem assustado bastante e deixado as pessoas desesperadas”, relata a especialista em neurologia. A pesquisadora da Unicamp também revela um aumento nos casos de ansiedade e depressão. “Alguns pacientes que já tinham alterações psiquiátricas voltaram a piorar e quem já estava com quadro estável teve surtos novos. Também há casos de quem nunca teve e começou a ter sintomas psiquiátricos”, explica Clarissa Yasuda.
"Essas alterações são permanentes? Não temos como provar, porque é muito cedo. Mas o que a gente vê é que, mesmo depois de um ano, tem muita gente que tem sintomas persistentes", esclarece. Apesar de todas as incertezas quanto aos impactos do vírus, a especialista aconselha a procura de um médico especialista em qualquer sinal de sintoma remanescente, ao invés de esperar por uma cura espontânea.
O coronavírus também pode afetar a placenta de gestantes e, por consequência, a saúde dos fetos. É o que aponta pesquisa desenvolvida no Hospital de Clínicas e no Hospital Nossa Senhora das Graças, em Curitiba (PR). Dentre os reflexos apresentados, estão o nascimento prematuro e até mesmo a morte intrauterina do bebê.
Apesar do estudo ainda estar em andamento, a pesquisadora e chefe da Unidade de Infectologia do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Sonia Raboni, chama a atenção para a possibilidade da transmissão vertical da Covid-19, quando o vírus é passado da mãe para a criança.
Ela conta a experiência com uma das pacientes analisadas. “Em um dos primeiros casos que confirmou a transmissão vertical da Covid, uma paciente gestante entrou infectada na UTI. Ela teve piora e houve morte fetal. Foi coletado material de placenta, líquido amniótico e sangue de cordão umbilical. Nessa paciente foi detectado presença de vírus na placenta e no cordão umbilical”, explica Sonia Raboni.
Segundo a pesquisadora, isso pode ocorrer por conta de uma alteração placentária, pois a placenta funciona como um filtro protetor. “A Covid é uma doença trombogênica e essa placenta tinha sinais de trombose. Essa trombose provavelmente alterou a capacidade de filtragem, a proteção do bebê, e houve a passagem do vírus via cordão umbilical”, esclarece. O estudo desenvolvido também indica que há a possibilidade das crianças nascerem com baixo peso ou com retardo de crescimento.
Sonia Raboni destaca que comorbidades também são fatores de risco. “A gestação por si só deixa a mulher predisposta a certas doenças. A gente tem que lembrar que existem muitas gestantes com fatores de risco, como diabetes, hipertensão, ou que já tem alguma doença cardiovascular ou pulmonar. Isso acaba somando fatores de risco e são essas as gestantes que têm um risco maior de evolução a óbito”.
Segundo ela, a internação de gestantes que têm histórico de vacinação completa são bastante infrequentes. A médica esclarece que a maioria das que desenvolvem a forma grave da doença são as que não se vacinaram, que desenvolveram a doença entre a primeira e a segunda dose da vacina ou que desenvolveram muito próxima da D2, já que ainda não houve tempo de resposta para uma proteção completa.
Em outro estudo, desenvolvido no Hospital das Clínicas da FM-USP e no Instituto Androscience de Ciência e Inovação em Andrologia, revela que pacientes homens que tiveram Covid-19 apresentaram baixas taxas hormonais e de fertilidade, mesmo meses após se recuperarem da doença. Segundo os pesquisadores, o SARS-CoV-2 pode invadir todos os tipos de células testiculares, causando lesões.
O estudo foi feito em pacientes que faleceram de Covid-19. Os resultados mostraram lesões testiculares graves tanto nas células que produzem espermatozóides, como nas que produzem testosterona. “O que faz o pênis ficar ereto são os testículos, sem hormônios não tem possibilidade de ereção”, explica Jorge Hallak, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) e coordenador do Grupo de Estudos em Saúde do Homem do Instituto de Estudos Avançados (IEA-USP).
Pacientes internados sem nenhum sintoma também foram analisados pelos pesquisadores. "Nós vimos que havia um acometimento do epidídimo, que é uma estrutura que fica acima dos testículos. Em mais ou menos metade dos pacientes tinha uma inflamação gigante”, relata Jorge Hallak.
Segundo o andrologista, depois do pulmão, os testículos são os órgãos mais afetados pela Covid. Os casos foram relatados em todas as faixas etárias, mesmo pacientes bem jovens. Dentre os sintomas do baixo nível de testosterona, estão o aumento do cansaço, aumento da insônia, indisposição, irritabilidade, disfunção erétil e a queda na libido. "Isso é muito confundido com questões ligadas ao cérebro. Como os testículos não apresentam dor, os pacientes não buscam um médico específico para isso", aponta o pesquisador da USP.
O professor Hallak alerta, no entanto, para os cuidados referentes ao tratamento. Segundo ele, não é aconselhado que pacientes façam reposição hormonal com testosterona. “Os testículos já estão abalados pela própria Covid, se repor a testosterona você vai inibir mais ainda a função testicular. O corpo vai ler 'já que tá bom, não vou produzir'. Então além de você ter parado a fábrica, você ainda vai enferrujar o maquinário.” Para o médico, o indicado é esperar de três a seis meses com outras medidas paliativas.
A reprodução assistida, como a inseminação artificial e a fertilização in vitro, também devem ser evitadas nos primeiros seis a nove meses após a cura do coronavírus. “Nós temos indícios que exista a invasão intracelular do vírus em todas as células do sistema reprodutivo”, explica Hallak. Segundo o pesquisador, é esperada uma alta incidência de infertilidade masculina.