Desde 1969 que o mês de junho é, mundialmente, o mês do Orgulho LGBT, e o motivo não poderia ser outro: o 28 de junho foi um dia de resistência e de clamor por direitos por uma segmento que até então mais tinha deveres a cumprir. Poderia ser um dia como todos os outros, se um grupo de lésbicas, travestis e gays não tivesse reagido à truculência e se recusado a ir embora de um bar chamado The Stonewall Inn, alvo de frequentes batidas policiais só porque seus frequentadores não eram majoritariamente heterossexuais.
Passados 53 anos desse fato que aconteceu em Nova York, nos Estados Unidos, os dias de luta de bilhões de pessoas no mundo inteiro se repetem. Para elas, todos os dias são quase um Stonewall, na medida em que precisam enfrentar não mais os cassetetes dos policiais e sim, a violência cotidiana na hora de procurar auxílio médico ou frequentar uma escola.
No entanto, a exemplo de Stonewall, houve de se tirar glória de todo essa peleja. E alguns casos são mostrados aqui — essas pessoas trabalham para tornar o mundo um lugar melhor — sem discriminação por causa de como um ser humano simplesmente é.
Alana Oliveira tem 29 anos e até bem pouco tempo trabalhava em Goiânia. Sempre teve medo de trabalhar em ambientes corporativos por ser uma pessoa não-binária (nem masculina nem feminina) e não se vestir seguindo o código de vestimenta da maioria das mulheres da área, que geralmente envolve saia, salto e maquiagem.
Veio para Fortaleza depois de participar de um processo seletivo para uma vaga na matriz do Hapvida, operadora de planos de saúde onde já trabalhava em Goiás. A mudança de DDD, no entanto, não foi nem um pouco trabalhosa. “Me receberam muito bem. Sempre pude me expressar naturalmente e me sentir à vontade no ambiente de trabalho. Minha diretora em Goiânia era lésbica, ou seja, tinha uma orientação igual a minha, e isso para mim foi inspirador, já que me fazia falar comigo mesma: ‘é possivel chegar onde ela chegou’”, lembra.
Em Fortaleza, Alana continua sob orientação de um superior homossexual, o que a auxilia na adaptação, posto que as dificuldades superadas por ambos são similares. “Não tenho mais problemas na hora de usar banheiros, por exemplo, já que fui discriminada em outros trabalhos por não ter uma aparência totalmente feminina”, afirma a publicitária que opta por usar pronomes femininos (ela/dela).
Assim como Alana, ser uma pessoa trans significa a possibilidade de ter sua identidade de gênero já exposta só por causa de sua aparência, o que implica em limitações antes mesmo do ingresso na vida profissional, ou seja, ainda na formação educacional.
Cândido é um homem transexual (pessoa que foi designada mulher ao nascer, mas se identifica com uma imagem pessoal masculina). Ele se diz privilegiado por ter conseguido estudar e chegar ao ensino superior, contrariando as pouquíssimas estatísticas relacionadas às pessoas trans, que mostram que a maioria delas não chega a terminar sequer o ensino fundamental nas escolas formais por causa do preconceito em relação à identidade de gênero (apenas 0,2% dos matriculados no ensino superior seriam pessoas trans, segundo dossiê de 2022 da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Aantra).
"É uma realidade totalmente diferente da maioria das pessoas que eu conheço. Eu, aos 23 anos, vou finalizar a graduação em Serviço Social na Universidade Estadual do Ceará (Uece). Consegui ingressar na universidade pública logo no primeiro vestibular, aos 17. Fiz um estágio na Secretaria Municipal do Desenvolvimento Habitacional (Habitafor), onde já era respeitado plenamente, incluindo o uso do meu nome social (nome escolhido pela pessoa no lugar do nome de batismo), mesmo sem eu ter feito o processo de retificação de registro civil”, destaca.
Hoje ele é contratado — também pelo Hapvida — e orienta a adaptação de outras pessoas que são selecionadas nas chamadas vagas afirmativas (exclusivas ou preferenciais para pessoas negras ou indígenas, mulheres, pessoas LGBTQIA+, com deficiência e até imigrantes). “Me sinto devolvendo à sociedade todo o conhecimento e experiência que tive a oportunidade de ter”, afirma.
Seriam Alana e Cândido apenas “casos de sucesso” de uma única empresa preocupada em parecer “bem na fita” na era do “politicamente correto”, contrapondo-se a mais um bordão do tipo “quem lacra, não lucra” em tempos de polarização social e política acentuada?
Para Mariana Lobo, supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas da Defensoria Pública do Ceará, os avanços são mais sólidos, especificamente nos âmbitos do legislativo quanto no do judiciário.
“É o caso do exemplo do entendimento do STF (sobre a criminalização da homotransfobia, em junho de 2019), assim como a retificação de nome (direito reconhecido em 2018 a pessoas trans, independentemente de cirurgia ou tratamentos hormonais, à substituição de nome e sexo diretamente no registro civil)”, enumera.
“A Defensoria, por sua vez, tem atuado em diversas linhas de frente: acompanhamento de casos de transfobia, tanto para acompanhamento de inquéritos policiais quanto na recuperação de danos; abertura de processos de retificação de nomes — algo que a gente consegue muito rapidamente — inclusive para crianças e adolescentes; e garantia de acesso ao tratamento de saúde adequado.
No âmbito estadual, há de se destacar um passo importante que a Secretaria de Segurança Pública deu, que foi a alteração do sistema de informações policiais, o qual agora permite a inserção da identidade de gênero e orientação sexual da pessoa”, complementa.
"Não estamos falando só de preconceito, mas de desrespeito à legislação brasileira, na medida em que a Prefeitura não possui ainda um plano de atendimento à população LGBTQIA+, por exemplo, sendo que é uma obrigação ter pelo SUS. Ou haver tantas pessoas vítimas de preconceito no mercado de trabalho ou em um estabelecimento comercial. Ou seja, ainda há muito a ser feito”, ressalta.
Labelle Rainbow, coordenadora da Diversidade Sexual de Fortaleza, reconhece as dificuldades do movimento LGBTQIA+ em obter resultados positivos. “Tudo o que possuímos hoje foi por meio de muita luta, resistências e cobranças. São conquistas importantíssimas e que precisam ser reconhecidas e mantidas. Uma das grandes batalhas, para além do que já existe hoje, é a manutenção do que já foi conquistado”, diz.
“Temos em Fortaleza o que a um ‘tripé da cidadania LGBT’: um órgão executor da política, que é a nossa coordenadoria de diversidade sexual; o plano municipal, que tem todas as diretrizes da política; o conselho municipal de direitos da população LGBT de Fortaleza, que foi implantado em dezembro do ano passado, poder público e sociedade civil, com o papel de fazer a fiscalização e o acompanhamento da execução das políticas, e por último, o próprio equipamento, que é o Centro de Referência LGBT Janaína Dutra”, enumera.
Inaugurado em 2011 e levando o nome da advogada e ativista trans Janaína Dutra, o centro de referência municipal é um espaço onde o público tem acesso gratuito a atendimento jurídico, psicológico e social, além de atividades educativas e de empreendedorismo. No final do ano passado, foi inaugurado o Centro Estadual de Referência LGBT+ Thina Rodrigues, único centro estadual de referência no País, de acordo com Silvinha Cavallleire, coordenadora do equipamento.
“Apesar dos pesares, estamos (Fortaleza e o Ceará), em posição de vanguarda em relação ao resto do Brasil no que diz respeito à implementação de políticas públicas e das conquistas do movimento LGBT. E, dizendo mais uma vez, a luta agora é para que tudo isso seja mantido”, pontua a gestora municipal Labelle Silva.
Conversamos com a defensora pública Lia Felismino, com a Silvinha Cavalleire, coordenadora do Centro Estadual de Referência LGBT+ Thina Rodrigues, o Ricardo Mota, Diretor de Diversidade e Comunicação Interna do Hapvida e com a Tamara Braga, head de Diversidade & Inclusão na Gupy, especialista em recrutamento de pessoas. O motivo? Saber dessas pessoas o que elas destacariam em relação à diversidade LGBTQIA+ e o que elas teriam a comemorar.