Imagine a minha surpresa ao ver uma estudante falando sobre a “pesquisa de merda” dela no Twitter. A princípio, o corpo reagiu confuso e soltou um “Quê?” involuntário. O polegar agiu rápido para parar a rolagem na rede social e entender a fundo qual era o assunto de verdade.
Então, ele se revelou: Bárbara Ruzzi, 29, graduanda de Ecologia na Universidade Federal de Sergipe (UFS), estava contando um pouco sobre o projeto de iniciação científica do qual ela é voluntária.
Acontece que a tal “pesquisa de merda” é, de fato, uma pesquisa que envolve a análise de cocô de felinos silvestres da Caatinga.
Eu sei, parece pejorativo no começo, mas o linguajar foi só uma maneira de a estudante fazer a divulgação científica dela nas redes sociais. E funciona muito bem: “O Twitter é muito dinâmico, então a gente precisa pegar no ponto”, ri Bárbara.
No momento que as pessoas mordem a isca, a divulgação fica mais acessível. Na conta que já soma 15,5 mil seguidores amantes de gatos grandes e pequenos até o dia 20 de setembro, a graduanda aproveita para educar sobre espécies de felinos silvestres, os hábitos alimentares deles, conservação e várias outras curiosidades.
Mas enquanto alguns começam a segui-la pelos gatões fofinhos, eu fiquei pelo cocô.
No projeto de iniciação científica, o laboratório de Bárbara trabalha analisando fezes para entender a dieta dos felinos silvestres da Caatinga. Vale destacar que o bioma tem pouquíssimos estudos sobre a dieta de felinos e carnívoros. Na verdade, a Caatinga como um todo ainda precisa ser mais pesquisada no Brasil.
Funciona assim: primeiro, um biólogo de campo faz a coleta dos materiais. Não é tão complicado quanto eu imaginava. Como os grandes felinos também têm o hábito de autolimpeza ― quem nunca viu um gato doméstico se lambendo incansavelmente? ―, os pelos ficam aparentes nas fezes.
No caso das onças-pardas e onças-pintadas, as fezes são maiores e têm algumas características específicas. As das pardas são mais “engomadinhas”, descreve Bárbara, enquanto as das pintadas são mais “contínuas”. Além disso, o biólogo de campo presta atenção nas pegadas que geralmente ficam em volta do cocô. Em algumas situações, a pegada é tão fresca que é possível identificar a espécie “autora da merda” (mais um trocadilho que tira risadas infantis durante a entrevista).
Já para os felinos menores, como o gato-do-mato pequeno, o cocô tem um “rabinho de pelo” no final.
Depois, esse material vai para o laboratório. É aí que pesquisadores como a Bárbara colocam a mão na massa. As fezes secas são lavadas e, delas, dois tipos de itens são separados: os alimentares (como garras e dentes) e os pelos.
Os pelos são do felino dono do cocô, que passarão por uma técnica super barata para se analisar e descobrir a qual espécie o material pertence. Logo falamos mais sobre esse procedimento. As garras e dentes, por outro lado, pertencem aos animais que foram comidos.
Ok, de quê adianta colocar a mão no cocô, separar item por item e pelo por pelo? A resposta resumida é que entender a alimentação dos animais é crucial para a conservação deles e, por consequência, a manutenção do equilíbrio de todo o ecossistema.
Bárbara exemplifica com um estudo que investigou a onça-parda em uma região da Caatinga, pelo qual descobriu-se que ela é especializada em comer um tipo de porco do mato. Em condições equilibradas, a quantidade de porcos do mato disponíveis no ecossistema seriam suficientes para saciar as onças-pardas; ao mesmo tempo, essa predação funciona como um controle que impede a superpopulação de porcos do mato.
"Oi, aqui é a Catalina Leite, repórter do OP+. Te convido para comentar o que achou do conteúdo lá embaixo!"
Mas o que os pesquisadores perceberam é que os moradores da região caçavam os porcos do mato para a própria alimentação. Resultado? Sem mais opções, as onças-pardas começaram a predar animais domésticos.
Basicamente, ninguém saía ganhando nessa história. “O interessante disso é que essas pessoas caçavam porque não tinham condições financeiras para comprar alimento. E aí depois que foram aplicar projetos sociais, as pessoas conseguiram comprar alimentos, essa caça diminuiu muito e acabou ajudando a conservação da onça-parda”, comenta Bárbara.
O caso é bacana por costurar bem como a conservação beneficia a todos. Compreendendo a dieta dos animais, os pesquisadores podem analisar de maneira integrada quais fatores estão impactando esse ciclo. E como tudo no meio ambiente, é impossível desvincular a realidade ambiental da realidade humana, geralmente refletindo desigualdade social em desequilíbrio na natureza.
O jeitinho brasileiro nem sempre precisa ter uma entonação pejorativa. Uma das maneiras de identificar a espécie de felino é fazendo uma análise genética. Para isso, é necessário extrair DNA da amostra e fazer a decodificação dele, o que demanda laboratório, reagentes e instrumentos próprios.
Como você deve ter imaginado, a análise genética pode ser bem cara. E em um cenário em que a ciência brasileira está cada vez mais subfinanciada e sucateada (com grandes cortes no orçamento), os pesquisadores precisam encontrar maneiras tão efetivas quanto para seguir com os estudos.
No laboratório da UFS, onde até os ar-condicionados precisam ficar desligados para economizar energia, Bárbara precisa de três materiais para identificar os donos do cocô: esmalte incolor, água oxigenada e pó descolorante.
Isso, uma ida à farmácia é suficiente. Aliás, uma ida paga com o próprio dinheiro de Bárbara, já que ela não recebe bolsa e a faculdade não disponibiliza recursos para a compra desses materiais.
A técnica que uso no lab é de baixo custo e super eficiente:
— Barbara Ruzzi (@ruzzibarbara) June 7, 2022
1º tiramos um molde do pelo usando esmalte incolor.
Passa uma pincelada na lâmina e deixa dar uma secada pic.twitter.com/Vl5FwK4u06
Como ela descreve na postagem acima, o esmalte é utilizado para fazer um carimbo do pelo e tirar uma impressão da parte externa dele. A partir daí, é possível descartar algumas possibilidades de espécies, mas não todas. Então, ela submete o pelo ao processo de descoloração ― assim como fazemos no salão de beleza ―, chegando à parte interna do material, a medula.
Ao observar o pelo descolorido com o microscópio, ela consegue definir a espécie do “autor da merda”. Apesar de super barato e bem eficiente, a técnica tem limitações e é insuficiente para determinar a espécie de alguns grupos.
O mesmo vale para a pesquisa por abordagem pelas fezes em geral. É claro que existem outras maneiras de se estudar a dieta de felinos. Uma delas é analisando o conteúdo estomacal diretamente, mas para isso seria necessário ter o animal inteiro no laboratório.
Às vezes, diz Bárbara, quando alguns felinos são atropelados nas estradas, os pesquisadores recolhem o corpo para usar essa abordagem. Mas ninguém quer e nem precisa matar os animais para estudá-los, principalmente quando o objetivo é conservar a espécie. “A abordagem pelas fezes é barata e pouco invasiva”, justifica a graduanda.
No Ceará, a Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da Fauna do Ceará, promovida pela Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema) por meio do programa Cientista Chefe, identificou a onça-pintada como provavelmente extinta no Estado.
Em matéria do O POVO sobre a lista, o coordenador do Livro Vermelho da Fauna Ameaçada no Ceará, biólogo
"Você já tinha parado pra pensar na importância da dieta desses animais? Vamos conversar nos comentários!"
Por causa disso, é possível dizer que o Estado está vivendo uma defaunação, ou seja, a diminuição da riqueza e da biodiversidade de animais em um local. Ainda que seja difícil ver na prática, o cenário prejudica todo o equilíbrio ecossistêmico da região.
Dá para perceber como pesquisas como as que Bárbara trabalha e levantamentos como o Livro Vermelho garantem uma análise mais complexa dos nossos ecossistemas. Principalmente quando falamos da Caatinga, uma região ainda pouco pesquisada no País, mesmo cobrindo 10,1% do território nacional e sendo reconhecida como o bioma semi-árido mais biodiverso do mundo.