O bioma Caatinga é um dos mais diversos do Brasil. Presente nos nove estados do Nordeste e em porções do norte de Minas Gerais, ele também configura como o terceiro bioma mais desmatado do País em 2020. Segundo o MapBiomas, a Caatinga perdeu 61.373 hectares (ha) para o desmatamento apenas no ano passado, um aumento de 405% em relação a 2019 - o que tem favorecido a desertificação.
Mas enquanto governos anteriores tinham ao menos um plano de combate à desertificação, o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) paralisou qualquer ação contra a degradação. Além disso, desmontou administrativamente órgãos fiscalizatórios essenciais, como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
Entre janeiro de 2019 e junho de 2021, foram desmatados 116.695 ha, totalizando 9.357 avisos emitidos pelo MapBiomas Alertas, utilizando o Sistema de Alerta de Desmatamento do Bioma Caatinga (SAD Caatinga/UEFS) para identificar os casos. A área desmatada é suficiente para ocupar os territórios das cidades de Fortaleza, Maracanaú, Eusébio, Pacatuba e Itaitinga juntas; e ainda sobrariam cerca de 30 mil ha para desmatar.
No entanto, apesar de a maioria das notificações terem sinais de ilegalidade — 98,6% não tinham autorização, segundo o MapBiomas — faltam dados que indiquem ações de fiscalização por parte dos órgãos estaduais.
Os dados existem parcialmente, explica Washington Rocha, coordenador do MapBiomas Caatinga, mas eles estão indisponíveis para o público e para o próprio projeto. Em termos de pesquisa e desenvolvimento de políticas públicas, a realidade é grave: “Você não consegue propor políticas públicas. A própria sociedade não acompanha, a academia não acompanha… Acaba sendo muito prejudicial à integridade do sistema como um todo. E, ainda por cima, cria situações complicadas, como as denúncias que chegam e o Estado não consegue responder se a denúncia procede ou não — porque os sistemas deles não estão devidamente organizados.”
E o avanço do desmatamento por si só (de 129 ha/dia, estima o MapBiomas) é um prelúdio da tendência de desertificação na Caatinga, reforçada pelo relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). “A desertificação significa que a terra não é mais produtiva”, explica Washington.
A Caatinga fica suscetível à desertificação quando há pouco aporte hídrico, fragilidade no solo e, mais importante, interferência humana. O desmatamento constante para uso econômico do solo, sem o devido tempo para regeneração, provoca a improdutividade da terra. Coincidentemente (ou não), diz Washington, os alertas de desmatamento do MapBiomas concentram-se em regiões limítrofes a áreas agrícolas.
Mesmo que para fins econômicos, o combate à desertificação deveria ser uma das prioridades dos governos envolvendo a Caatinga. E o foi até 2018, ainda que timidamente, com o Programa de Ação Nacional de Combate à Desertificação (PAN-Brasil), coordenado pela Coordenadoria Técnica de Combate à Desertificação do Ministério do Meio Ambiente (MMA).
Porém, com a eleição do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e as consequentes mudanças organizacionais dentro dos ministérios, a coordenadoria foi extinguida — dizimando, assim, a única política contra a desertificação da Caatinga. Segundo site do MMA, o programa está sendo revisado desde 2020.
Entra também outra faceta do desmonte ambiental: a falta de reação do Ibama.
Este episódio faz parte do especial "Bolsonaro 1.000 Dias", que traz reportagens especiais e conteúdos em diversas áreas. Para ler a reportagem de abertura dessa série, é só acessar este link. A programação do projeto, que abordará vários recortes dos dias com Bolsonaro, seguirá até 14 de outubro, antecipadas às terças e sextas no multistreaming O POVO Mais. No impresso, este episódio sairá na quarta-feira, 13.
Até o dia 17 de setembro, O POVO identificou pelos dados do Ibama, disponibilizados na página Consulta de Autuações Ambientais e Embargos, que o órgão emitiu apenas 54 embargos por desmatamento no bioma Caatinga entre janeiro de 2019 e junho de 2021. Ainda que as emissões não sejam cruzáveis diretamente com os alertas do MapBiomas, o dado dá pistas da ação minguante do órgão: a resposta equivaleria a apenas 0,7% dos mais de oito mil avisos (na época da pesquisa).
No entanto, no dia 9 de outubro, a reportagem identificou que os dados do MapBiomas Alertas foram atualizados. De oito mil, o número de notificações detectadas entre janeiro de 2019 e junho de 2021 ultrapassou os nove mil. Ao mesmo tempo, o sistema conseguiu apontar quantos embargos, independente de órgão fiscalizador, foram realizados para o total de alertas; a porcentagem caiu para 0,17%. Ou seja: de 9.357 alertas, apenas 16 casos de desmatamento foram embargados.
Mas o doutor Ricardo Galvão, ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), faz um adendo: identificar focos de desmatamento na Caatinga é mais difícil, já que eles são caracterizados por pequenas áreas degradadas. Dessa forma, é essencial que os dados identificados pelas inteligências artificiais utilizadas no mapeamento sejam validados por analistas treinados.
De acordo com Washington Rocha, os alertas que entram no MapBiomas Alertas da Caatinga passam todos pela validação humana. “O MapBiomas faz o refinamento e validação dos alertas”, explica. Com isso, o projeto conseguiu identificar um volume três vezes maior de desmatamento em comparação aos dados de sistemas de monitoramento anteriores a 2019.
Segundo Galvão, parte da resposta fraca do Ibama está justamente no fato de serem pequenas áreas de desmatamento. “Se tiver áreas de um hectare (desmatado), não vai ter ação do Ibama. Mas claramente existe uma política de não agir”, reforça. O físico foi exonerado do Inpe em agosto de 2019 pelo presidente Jair Bolsonaro - um mês após Bolsonaro acusar o Inpe de estar publicando dados falsos sobre as queimadas na Amazônia.
“Nós publicamos mais de 15 alertas diários e nenhuma ação do Ibama”, lembra Galvão. “O Inpe é uma pedra no sapato do governo.”
Ricardo Galvão era diretor do Inpe desde 2016 e viveu a mudança para o governo Bolsonaro, a qual define como “desastrosa”. Até 2018, Inpe e Ibama tinham um acordo de colaboração, no qual o Inpe transferia os dados — já públicos — para o órgão de fiscalização ambiental. No entanto, o acordo não foi renovado quando da chegada de Bolsonaro.
Além disso, o governo ficou “muito hierárquico, com mentalidade militar”. No lugar dos chefes com experiência técnica, foram colocados militares “completamente incompetentes”, diz Galvão. “Eu tinha dificuldade de mostrar a seriedade do que estava ocorrendo (as queimadas na Amazônia). O Ibama deixou de ser um órgão importante”, lamenta.
Antes de Bolsonaro, o então diretor do Inpe tinha acesso direto aos altos comandos do Ibama para casos de emergência. Depois, apenas o diretor imediato. “(Bolsonaro) destituiu praticamente todos os chefes de instalações regionais do Ibama”, comenta. Em Parintins (AM), por exemplo, havia apenas três fiscais do órgão — quase nada. Apesar das demissões, não houve substituição imediata, no que descreve uma “ação contundente”.
Por outro lado, o Ibama ainda conta com analistas e fiscais muito competentes. Segundo Galvão, esses foram os que continuaram contribuindo com o Inpe, “de maneira menos oficial”. Para o ex-diretor, é crucial que os quadros de funcionários do Ibama, do Inpe e de outros órgãos ambientais, como o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), tenham reposições.
No dia 6 de setembro de 2021, o governo autorizou a realização de concurso público para preencher 568 cargos do quadro de pessoal do Ibama. Das vagas, 96 são para analistas ambientais, 40 para analistas administrativos e 432 para técnicos ambientais.
Os dados utilizados para o especial "Bolsonaro 1.000 dias" são oriundos de bases públicas do Governo Federal, ONGs, institutos de pesquisa, entre outros órgãos ou instituições. Todas as bases de dados utilizadas nesta reportagem e nos demais capítulos a serem publicados podem ser acessadas no perfil do DataDoc no GitHub. Esta é uma forma de garantir a transparência, reprodutibilidade e credibilidade dos métodos utilizados.
Bolsonaro 1.000 Dias é uma série de reportagens, feitas a partir da análise e cruzamento de dados, que descreve os cenários criados pelo bolsonarismo à frente do poder no Brasil.