O Ceará é o único estado brasileiro totalmente inserido no bioma Caatinga, com mais da metade do território originalmente ocupado por plantas esverdeadas no período de chuvas e sem folhas durante os últimos meses do ano. Essa é a imagem (saudável e complexa) da caatinga do cristalino, a mais memorável quando se fala no bioma.
No entanto, o Estado também abriga outros ecossistemas, variando com o clima, a altitude e a formação geológica de cada região. No litoral, por exemplo, a paisagem é de manguezais e plantas litorâneas. Já nas serras, isolam-se regiões mais parecidas com a mata atlântica e a floresta amazônica. Do ponto de vista ecológico, todas essas facetas da Caatinga cearense deveriam ser protegidas proporcionalmente. Mas não é o que ocorre na prática.
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Uma pesquisa publicada em setembro de 2022 na revista científica Sociedade & Natureza demonstrou que, apesar de majoritária, a vegetação da caatinga é menos protegida por Unidades de Conservação (UCs) em comparação a outros ecossistemas menos expressivos no Ceará.
O problema não é proteger outros ecossistemas (ou usando o termo mais adequado, unidades fitoecológicas), mas distribuir as áreas conservadas desigualmente, sem considerar as unidades mais expressivas do Estado.
A caatinga do cristalino ocupa 68,83% do território cearense, mas apenas 0,51% dessa área é protegida por UCs de
As matas úmidas são características de regiões como a serra do Baturité, uma Área de Proteção Ambiental (APA). As serras cearenses surgiram por um processo erosivo de milhões de anos, que acabou criando “ilhas” com características da mata atlântica e amazônica em pleno Ceará. É por essa singularidade que as matas úmidas, assim como as áreas costeiras e encraves sub-úmidos, recebem o nome de “ecossistemas de exceção”. E isso é parte da explicação do porquê eles serem mais protegidos que a caatinga.
“A fisionomia de exceção tem apelo estético muito forte por ter um porte arbóreo muito exuberante e vegetação sempre verde. É mais convidativo para o turismo e para a conservação. Isso provoca um sentimento mais de proteger a região. Em contrapartida, a caatinga que é uma vegetação que perde as folhas nos períodos mais secos, acaba ficando meio de escanteio nesse cenário”, analisa o pesquisador Vladimir Gomes, primeiro autor do estudo e mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
É claro que as matas de exceção precisam ser preservadas, especialmente considerando as espécies endêmicas, ou seja, que ocorrem apenas nesse lugar. É o caso do periquito cara-suja, pelo qual se criou o Refúgio da Vida Silvestre (Revis) Periquito Cara-Suja, na serra do Baturité. O Revis é uma categoria de unidade de proteção integral.
Por outro lado, a caatinga é tão diversa quanto, sendo provavelmente o bioma no semiárido mais biodiverso do mundo. Ela também abriga espécies bandeira, que geralmente chamam muita a atenção do público para a conservação, como a onça, o tamanduá e a onça-parda, todos com algum grau de ameaça à extinção no Estado. Mas mesmo essas espécies são mais lembradas e protegidas quando estão na Mata Atlântica ou na Floresta Amazônica.
Além disso, a Caatinga tem um enorme potencial de sequestro carbônico, um serviço ecossistêmico precioso para combater as mudanças climáticas. “A gente tem uma fauna muito rica, frutas nativas que as comunidades consomem”, destaca Vladimir.
Mas o problema vai além da representatividade de ecossistemas protegidos. Tão importante quanto isso, é o tipo de proteção concedido às unidades; e o Ceará, com apenas 7,87% do território terrestre protegido e 3,09% do marinho, dá preferência às unidades de conservação mais brandas.
Para chegar a essa conclusão, a pesquisa analisou as categorias de UCs do Estado. Das 98 unidades de conservação, 77,6% são de uso sustentável e apenas 22,4% são de proteção integral. Ao mesmo tempo, as de uso sustentável são majoritariamente Áreas de Proteção Ambiental (APAs), a classificação brasileira “com menor restrição legal ao uso humano”.
Isso significa que, mesmo teoricamente protegidos, esses espaços continuam vulneráveis à degradação pela ocupação humana.
Além disso, há casos em que as próprias unidades de proteção integral podem ser enfraquecidas. É a situação na qual o Parque Estadual das Carnaúbas está inserido: uma reportagem do O POVO+ demonstrou como ele corre o risco de perder o status de "parque" e ser rebaixado para "monumento". Uma categoria também de proteção integral, mas que permite intervenções humanas que poderão ser ambientalmente insustentáveis.
Os autores da pesquisa defendem a ampliação de UCs de proteção integral, “especialmente na caatinga do cristalino e na caatinga do sedimentar. Essas seriam as unidades fitoecológicas com maior prioridade para a criação de novas UCs”. Apesar disso, há também uma compreensão para os desafios que cercam a instituição de UCs de PI.
“As PIs demandam mais recursos porque são terras compradas, indenizadas, e não têm uso direto. As US permitem que as pessoas continuem morando lá”, comenta Vladimir.
Para o cientista ambiental, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema) tem demonstrado um “esforço positivo” na criação de UCs, como foi o caso do Parque Estadual do Cânion Cearense do Poti, pelo Decreto Nº 34.132/2021. Ele está situado em uma das áreas mais críticas da caatinga do cristalino, que até então carecia de proteção integral.
No entanto, os dados demonstram como a ação governamental ainda precisa se expandir para realmente garantir a proteção ambiental dos ecossistemas cearenses. A situação fica mais complexa quando se volta a atenção para a existência dos Planos de Manejo das unidades de conservação, o documento técnico que estabelece o zoneamento e as normas que norteiam o uso de cada região.
Sem o plano, a efetividade de uma UC é baixa, pois não há orientações para a gestão do local. Essas são as “UCs de papel”, como ainda é o caso da APA da Chapada do Araripe e a APA da Bica do Ipu. Das 37 unidades de conservação de responsabilidade do Estado, a Sema têm os Planos de Manejo de 14:
Em nota, a Sema também aponta que seis outras UCs estão em processo de elaboração do documento. São elas: APA da Serra de Baturité, APA do Rio Pacoti, APA do Lagamar do Cauípe, APA Berçários da Vida Marinha, Revis Periquito Cara-suja e Parque Estadual do Cânion Cearense do Rio Poti.
"Considerando que em 2015 nenhuma unidade de conservação possuía Plano de Manejo, o que dificultou consideravelmente a gestão da UC, a Sema empreendeu esforços ao longo da gestão, elaborando 20 Planos. Esse avanço possibilitou uma maior eficiência na aplicação dos recursos tanto materiais, financeiros, quanto humanos, garantindo um melhor controle, monitoramento, efetividade de gestão e proteção da área protegida", destaca a secretaria em nota enviada ao O POVO+.
Em entrevista ao O POVO+, o secretário de Meio Ambiente do Ceará Artur Bruno afirma que o Estado tem se esforçado para criar mais UCs contemplando a vegetação caatinga. O objetivo da pasta é chegar até o final do ano com 42 unidades de conservação - cinco a mais das 37 já criadas.
OP - Qual é o procedimento da Sema para definir quais áreas e quais vegetações são transformadas em UC?
Artur Bruno - Quando nós assumimos a secretaria, realmente percebemos que historicamente as unidades de conservação foram criadas muito mais nas chamadas matas úmidas. Nós tentamos, nos últimos anos, mudar um pouco essa realidade, criando unidades em área de caatinga. Por exemplo, criamos o Parque Estadual das Águas, unidade de quase dez mil hectares, seis vezes o Parque do Cocó, uma área que envolve território de seis municípios e boa parte desse território é caatinga. No ano passado, nós criamos unidades de conservação na caatinga, a APA do Boqueirão do Rio Poti, em Crateús, uma região totalmente de caatinga.
OP - Quais são as etapas para a criação do Plano de Manejo? Quanto tempo demora?
Artur Bruno - Depende muito da área. O Parque do Cocó, nós passamos dois anos e meio discutindo. Porque tem um diagnóstico da biodiversidade. Nós fazemos também um trabalho social, de reunião com as comunidades na área onde a unidade se encontra, e com as instituições públicas, com a prefeituras, com, dependendo, o Governo Federal...
O que nós conseguimos mais recentemente quando foi a criação do programa Cientista Chefe do Meio Ambiente e dentro dele um dos projetos é a criação, aperfeiçoamento e gestão de planos de manejo de unidades de conservação. Então hoje nós temos uma equipe permanente coordenada por pesquisadores, professores das universidades. Agora está sendo mais rápido.
OP - Como se define as categorias das UCs, entre de Uso Sustentável e de Proteção Integral?
Artur Bruno - Aí também depende muito dos estudos. Por exemplo, se é uma área que já tem muita agricultura, já tem criação de gado, é área que tem atividades econômicas, não dá pra criar uma proteção integral nessas áreas. Então, se quiser proteger a flora, pode ser a criação de algum monumento natural. Vai depender do que você quer proteger e como você vai proteger.
Muitas vezes, a área de proteção de uso sustentável é para você diminuir o uso e só usar de forma que não agrida muito o meio ambiente. Aí é o caso da Serra de Baturité, uma área enorme, praticamente a serra de Baturité toda, que se fosse parque não poderia ter hotel, pousada, restaurante... Então ao criar uma APA, você permite algumas atividades, mas não pode ter indústria poluente, não pode várias atividades que são rejeitadas dentro de uma de APA. Mas mesmo assim, você faz um zoneamento para definir uma área, mesmo dentro da APA, como de preservação permanente, quase de forma integral.
No final das contas, o Ceará ainda precisa avançar muito para cumprir com as Metas de Aichi. Elas fazem parte do Plano Estratégico de Biodiversidade para o período de 2011 a 2020, aprovado durante a 10ª Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica (COP-10), no Japão.
"Você já conhecia as Metas de Aichi? Vamos conversar nos comentários!"
O Brasil é um dos signatários junto a outros 192 países e a União Europeia, portanto é responsável pelo cumprimento do plano. Na meta 11, o documento destaca que, até 2020, pelo menos 17% das áreas terrestres e de águas continentais e 10% de áreas marinhas e costeiras terão sido conservadas “por meio de sistemas de áreas protegidas geridas de maneira efetiva e equitativa, ecologicamente representativas e satisfatoriamente interligadas”.
E enquanto o Brasil concluiu o ano de 2020 com 30% da área continental e 27% da área marinha protegidas, essa preservação não é ecologicamente representativa. De acordo com o estudo, o bioma Caatinga tem apenas 8% de território em UCs, com somente 1,3% de área total em PI.
Quando olhamos para a conservação no Ceará, a vegetação caatinga é “34 vezes menos protegida do que os ambientes ligados à mata atlântica, como os encraves de florestas úmidas”. Os autores comentam que, embora o cumprimento das Metas de Aichi seja um dever federal, o Ceará também poderia usar o plano para guiar as decisões estaduais de conservação.