Logo O POVO+
Dragão do Mar: o impacto da pandemia do lado de dentro e de fora dos portões
Reportagem Especial

Dragão do Mar: o impacto da pandemia do lado de dentro e de fora dos portões

Difusor da cultura cearense, complexo vai ganhando novo ritmo e mudando seu perfil de frequentadores

Dragão do Mar: o impacto da pandemia do lado de dentro e de fora dos portões

Difusor da cultura cearense, complexo vai ganhando novo ritmo e mudando seu perfil de frequentadores
Por

O relógio não marca ainda nem 22 horas quando as luzes do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura são desligadas, em plena sexta-feira. A movimentação colorida e enérgica de boemia nas proximidades entra em contraste com um equipamento escuro e sem vida. Impactado pela pandemia da Covid-19, o maior equipamento público da cultura em Fortaleza sofreu mudanças principalmente quanto aos seus frequentadores. 

Conhecido pelo movimento intenso de pessoas e pela diversidade de atrações, o Dragão já retomou atividades presenciais, suspensas em 2020, 2021 e, mais recentemente, no início deste ano por casos de Covid-19. Dentro dos portões, contudo, a movimentação é diferente daquela de alguns anos atrás, segundo visitantes e funcionários.

O POVO esteve no local algumas vezes, em dias de fim de semana, para aferir qual o público que compõe hoje o vaivém de pernas que passam por ali nos horários mais frequentados. Pela manhã e tarde, o Dragão tem se consolidado como point familiar, conquistando as crianças com programações infantis. Uma vocação antiga do equipamento, que conta com áreas livres, brinquedos e o Planetário Rubens de Azevedo.

FORTALEZA, CE, BRASIL, 10.09.2022: Movimentação no Dragão do Mar com programação do planetário, cinema, teatro e espoxições de arte. (Foto: Thais Mesquita/OPOVO)
FORTALEZA, CE, BRASIL, 10.09.2022: Movimentação no Dragão do Mar com programação do planetário, cinema, teatro e espoxições de arte. (Foto: Thais Mesquita/OPOVO) (Foto: THAÍS MESQUITA)

 “Aqui para criança é bom. Sempre tem uns brinquedos, é mais tranquilo (para as crianças)”, comenta Maria José, 48, que foi ao local nos último fim de semana, com as sobrinhas.

No entanto, ela pontua: “Antes da pandemia era mais animado, mais cheio. Hoje também por causa da violência, né? Ficou meio perigoso”, considera. A sensação de insegurança é um lamento, mas isso não a impede de levar as meninas para aproveitarem o passeio. 

O espaço sofreu ações estratégicas de policiamento ao longo dos anos e, apesar das reclamações de insegurança, só deixou de receber visitantes durante os picos de casos da pandemia, quando o Governo do Estado cessou as atividades presenciais. Em 2016, um ano antes do Dragão do Mar atingir a maioridade, local contabilizou mais de um milhão de visitas. Vivendo seu auge também no ano seguinte.

“A programação cultural é maravilhosa, com destaque para o cinema, que é único na Cidade, pois foge dos filmes comerciais e não se esquece de dar destaque também para as produções nacionais”, ilustrou a bióloga Carla Souza Araújo, em entrevista dada para O POVO em 2017.

Cinco anos depois, o espaço segue sendo atrativo para aqueles que gostam de cultura. Francisco das Chagas, 35, vê as idas ao equipamento ainda uma como forma quebrar a rotina familiar. Ele levou o filho de oito anos e a esposa, Raylane Alves, 29, para conhecer o planetário mas enfrentou um problema: a tradicional foto contínua da ponte de ferro não existe mais.

“Trouxe meu filho pra bater foto ali, quando cheguei, não tinha (mais)! Perdeu a magia”, riu. “Mas outra coisa que eu gostei muito, ela (esposa) também, que a gente saiu e faltou chorar foi o Museu do Vaqueiro. Lembrei demais do meu avô”, compartilha, emocionado. Entre prós e contras, o desejo de Francisco e Raylane é de planejar mais passeios com a família, dessa vez incluindo os avós.

FORTALEZA, CE, BRASIL, 10.09.2022: Movimentação no Dragão do Mar com programação do planetário, cinema, teatro e exposições de arte. (Foto: Thais Mesquita/OPOVO)
FORTALEZA, CE, BRASIL, 10.09.2022: Movimentação no Dragão do Mar com programação do planetário, cinema, teatro e exposições de arte. (Foto: Thais Mesquita/OPOVO) (Foto: THAÍS MESQUITA)

A conexão entre o Dragão e a Biblioteca Estadual do Ceará (Bece), reinaugurada em 2021 após mais de 7 anos em reforma, também ajuda para conduzir as famílias de um espaço para outro, já que a partir das 16 horas o equipamento promove atividades para as crianças. “A gente frequenta muito a programação infantil da biblioteca e depois a gente faz um passeio”, diz Luísa Pacheco, 36, que foi com a família assistir a peça "Um Tiquinho de Nada", no Teatro Dragão do Mar.

Procurada pelo O POVO, a assessoria do Dragão do Mar informou que as atividades do espaço têm contado com um bom público. De acordo com o órgão, "o Planetário esgota as sessões de quinta a domingo" e alguns espetáculos chegam a contar com uma plateia de até 100 pessoas, o que mostra que o interesse pela cultura ainda bombeia as veias do equipamento. 

Retorno de presença jovem no Cinema do Dragão 

Se ao longo do dia o espaço é ocupado em sua maioria por famílias, a partir das 18 horas ele vai começando a ganhar um público mais maduro. Isso porque, nesse horário, jovens vão começando a chegar em grupos de amigos ou em casal, para passeios ou para prestigiar atrações que o local oferece.

Gabriel André, 23, trabalha há cinco anos no Cinema do Dragão e diz que o tipo de público que frequenta o espaço "varia muito" conforme o filme apresentado. No entanto, o funcionário destaca que o perfil das pessoas que vão ao local se tornou mais jovem depois da onda mais recente da pandemia. 

"Tá vindo mais gente de faculdade. Antes era mais da terceira idade para o público mais adulto (...) O pessoal (jovem) tá se esforçando mais, tá atrás de um motivo para 'desopilar' e tá vindo mais. Elas (pessoas mais velhas) ainda vêm, mas não com tanta frequência como antigamente", destaca. 

Para quem não frequenta sempre o espaço, contudo, a impressão pode ser outra. Esse é caso do estudante Italo Lima, 21. “Eu venho raramente, mas tô procurando mudar isso porque é um lugar muito interessante”, explica. Sozinho, ele foi assistir pela segunda vez ao filme "Não! Não olhe!", de Jordan Peele.

Italo vê a movimentação atual com bons olhos e com base em ótimas experiências: “É um lugar bem animado, eu não sabia que era assim, pra ser sincero. Mas é um lugar ótimo, tem muitas famílias e casais, todos desfrutando do lugar. É maravilhoso, tem que ser assim mesmo”, elogia.

Movimentação no Dragão do Mar com programação do planetário, cinema, teatro e espoxições de arte. (Foto: Thais Mesquita/OPOVO)
Movimentação no Dragão do Mar com programação do planetário, cinema, teatro e espoxições de arte. (Foto: Thais Mesquita/OPOVO) (Foto: THAÍS MESQUITA)

Segundo reportagens do O POVO de 2012, o público que frequentava o cinema à época era formado em grande parte por aposentados e professores. Quando o Dragão do Mar ainda era um adolescente, de 14 anos, houve forte iniciativa dos responsáveis pelo espaço para atrair os jovens para as sessões. 

O esforço pareceu funcionar, visto que nas matérias do O POVO nos anos seguintes, jovens aparecem em maioria nas fotos do cinema, com bolsas nas costas, de forma descontraída e entre amigos. O que significa que o grupo está voltando a ser ativo no espaço onde já foi muito presente. 

Linha do tempo do Cinema do Dragão:

Janeiro de 1999: Unibanco faz parceria com o equipamento e inaugura duas salas de cinema dentro dele, em ação inédita no Nordeste, colocando Fortaleza num importante circuito de filmes independentes e mostras nacionais e internacionais, além de projetos paralelos.

Abril de 2012: Unibanco desfaz parceria com o Dragão do Mar. Cinema deixa de se chamar Espaço Unibanco de Cinema e fica então sob o comando provisório de João Soares Neto, dono do Shopping Benfica, por cinco meses. 

Setembro de 2012: Dragão anuncia parceria com a Fundação Joaquim Nabuco, prevendo, dentre
outras coisas, a curadoria conjunta das salas de cinema do Dragão, que passam por reforma.

Setembro de 2013: Depois de um ano em reforma, as duas salas de cinema do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura são inauguradas, sob a parceria da Fundação Joaquim Nabuco.

Abril de 2017: Fundação Joaquim Nabuco desfaz parceria com equipamento e cinema passa a ser somente "do Dragão".

Março de 2020: Por conta do isolamento social, o cinema passou a não funcionar mais de forma física e, nos meses seguintes, os filmes foram exibidos virtualmente, de forma inédita.

Outubro de 2020: Cinema do Dragão volta a funcionar de forma física.

Março de 2022: Kênia Freitas, pesquisadora de afrocenturismo e cinema negro, assume a curadoria do cinema após saída de Pedro Azevedo Moreira, que atuou como curador do espaço por quase nove anos.

Noites no entorno: o Dragão da diversidade

Os portões do Centro Cultural Dragão do Mar, que antigamente fechavam por volta de 22 horas, agora são fechados às 21 horas, conforme O POVO presenciou na sexta-feira, 16. Indagada sobre o motivo do fechamento mais cedo, a gestão do equipamento, via assessoria, informou que espaço só funciona até mais tarde quando tem alguma atração extra, não dando mais detalhes.

Quando as luzes são desligadas, o escuro vai avançando, deixando praças e demais áreas com cara de abandono. Enquanto as grades de ferro são trancadas e o vazio toma conta do espaço, contudo, o entorno vai ganhando vida por meio de um público mais barulhento e diverso.

É nesse período que o assédio contra a conhecida estátua de Patativa do Assaré, "guardiã" de uma das entradas, é intensificado. O hábito de "atormentar" o velho monumento é antigo e aumenta com a chegada de jovens boêmios na região, que tiram fotos, conversam e brincam de colocar diversos acessórios no indefeso poeta.

Noite no Dragão do Mar point Fortaleza. (Foto: Samuel Setubal/ Especial para O Povo)
Noite no Dragão do Mar point Fortaleza. (Foto: Samuel Setubal/ Especial para O Povo) (Foto: Samuel Setubal-Especial para O Povo)

Ao lado da estátua, jovens vestidos com roupas escuras cantam em uma roda de hip-hop. Próximo dali, a cerca de dois passos, um vendedor carrega um carrinho de bebidas com uma enorme bandeira do arco-íris pendurada, sinalizando um espaço aparentemente sem preconceitos. Mesmo com o movimento menor que em anos anteriores, o cenário mostra que o complexo ainda segue pulsante e diverso.

De fato, o entorno é visivelmente ocupado em grande número por pessoas do público LGBTQIA+. Drag queens vestidas a caráter e casais homoafetivos estão entre as dezenas de pessoas que ocupam os bares e que se empilham em filas para entrar nas boates da região.

É esse público que faz com que o entorno ganhe vida noite adentro, enquanto grande parte do resto da cidade se encontra adormecida. Na madrugada, as ruas da região começam a ganhar um novo perfil de frequentador. Isso porque é a vez de feirantes ocuparem a área para a feira da José Avelino.

A "feira da madrugada", como é conhecida em razão do horário em que funciona, desmobilizou parte do comércio noturno em anos recentes. Segundo Ricardo Coimbra, Presidente do Conselho Regional de Economia do Ceará (Corecon/CE), o setor de moda que existe nas proximidades do Dragão do Mar continuou crescendo na pandemia, enquanto os espaços culturais e de lazer sofreram impactos.

"A gente vem observando essa mudança de perfil naquela região. Ela se transformando em muito parte nesse espaço de comércio de confecção (...) Meio que avançando nesses espaços sócios culturais", destaca economista, frisando também que há uma "competitividade de um segmento em relação ao outro".

Coimbra também pontua que a existência da feira atraiu mais ambulantes informais e trouxe um número maior de pessoas para a área. Além de enfrentarem uma crise econômica por conta da pandemia, alguns comércios e bares da região também sentiram o impacto provocado pela sensação de insegurança.

O tradicional Órbita Bar foi um deles. Em 2021, o local encerrou suas atividades na região e anunciou sua migração para outra área. Em entrevista para O POVO, dada no mesmo ano, a administradora do Grupo Órbita, Patrícia Carvalhedo, afirmou que um dos motivos da mudança era a "insegurança excessiva da localidade". 

“Foi uma combinação de coisas: a feira que nunca foi embora, a cabine policial que não era o suficiente. Era uma área insegura e desordenada, com muito comércio ambulante em cima das calçadas”, destacou Patrícia, que na época informou que o local foi "completamente saqueado" no início da pandemia. 

Um coração que cabe todos

Inaugurado em abril de 1999, o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura foi projetado pelos arquitetos Delberg Ponce de Leon e Fausto Nilo e alterou não apenas a paisagem cultural, mas também boêmia de Fortaleza. Isso porque, com a chegada do equipamento público, novos espaços culturais, restaurantes, bares e demais estabelecimentos foram se erguendo ao seu entorno. 

Com o passar do tempo, a área foi ganhando vida e hoje o Dragão do Mar virou um complexo que engloba não apenas o ambiente de cultura mas também tudo que existe ao redor. Do lado de fora dos portões, o público mais frequente é o LGBTQIA+, que encontra ali espaço de liberdade e acolhimento. 

Braga Filho, 25, frequenta os bares e as boates da região há pelo menos seis anos. O frequentador afirma que o movimento caiu um pouco depois da pandemia, mas garante que a movimentação ainda continua sendo intensa.

De acordo com o vendedor, cerca de "90% das pessoas que circulam na área" são LGBTQIA+ e esse perfil de frequentadores têm se mantido nos últimos anos. O sentimento de liberdade que ecoa naquelas ruas é fomentado pela identificação e por estabelecimentos voltados para esse público.

"Gosto de lá porque consigo ser livre, mas não ando com tanta frequência. Apesar de gostar do local, sempre ando em boates e bares fechados que têm pela a redondeza. Nunca fico em locais aberto e públicos", pontua Braga. 

Para quem anda somente nos bares da região, a sensação sobre a movimentação é a mesma. Carolina Lemos, de 25 anos, frequenta a área desde 2019 e alega que depois do período pandêmico o movimento mudou mas "não muito", continuando intenso. 

"Existe muito do preconceito por pensar que por ser um espaço jovem e frequentado pela população LGBTQIA+, é rodeado de promiscuidade, assaltos, uso de drogas.. mas sou frequentadora e como em qualquer lugar que vou, tomo os devidos cuidados e consigo curtir a noite no Bixiga sem medo", dispara ainda a analista de e-commerce, citando um dos bares mais frequentados da região. 

Além do bar O Chopp do Bixiga, há outros nas proximidades como o Gandaia Bar & Restaurante, o Chez Marc Et Silvania Bar e o bar do Belchior. Esses estabelecimentos se misturam entre as dezenas de barracas de vendedores ambulantes, que vendem comidas e bebidas variadas.

Para atender a diversidade do público, é possível encontrar ainda no local clubes como o Reggae Club, Level, Club Viva, Y’all Club e a Halls. As casas noturnas são populares entre os frequentadores da área e oxidam o espaço depois de outras mais famosas terem fechado as portas, como a boate Donna Santa, ou migrado de região, como o Órbita Bar.

As possibilidades ofertadas nessa área mostram que, mesmo com a redução do movimento ou a mudança de frequentadores, o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura e seu entorno, juntos ainda respiram como um espaço símbolo de Fortaleza. Um complexo cujo coração lateja cultura, diversidade e boêmia. (Com Catalina Leite/ Com informações de João Gabriel Tréz)

O que você achou desse conteúdo?