Cartazes exigindo a efetivação da unidade de conservação de proteção integral (UC PI) Parque Estadual das Carnaúbas percorreram as ruas de Timonha, distrito de Granja (CE), na manhã de sábado, 8 de outubro. Os manifestantes de diferentes idades seguiram até a Paróquia Santa Luzia, receberam a benção do padre Raimundo Figueira e rezaram à São Francisco de Assis, padroeiro dos animais.
A manifestação, segunda de uma onda de três protestos - o primeiro no dia 24 de setembro e o próximo em 29 de outubro, em Ubatuba -, é a resposta da população de Granja contra o avanço das mineradoras na região serrana. O Parque das Carnaúbas e seus arredores são um diamante de biodiversidade vegetal, animal e mineral. Para as empresas, é fonte de lucro e exploração. Para a comunidade, é potencial de turismo e desenvolvimento ecológico e sustentável, focado na preservação ambiental.
"Não tem só essa mineradora (de Timonha). Tem pedreira do Cocal, que nos cercou na manifestação, tem a pedreira do Brejo", relata Nara Magalhães, presidente do Coletivo Parque das Carnaúbas. No caso da pedreira em Timonha, Nara relata o uso de explosivos e o distúrbio que eles têm causado para a comunidade, a ponto de o coletivo precisar organizar uma oficina sobre como lidar com o surgimento de onças na região.
"As onças estão sendo afugentadas (pelo barulho dos explosivos)", relata. Ela mostrou ao OP+ mensagens de um morador do distrito de Adrianópolis (Granja): "Quase todos os dias pessoas estão vendo pegadas de onça nas estradas por onde trafegamos. [...] Algumas pessoas já chegaram a avistar o animal. Estamos correndo o risco de sermos atacados e os próprios animais também correm o risco de serem caçados", alerta a pessoa, em pedido de ajuda.
A expectativa é de unir cada vez mais pessoas na luta. Na primeira mobilização, mais de 50 pessoas marcharam lado a lado, enquanto a manhã de sábado, 8, reuniu mais de 70 manifestantes. Enquanto isso, a comunidade também promove um abaixo assinado endereçado à governadora Izolda Cela, à Sema, à Semace, ao ICMBio e à
De acordo com Nara, as manifestações recorrem à imagem de Izolda justamente para incomodar e estimular a governadora a pressionar o secretário Artur Bruno sobre a efetivação do parque. "É um cenário de inércia, descaso e abandono da Sema", critica a presidente.
Em agosto, O POVO+ apontou um suposto interesse da Secretaria do Meio Ambiente do Ceará (Sema) de permitir a instalação de uma grande usina eólica no meio do território, apesar de um estudo da Aquasis apresentar propostas para a preservação do parque. Mas além da possibilidade da eólica no meio da área de proteção integral e da possibilidade de rebaixamento de categoria de preservação, o Parque também pode sofrer com a presença da mineradora vizinha.
Localizado há apenas alguns quilômetros do Parque Estadual das Carnaúbas e dentro da Área de Proteção Ambiental (APA) Serra da Ibiapaba, está o empreendimento Pedreira Timonha. A mineradora é da empresa C. Fernando R. da Paz & CIA LTDA, de Minas Gerais (MG), conhecida pelo nome fantasia Dapaz Natural Stone e especializada na extração e venda de pedras ornamentais.
No mapa, o ícone em vermelho aponta a localização da pedreira. Ela está dentro da APA Serra da Ibiapaba (forma em verde) e a apenas poucos quilômetros do Parque Estadual das Carnaúbas (em marrom). Você pode dar zoom no mapa, com o mouse ou com os dedo, para ver mais detalhes, ou clicar no botão no canto superior esquerdo, ao lado do título do mapa
Apesar de estar teoricamente dentro da legalidade, vários fatores estimulam moradores e ambientalistas a defender a retirada desta e outras mineradoras das cercanias do Parque das Carnaúbas. Em especial porque ela estaria localizada em uma zona de amortecimento da unidade de conservação, ameaçando o equilíbrio ecológico do ecossistema.
O que é zona de amortecimento
A Zona de Amortecimento (ZA) faz referência ao entorno de uma UC, “onde as atividades humanas estão sujeitas a normas e restrições específicas, com o propósito de minimizar os impactos negativos sobre a unidade” (Artigo 2º, inciso XVIII da Lei nº 9.985/2000). A ZA, então, garante que os limites das UCs estejam protegidos de avanço imobiliário, de poluição, de espécies invasoras e da fragmentação de habitat. Ela não é compreendida pelos limites do parque, mas pode ser zoneada a partir dos planos de manejo ou decretos/leis.
O POVO+ contatou a Sema e a Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace) sobre a localização do empreendimento, as autorizações dele (à Semace) e sobre o plano de manejo do parque. Em resposta, ambas reforçam que a pedreira não está localizada dentro do Parque das Carnaúbas. Por isso, em 2021, a Semace concedeu a Licença de Operação à empresa, no nº 132/2021 - SPU: 07199788/2019.
No entanto, como é possível ver no mapa acima, o empreendimento está entre um a seis km de distância de alguns pontos da unidade. É por essa proximidade que se dá toda a problemática com a mineradora.
O POVO+ teve acesso a um memorando de 28 de maio de 2019 da Prefeitura de Granja, nos quais o subsecretário de Desenvolvimento Agrário, Pesca e Sustentabilidade Ambiental (SDAPSA), na época Roberto Chaves Ferreira, sugere à então procuradora adjunta Inês Regina de Vasconcelos indeferir a anuência à empresa.
A anuência é uma permissão da prefeitura para os empreendimentos funcionarem dentro dos municípios. As prefeituras podem negar ou aprovar esses pedidos, e é apenas com a anuência da gestão que as empresas podem solicitar uma licença de operação à Semace.
“Venho por meio deste relatar que a anuência solicitada pela empresa C. Fernando R. da Paz & CIA LTDA, DNPM 800.339/2016, na localidade Olho D’água, distrito de Timonha, SN, Zona Rural, deveria ser indeferida, pois tal extração será na área de amortização do Parque Estadual das Carnaúbas, o qual se encontra em processo de ampliação pelo estado e sendo também uma área com forte potencial turístico”, descreve o então subsecretário.
Apesar da recomendação, a anuência foi concedida. Ao OP+, a procuradoria de Granja destacou que a “implantação, administração e proteção” da UC é de competência da Semace. Além disso, informou que o Parque das Carnaúbas ainda não foi implementado na prática, “não se tendo notícias da existência de Conselho Consultivo, zoneamento ambiental da área, plano de manejo e a edição de instrução normativa regulamentadora mais protetiva e específica, como prevê o Decreto Estadual”.
"É importante frisar que os municípios têm responsabilidade com essa degradação", destaca João Rafael Muniz Silva, ex-gestor do Parque Estadual das Carnaúbas. "É preciso que se comece a cobrar os municípios pela emissão das anuências. Principalmente o município de Granja onde estão a maioria dos empreendimentos de mineração próximo ao Parque."
Com mapas indicando a presença de pedreiras ao redor do Parque, especialmente dentro de uma área proposta para expansão dos limites, ele destaca que "se a gente não barrar agora, a mineração vai avançar mais". Alguns empreendimentos estão próximos de mananciais e outros de sítios arqueológicos, ameaçando patrimônio natural e cultural. "Os empreendimentos atualmente estão extraindo rocha porque obtiveram o guia de extração, que é uma autorização temporária. Inclusive a maioria está vencida, mas elas foram prorrogadas automaticamente devido a Covid-19", pontua.
O Parque Estadual das Carnaúbas foi criado no dia 15 de fevereiro de 2006, pelo Decreto Estadual nº 28.154/2006, com desembolso do Banco Mundial (Swap). Até hoje, ele não tem plano de manejo. De acordo com a Sema, a previsão para iniciar os trabalhos de elaboração do documento é 2023.
O plano de manejo poderia incluir a definição da zona de amortecimento, comenta Lila Lindoso, analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e chefe da APA Serra da Ibiapaba.
Caso o zoneamento não fosse delimitado neste documento, ele precisaria ser instituído por um dispositivo legal da mesma hierarquia de criação da unidade de conservação. Por exemplo, apenas um decreto poderia instituir a ZA do Carnaúbas, já que o parque foi criado por um decreto estadual.
Mas enquanto esse documento está sendo desenvolvido, os órgãos poderiam recorrer a outras estratégias para impedir o avanço de atividades de risco ambiental. Conforme resolução da Conama nº 237, de 19 de dezembro de 1997, todos os empreendimentos de extração e tratamento de minerais estão sujeitos ao licenciamento ambiental.
“A licença ambiental para empreendimentos e atividades consideradas efetivas ou potencialmente causadoras de significativa degradação do meio dependerá de prévio Estudo de Impacto Ambiental e respectivo Relatório de Impacto sobre o Meio Ambiente (EIA/Rima)”, descreve o documento.
No entanto, a Semace não exigiu da pedreira os documentos. Para O POVO+, o órgão explicou que o EIA/RiMA só é solicitado quando a área diretamente afetada é superior a 50 hectares (ha). "A atividade em questão apresenta apenas 16 hectares e, por isso, foi solicitado a apresentação de um Estudo de Viabilidade Ambiental (EVA)", justifica a superintendência em nota. Essa medida é possível por causa da Resolução nº 5/2019 do Conselho Estadual de Meio Ambiente (Coema), que tornou a extração de rocha ornamental como "médio potencial poluidor-degradador" e, portanto, passível de atuar apenas com Autorização Ambiental (AA).
O órgão destaca que o empreendimento tem a Autorização Ambiental da Sema, pelo nº 48/2020, "com base no Parecer Técnico nº 83/2020–SEMA/COBIO/Parque Estadual das Carnaúbas, tendo em vista a interferência na zona de amortecimento do Parque Estadual das Carnaúbas".
Os documentos citados pela Semace só estão disponíveis por meio de requerimento padrão. O POVO+ fez o requerimento e atualizará a matéria quando tiver a devolutiva da superintendência.
Apesar disso, a Agência Nacional de Mineração (ANM) somente dá o título total de um território (no caso, 180,46 ha de extração de quartzito) para uma empresa. Isso significa que, quase com certeza, a Dapaz Natural Stones terá o direito de explorar todos os hectares, ainda que tenha solicitado a licença de operação para apenas 16 ha. “Fica reservado esperando eles terem o licenciamento de outras áreas para receber a concessão da ANM para outro pedaço”, explica Lila Lindoso.
Sem o EIA/Rima, os órgãos ambientais ficam no escuro em relação aos impactos dos empreendimentos e à fiscalização adequada. “Se eu já sei que a empresa X está explorando esse processo da ANM, eu já sei que ela vai explorar o restante. Ou ela, ou a empresa que ela repassar o título minerário. Então não faz sentido eu dizer que ele pode ficar licenciando de pouquinho em pouquinho, porque eu perco a capacidade de avaliar os impactos cumulativos dessa exploração ao longo do tempo”, critica.
"Se o parque estadual estivesse implementado e funcionando plenamente, não tem como a gente não dizer que aquela atividade de mineração bem na borda do parque não tá causando impacto ali dentro."
Ela exemplifica com o caso da fauna ameaçada de extinção compreendida pela região, como é o caso da onça-parda (Puma concolor): “Esses animais não vão ficar presos só na cerca do parque, até porque isso inviabilizaria geneticamente as populações. A onça é um animal territorial, que circula grandes extensões de áreas", diz.
Não à toa, as serras de Ubatuba e das Flores são consideradas pelo plano de gestão da APA da Serra da Ibiapaba ― unidade na qual a pedreira realmente está localizada ― como regiões alvo de proteção ambiental mais restritivas.
"O que a gente questiona é o impacto. Esse impacto não é aceitável, nessa área especialmente protegida, que ainda tem o parque estadual lá em cima e que pode vir a ser redelimitado para englobar a área da serra das Flores também. Então assim, perceba que é uma situação bastante complexa que envolve várias instituições, várias legislações diferenciadas", determina Lina.
A chefe da APA Serra da Ibiapaba também confirma que o ICMBio é, à princípio, contra a reclassificação do Parque das Carnaúbas para uma categoria menos restritiva.