Nos 100 anos de existência, dona Antônia Feitosa da Silva não imaginou que conviveria com uma santa de carne e osso. Benigna Cardoso da Silva e ela estudaram na sala de aula improvisada em um dos cômodos do casarão de mãe Rosa e pai Pedro, avós da centenária.
Ela recorda, deslembra, chora e faz pausa na memória desconfiada com os repórteres que apareceram de repente na sala da televisão. Tem um receio e um medo ainda, 81 anos depois do assassinato de Benigna. O “infame” Raul Alves, 17 anos, assassino confesso da “menina”, era primo de dona Antônia.
“Vocês vieram me prender? Mas foi ele (Raul), não sei o que deu na cabeça dele” e pede um “paninho” para enxugar os olhos miúdos no traçado das rugas na pele alva do rosto da moradora de Santana do Cariri, na Chapada do Araripe, no Ceará.
Com cuidado, digo que não sou “delegado” e que não estava lá para “buscá-la”. Ele se cala, faz pausa novamente e responde depois de a filha Maria da Conceição, 66 anos, perguntar sobre as histórias que ela “sempre” conta de Benigna. “Ela não tinha apregado (namoro) com ninguém”, resume sobre as intimidades da adolescente que não passou dos 13 anos de idade. Benigna foi beatificada no dia 24 de outubro e é vista como símbolo da castidade pela Igreja Católica.
Benigna, martirizada há oito décadas por resistir a um abuso sexual no lugarejo de Inhumas, tem uma proximidade cotidiana com os moradores mais longevos do pré-histórico município fundado no alto da Chapada do Araripe.
“O que vocês querem saber? Ela era uma criatura que se dava com todo mundo. Não é porque Jesus levou ela, não. Você não está pedindo pra eu falar? Ela, enquanto existiu, foi minha colega de corpo e alma. Órfã de pai e mãe. Quem criou foi uma tia dela, dona Maria Rosa, num sítio fora da rua (da sede da cidade), no Oiti”, biografa Antônia Feitosa.
Pergunto sobre o irmão de Benigna, para saber se dona Antônia titubeia nas lembranças. “Cirineu? Eu digo?”, ela olha para a filha Conceição meio que pedindo permissão para contar algo de desagradável. A filha cuidadora da mãe responde que “melhor não falar”, mas ela a ignora. “Era um pedaço de mau caminho”, e não fala mais nada sobre o menino que virou soldado da Polícia Militar para vingar a morte da irmã. Não vingou, desistiu. Dizem que por milagre da menina que virou beata.
"A senhora, por favor, pode recordar o dia da morte de Benigna?" Puxo um pouco mais das reminiscências da mulher pequenina, de cabelos brancos, finos e esvoaçantes num corredor de vento que entra na casa e alivia um pouco o calor aperreante em Santana.
“Não, não”, responde dona Antônia girando o dedo perto do ouvido para dizer que, aos 100 anos, os recuerdos também são fugidios. “Não lembro, minha cabeça já foi lá pro Bagdá. Nós vivia juntinhas, nós duas. Escola, lazer, brinquedo. Tudo era na casa da escola, que era na casa de minha avó, no casarão de mãe Rosa, grandão, espaçoso”.
Benigna, rememora a idosa, “era uma pessoa decidida. Tudo que queria fazer, parece, tinha uma mãozinha de Deus que ia encaminhando”. Um dia, “o infame (Raul Alves) deu com ela, não sei por onde, e ela não se sujeitou. Aí, ele matou”, ela chora com a mão no rosto.
“Raul, com licença da palavra, era meu primo, mas era numa base de ruindade. Fez mal à bichinha, deixou ela ir, mas ele não pôde com a vida dela. Ele botou nela (perseguiu) e ela escapou, se trepou numa pedreira. Esse menino que se engraçou dela, judiou até a última hora. Mas ela nunca cedeu desse tantinho de nada, nadica de nada. Parece que tinha a força de Jesus Cristo pra se defender desses males, né? Você está me entendendo?”. "Estou sim, senhora", respondo. Ela chora, novamente, e encerro a gravação da entrevista no celular.
Dona Antônia ainda nos olha e enxerga Raul Alves em mim. “Tá rindo de quê? É Raul, não é?”. Depois, se volta para a fotógrafa Fernanda Barros, que está sentada numa cadeira num canto de parede. “Benigna tá ali, quietinha, tão calada. Se Deus quiser vai ser santa. Sofreu muito, a menina”.
Na margem de um dos caminhos para Inhumas, lugarejo no município cearense de Santana do Cariri, foi erguida uma capela de pedra para lembrar o martírio da Menina Benigna. Antes, na estrada carroçável e, agora, pavimentada por causa da beatificação, um
O cenotáfio, um “túmulo” de beira de estrada onde não jaz o corpo de quem foi morto, é o lugar das lembranças onde a vida de alguém deixou de existir. É um marco geográfico do fim da jornada.
O local do sofrimento derradeiro de Benigna esfaqueada, vítima do assédio sexual de Raul Alves, caiu na compaixão de quem a conhecia no povoado de Inhumas e de pessoas alheias que ouviram falar da menina “milagrosa”. A história se espalhou, o lugar virou destino de peregrinação e parada para acender velas e se pedir graça.
José Linard Filho, 88 anos, estudou com Benigna Cardoso da Silva. “Era uma menina feinha, mas gente boa”, recorda com desapego o empresário que foi colega de infância da garota. “Ficamos chocados, havia muita tristeza e espanto quando a notícia correu. Quinze dias depois do assassinato dela, a polícia passou com ele preso (Raul Alves) em frente lá em casa, no sítio Canta Galo”, refaz Linard Filho.
Hoje morador do município de Jaguaribe, o empresário do ramo de hortifrutigranjeiro estava em Inhumas no dia da beatificação de Benigna, 24 de outubro. Não foi pagar promessa. A curiosidade no que se transformou o destino “santificado” da colega de infância o fez “retornar no tempo” e viajar mais de 200 quilômetros.
Ao lado dele, o irmão José Linard Neto, 75 anos. Isso mesmo, quase o mesmo nome. Ele, sim, veio pagar agradecimento à Benigna. “Estou aqui, dirigindo o carro, porque me vali do Padre Cícero e da Menina para voltar vivo para casa. Passei 54 dias entubado na UTI por causa da Covid”, lembra o comerciante dos dias de suplício durante a pandemia, em 2020.
Benigna é a primeira beata do Ceará e do Cariri. Padre Cícero, cujo início do processo de beatificação foi confirmado em agosto, deve se tornar o segundo.
Quem não conviveu com Benigna Cardoso da Silva em Santana do Cariri, no Ceará, caso da devota Maria de Lurdes da Silva, 76 anos, se admira e fica feliz quando descobre alguma ligação na família com a menina que teve seus 13 anos de vida beatificados pelo Vaticano.
Teria sido a tia de Maria de Lurdes, dona Júlia, uma das pessoas que encontrou o corpo de Benigna logo depois que Raul Alves, 17 anos, matou a garota há 81 anos.
Tarcísio Correia Linard, 66 anos, guia voluntário da Capela de Benigna, conta que dona Júlia estava acompanhada da amiga Maria Lúcio quando deram com a mocinha no chão. “Dona Maria Lúcio tem 102 anos, mas a memória já não é boa”.
No dia da beatificação, 24 de outubro, Maria de Lurdes vestiu uma chita vermelha com bolinhas brancas. Uma referência ao vestido que Benigna usava quando foi vítima do machismo de Raul.
Maria de Lurdes, agricultora aposentada, acendeu duas caixas de velas e fez o neto soltar 24 rojões para reverenciar a menina “santificada”, há tempos, por romeiros que peregrinam pelo Cariri de Padre Cícero.
Ela também fez uma doação em dinheiro para a Capela de Benigna, “com as duas mãos”, para agradecer a “cura” de uma chikungunya. “Era tanta dor que eu não conseguia segurar nada, a Menina intercedeu”, acredita Maria de Lurdes, sobrinha da senhora que encontrou o corpo da beata.
Por Joedson Kelvin*
Benigna Cardoso da Silva (1928–1941), de Santana do Cariri, no Ceará, foi a primeira pessoa do Estado a ser beatificada pelo Vaticano. Após 81 anos de sua morte bárbara, a história da menina sertaneja, que viveu uma realidade de pouco ou nenhum acesso, pôde ser vista por todo o Brasil. A cerimônia de sua beatificação, por exemplo, realizada no último 24 de outubro, foi noticiada pelos principais veículos jornalísticos do país.
Durante os poucos anos que viveu, somente 13, sua existência foi atravessada por muitas ausências. Ausência de pai e mãe biológicos, ao perdê-los, Benigna ficou órfã muito cedo. Ausência de uma política de abastecimento d’água, o que fazia a menina ir, todos os dias, a uma cacimba no meio do mato. Ausência de proteção do Estado, diante da cultura de violência contra meninas e mulheres, o que contribuiu para que a “mártir da pureza” fosse vítima de um crime de feminicídio.
Dentre tantas ausências vividas por Benigna, há uma que, embora pouco discutida, também nos faz refletir sobre sua existência. A ausência de uma fotografia sua. Hoje, a visibilidade de sua história só aumenta e, neste processo, tentativas de reconstituir sua face tendem a seguir junto. Um pote de barro e um vestido vermelho com bolinhas brancas, os quais Benigna usava no dia em que foi assassinada, são os únicos elementos que mais se firmam nas imagens criadas e recriadas para a mártir. Porém, seu rosto e aparência, não.
A falta de uma foto** que possa mostrar realisticamente seu rosto nos revela outras tantas questões que rondaram — e rondam — a “Menina Benigna”. Naquela época, podiam-se ver fotografadas apenas famílias cujo poder econômico fosse alto. Sem este acesso, a face da menina ficou a cargo de tentativas visuais de terceiros. Em nome da característica secular do Catolicismo de produzir e cultuar imagens, estas tentativas apontam para lógicas econômicas, sociais e de poder, as quais não podem passar despercebidas em torno da primeira beata da história do Ceará***.
(*) Joedson Kelvin é jornalista
(**) A história da fotografia no Brasil começou em 1839, com a chegada do daguerreótipo, primeiro aparelho fotográfico da história, ao Rio de Janeiro. A “popularização” da fotografia no País, se deu a partir de 1850, por causa da expansão econômica trazida pelo café e do crescimento das cidades.
(***) Figuras emblemáticas da mesma região na qual Benigna viveu, a exemplo do Padre Cícero (1844–1934), foram consideravelmente fotografadas em vida durante o tempo de vida da mártir. A saber, o santo popular de Juazeiro do Norte ainda viveu durante os primeiros seis anos de vida de Benigna.