"O especial Cariri Pré-Histórico é vencedor do Prêmio BNB de Jornalismo 2023, na categoria Nacional - Projeto Multimídia."
Por que Cariri Pré-Histórico?
Essa é a nossa primeira questão para embarcar nessa viagem a um Cariri que mais se assemelha a uma fantasia. O Cariri começou muito antes das fronteiras e definições geopolíticas brasileiras. Os processos de formação geológica e ocupação animal e humana do Cariri pré-histórico estão profundamente enraizados na cultura atual da região. Os patrimônios ambientais, científicos e culturais surgidos há milhões de anos agora compõem um roteiro turístico com amplo potencial econômico e de desenvolvimento social.
O especial Cariri Pré-Histórico delimita um espaço-tempo específico (ainda que, por si só, gigantesco) para discutir como o presente vive e é influenciado pelo passado paleontológico e arqueológico. Serão três reportagens especiais, três episódios de podcast e uma transmissão ao vivo para explorar as conexões dos caririenses com a própria história.
Onde há água, há vida. Parece uma afirmação quase cruel para o imaginário pré-concebido de o que o sertão nordestino pode ser. Mas o Cariri cearense surgiu muito antes das definições às vezes limitantes do que é interior do Ceará, e é essa a história que nos interessa.
Vamos definir a nossa primeira personagem principal: a Chapada do Araripe. É uma divisa natural dos estados do Ceará, de Pernambuco e do Piauí. Chega a 1.004 metros de altitude, com 58 quilômetros (km) de largura e 178 km de comprimento. Quem olha do lado cearense, bem de cima, tem a impressão de que a Chapada está abraçando Juazeiro do Norte, Crato e Barbalha (as três cidades mais lembradas quando se fala na região).
O que nos importa, no entanto, é o fortuito acaso de a Chapada ser levemente inclinada para o Ceará (leste), favorecendo um clima tropical úmido, apesar de oficialmente o Cariri ser do semiárido, e a presença de 348 fontes de água nos dias atuais. Mas há milhões de anos, quando a Chapada ainda estava se construindo, a água já era verdade na região.
Para compreender como a água chegou no Cariri, é preciso antes entender que tipo de mundo prevalecia. Para isso, vamos viajar 220 milhões de anos
Então, iniciou-se o período Jurássico, há 201,3 Ma. “De repente” ― entre aspas porque qualquer transformação descrita aqui é muito mais demorada ―, um aquecimento global se instala. A razão está na alta concentração de CO2 e O2 à época.
Esse vai e vem climático provoca uma mudança ambiental tão intensa que, no final do Jurássico, era comum ver animais gigantes e florestas de sequoias e pinheiros com 90 metros de altura. As chuvas também eram constantes, alcançando média anual de seis mil milímetros. Unindo as muitas chuvas com o aquecimento global (e, portanto, a ausência de calotas polares), o nível dos oceanos começou a subir. É justamente no Jurássico superior que o oceano Atlântico começa a se formar.
Ao mesmo tempo, a Terra enfrentava outras grandes transformações. No fim do Triássico, as placas tectônicas começam a rachar e a Pangeia divide-se, dando origem aos supercontinentes Gondwana (composta basicamente pelos continentes do hemisfério Sul) e a Laurásia (do hemisfério Norte).
No processo, algumas regiões, entre elas o Cariri, sofrem afundamentos; de acordo com o paleontólogo Álamo Saraiva, da Universidade Regional do Cariri (Urca), a Chapada do Araripe já foi tão baixa quanto Fortaleza é hoje. “O Jurássico é (marcado por) rios caudalosos e enchentes monumentais”, afirma.
Agora imagine: é água que não acaba mais. As terras estão baixas, e o caminho antes impenetrável pela compacta Pangeia está aberto por canais entre os supercontinentes. Foi então que o verso moderno encontrou fundo de verdade ― o sertão foi inundado pelo mar.
Você piscou e já estamos no Cretáceo, cerca de 145 Ma atrás. Laurásia e Gondwana já estão se separando e, no final do Cretáceo (há 65 milhões de anos), os continentes já receberiam os nomes que conhecemos hoje. Durante o período, a água do Cariri virou salobre e o ecossistema aquático ganhou camarões, moluscos e peixes. Mas nem tudo foi um mar desde o começo.
O Geopark Araripe já identificou 59 geossítios na Chapada do Araripe, dos quais nove estão formalizados. Além deles, outros quatro geossítios estão em processo de formalização: entre os mais encaminhados, estão o sítio arqueológico Santa Fé e a Fundação Casa Grande - Memorial do Homem Kariri; já o Complexo Ambiental Mirante do Caldas e o Arajara Park, ambos em Barbalha, começaram a ser estudados para iniciar a validação.
Há 123 milhões de anos, existiu o Paleolago Crato. Ele tinha várias várzeas, compondo três a seis grandes lagos, explica o professor Álamo. Com 30 a 40 metros de profundidade, o paleolago era raso e provavelmente tinha águas azuis como as vistas no Mediterrâneo; isso porque os sedimentos que caíam na água logo afundavam.
Nele, viviam as famosas piabinhas fossilizadas na pedra Cariri e que emolduram uma das paredes do Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens e podem até ser encontradas em calçadas feitas com a pedra. A diversidade da época era tanta que existiam mais de 200 espécies de plantas. “Tinha de tudo. Era muita vida: cheio de efemerópteros voando, peixes, tartarugas, sapos, dinossauros… Era a farra do Cretáceo”, descreve Álamo.
Dez milhões de anos depois, em 113 Ma, formou-se a Laguna Araripe, dessa vez bem salgada, com mais ou menos 100 metros de profundidade e ocupando quase a totalidade da bacia. Os peixes eram bem maiores, alcançando dois metros de comprimento.
Igualmente, os dinossauros da época eram enormes, como o Irritator challengeri (segundo Álamo, ele pesava entre cinco a sete toneladas) e o Santanaraptor placidus (podia atingir os 2,5 metros de altura). Afinal, bichos grandes precisam comer peixe grande para manter a forma. “(Mas) o que ganhamos de vida com esses dinossauros, perdemos um pouco a biota por causa da água salgada”, destaca o paleontólogo.
Na fase marinha do Cariri, todas as samambaias sumiram, restando algumas araucárias na base do mar ― o clima do Cariri era parecido com as regiões Sul do Brasil atual. Os troncos fósseis das araucárias são avistados por toda a trilha do geossítio Floresta Petrificada do Cariri, datando de aproximadamente 145 Ma.
A ilustração do paleoambiente Crato (acima) foi feita pelo paleoartista João Eudes, 31, bolsista do Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens. Licenciado em Artes Visuais pela Universidade Regional do Cariri (Urca), João sempre gostou de desenhar animais e ilustrar no estilo mangá. Mas quando entrou na universidade, passou a procurar um novo estilo. Foi quando deparou-se com a paleoarte, um ramo focado na ilustração da biodiversidade pré-histórica, e tema da sua monografia: A Construção de um Paleo-Artista na região do Cariri Cearense.
Em entrevista ao O POVO Mais, João comentou sobre os desafios da paleoarte e a importância dela para a divulgação científica:
O POVO - Que tipos de conhecimentos é preciso ter para conseguir fazer essas reconstruções?
Eudes - Um dos desafios é porque ainda tem uma separação entre arte e ciência. A ilustração científica ainda é muito vista como um suporte para a informação científica, tem um preconceito sobre ela como um objeto de arte independente. Que possui sua própria linguagem. A gente até ignora o fato de, antes de existir o conceito de ilustração científica, ela era uma forma de arte dos exploradores, de documentação dos viajantes.
Já no desenho, vem essa questão do conhecimento científico. Eu não tenho formação em Biologia, aí eu tenho que partir muito de interesse próprio de entender como funciona esse tipo de conhecimento também. Eu não tenho formação, mas desde pequeno eu gostei de pesquisar temas voltados para isso, então acho que me auxiliou também. Mas existe uma necessidade muito maior quando você trabalha com esse tema de você fazer um estudo mais aprofundado.
Não tem como você ilustrar uma espécie extinta apenas com suposições que você imagina sobre. Você tem que pesquisar tudo a respeito da descrição daquela espécie pra fazer algo com embasamento correto, por mais que não se saiba qual era a forma exata, cem por cento, de um dinossauro, de um paleoambiente. Por mais que você tenha licença poética, você tem que dizer como e porquê tá usando aquela cor, com alguma base científica plausível.
O POVO - De todas as paleoartes que você já fez até agora, qual foi a mais complexa?
Eudes - Eu costumo trabalhar mais com a parte de ilustração, mas eu já fiz alguns modelos tridimensionais também. O processo de construção é muito semelhante. Se você for parar pra pensar, uma escultura, o desenho, a pintura, uma fotografia, têm geralmente o mesmo tipo de pesquisa para construir uma imagem.
Um que eu acho que foi o trabalho diferente do que eu já tinha feito foi a reconstrução do Aratasaurus museonacionali, que eu fui convidado a fazer a reconstituição para a divulgação da espécie. Já tinha sido feita uma ilustração dele, mas estavam querendo uma reconstituição de como seria o animal vivo em sua forma tridimensional. Aí me convidaram pra fazer esse trabalho e foi o que eu mais tive o suporte científico, porque eu não tinha toda essa informação sobre o animal. Eu sabia de forma muito superficial.
E aí os paleontólogos que estavam trabalhando na descrição dele é que foram me explicando toda a filogenia do animal, a quais grupos ele se encaixava, e a partir disso, junto com o desenho que já tinha sido feito pelo Maurílio Oliveira, eu criei outra representação do dinossauro e, quem olhasse, visse que é o mesmo animal.
Todo o processo que eu fui fazendo eu fui apresentando pro pessoal como tinha chegado no resultado e eles iam dizendo se estava ok, se precisava de alguma alteração. Porque falta um monte de informação nesse tipo de pesquisa, você tem que ir preenchendo esses espaços com coisas que não existem.
Por exemplo, o Aratasaurus é uma perna, só. E a base da reconstituição dele é principalmente em grupos de dinossauros da China, que são muito próximos evolutivamente com os daqui do Cariri. Como lá têm esqueletos bem mais completos, eles fornecem informações pra preencher os daqui.
Teve muita coisa que eu tive que seguir meus instintos. Uma coisa que eu tive muita dúvida foi sobre a largura do animal. Pela pesquisa que eu estava fazendo, estipulei que era um animal estreito, aí eu fui vendo outros grupos e fui adaptando.
O POVO - Qual o papel da paleoarte no processo de divulgação científica?
Eudes - A paleoarte tem alguma autonomia de transmitir alguma informação. Lá no museu, é um museu de Paleontologia, de fósseis. Os fósseis são o mais importante que existe lá. No caso, essas imagens que eu trabalho é mais como um suporte mesmo, de compreender melhor aquele contexto sem necessitar, obrigatoriamente, de alguém lhe guiando a todo momento.
Você vê o fóssil, e você vê um cenário lá, você compreende como aquilo tudo estava agrupado em um ambiente. Nem todas as ilustrações estão relacionadas a um fóssil. Algumas são mais livres, meio que conduzindo, chamando o visitante para algum local, e outras estão colocadas de acordo com o tema. Tem umas ilustrações que vão ser adicionadas agora à tartarugas, ao paleoambiente Crato e aos peixes e serão posicionadas estrategicamente com os fósseis, para que as pessoas vejam o fóssil, observem a imagem e compreendam como era o ambiente no passado.
O POVO - Qual a sensação de trazer à vida essa biodiversidade?
Eudes - É muito gratificante. E uma responsabilidade grande também, porque é um trabalho que tem que ser levado muito a sério. Como eu tenho formação artística, eu tenho que saber diferenciar uma livre expressão, uma licença poética, da informação científica que tem dentro do meu trabalho.
Se eu trabalho uma imagem com alguma informação incorreta, eu estarei sendo negligente. Vou estar passando a informação errada para quem estiver vendo aquilo. Tem que ter responsabilidade.
E dá orgulho também, você saber que você está dando forma a coisas que a maioria das pessoas quer saber como era. Poucas pessoas têm o domínio de transmitir isso em imagem, porque não é sempre que o paleontólogo consegue.
É muito gratificante saber que é um trabalho que você faz e que está simplificando a informação para um público leigo, de certa forma. Um artigo científico possui informações muito complexas, até pra mim que já tô familiarizado, agora, mas eu ainda sinto muita dificuldade. E a paleoarte facilita essa linguagem, pega toda a informação de um artigo, por exemplo, e traduz aquilo em uma imagem que é universal. Independente de língua, localidade ou formação você vai conseguir compreender aquilo.
Após nossa parada momentânea no tempo presente, vale ressaltar que as evidências de um mar no Cariri vão para além da escavação de seres vivos aquáticos, estando também em rochas e nas serras. Uma prova? No
Ricardo Borges, há 23 anos guia de turismo, nos explicou que a presença da rocha naquela altura representa um deslocamento de massa que ocorreu há milhares, talvez milhões de anos. “Os seixos comprovam a presença de água (na localidade) em algum momento”, traduz.
Já no geossítio Cachoeira de Missão Velha, os
Com vida aflorando de todas as formas, é de se imaginar que o Cariri também seria um espaço procurado por populações humanas. Há 3.100 anos a.C., ao que se sabe, povos indígenas de diferentes tradições chegaram ao Cariri por causa da disponibilidade de água e biodiversidade. Em escala geológica, essas movimentações devem ter ocorrido entre o final do Pleistoceno e o início do Holoceno, quando houve “várias flutuações climáticas”.
"Podemos definir a região do Cariri cearense como um oásis no coração do seco sertão nordestino. Para a vida humana, o Cariri é um presente da Chapada do Araripe."
A natureza não só conferiu abrigo para esses povos, entre eles os Kariri, mas também influenciou lendas e mitos. A verdade é que a cultura dessas populações humanas ecoam até hoje na identidade e religiosidade do caririense. Como? Bom, isso é história para o próximo capítulo.
Mitos e lendas resgatam as origens do Cariri, o episódio 2 será publicado semana que vem, dia 25 de abril.
Dos dias 7 a 11 de março, a reportagem do O POVO Mais esteve no Cariri para produzir o especial Cariri Pré-Histórico. Os viajantes foram o motorista Francisco Aurélio, a produtora Luana Sampaio, o repórter fotográfico Aurélio Alves e a repórter Catalina Leite. Que tal conhecer a rota da viagem no mapa abaixo e, descendo um pouco mais a página, acessar os diários de bordo da produção?
ENTREVISTAS E CONSULTAS: paleontólogo Álamo Saraiva, professor da Urca, e paleontólogo Juan Cisneros, professor da UFPI.
BASTOS, Frederico de Holanda et al. A gestão ambiental nas paisagens da bacia do Araripe no Estado do Ceará. Confins. Revue franco-brésilienne de géographie/Revista franco-brasilera de geografia, n. 29, 2016. Disponível em: https://doi.org/10.4000/confins.11509
CEARÁ. Anuário do Ceará 2019-2020. Geopark
Araripe. Disponível em: https://www.anuariodoceara.com.br/especial-geopark-araripe-2/
CEARÁ. Geopark Araripe: Histórias da Terra, do meio ambiente e da cultura. Governo do Estado do Ceará, Secretaria das Cidades, Projeto Cidades do Ceará-Cariri Central: Crato, Brasil, 2012. Disponível em: http://geoparkararipe.urca.br/wp-content/uploads/2019/11/LIVRO-GEOPARK-ARARIPE-compactado.pdf
MENDONÇA, Rosiane Limaverde Vilar. Os registros rupestres da Chapada do Araripe, Ceará, Brasil. 2006. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Pernambuco. Disponível em: https://attena.ufpe.br/handle/123456789/671
O especial explora como o Cariri presente vive e é influenciado pelo passado paleontológico e arqueológico da Chapada do Araripe.