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Holanda se desculpa por escravidão nas antigas colônias, que incluíam Ceará
Reportagem Especial

Holanda se desculpa por escravidão nas antigas colônias, que incluíam Ceará

A escravidão ajudou a financiar a "Idade de Ouro" holandesa, um período de prosperidade devido ao comércio marítimo nos séculos 16 e 17. O país traficava cerca de 600 mil africanos, principalmente para a América do Sul e o Caribe. O Ceará chegou a ser território dominado pelos Países Baixos

Holanda se desculpa por escravidão nas antigas colônias, que incluíam Ceará

A escravidão ajudou a financiar a "Idade de Ouro" holandesa, um período de prosperidade devido ao comércio marítimo nos séculos 16 e 17. O país traficava cerca de 600 mil africanos, principalmente para a América do Sul e o Caribe. O Ceará chegou a ser território dominado pelos Países Baixos
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Segunda-feira, 19 de dezembro de 2022. A data é um marco para a Holanda e para os lugares escravizados pelos Países Baixos. Durante discurso em Haia, o primeiro-ministro holandês, Mark Rutte, apresentou um pedido de desculpas em nome do governo de seu país por seu papel na escravidão do passado, que ele classificou de crime contra a humanidade.

"Hoje me desculpo em nome do governo holandês pelas ações do Estado no passado", disse Rutte durante no discurso bastante esperado sobre a participação da Holanda nos 250 anos de escravidão nas ex-colônias. Rutte também pronunciou as desculpas em inglês, papiamento e surinamês, línguas faladas nas ilhas do Caribe e no Suriname.

"Postumamente a todos os escravos do mundo que sofreram com este ato. A suas filhas e filhos e a toda a sua descendência", acrescentou. "Nós, vivendo aqui e agora, somente podemos reconhecer e condenar a escravidão nos termos mais claros como um crime contra a humanidade", detalhou. 

"Nós, vivendo aqui e agora, somente podemos reconhecer e condenar a escravidão nos termos mais claros como um crime contra a humanidade " Mark Rutte, primeiro-ministro holandês

Ao mesmo tempo em que Rutte pronunciava seu discurso em Haia, vários de seus ministros estiveram presentes nas ex-colônias de Bonaire, São Martinho, Aruba, Curaçao, Saba, Santo Eustáquio e Suriname, para "discutir" o tema com os habitantes locais.

Após o discurso, houve reações emocionais entre os presentes na sala. Alguns se abraçaram.

Mas a data escolhida pelo governo para se desculpar, que vazou para a imprensa holandesa em novembro, causou uma polêmica feroz no país e no exterior durante várias semanas. As organizações de memória contra a escravidão queriam as desculpas em 1º de julho, data em que é lembrado o fim da escravidão em uma celebração anual chamada "Keti Koti" (Quebrar as correntes) no Suriname.

O pronunciamento causou controvérsia com alguns grupos e países atingidos, que, enquanto exigem uma compensação, consideram que a medida foi apressada e dizem que a falta de consulta por parte da Holanda soa como uma atitude colonial.

Primeiro-ministro dos Países Baixos, Mark Rutte (à direita), pede desculpas formais pelos 250 anos de envolvimento da Holanda em escravidão(Foto: Robin van Lonkhuijsen / ANP / AFP)
Foto: Robin van Lonkhuijsen / ANP / AFP Primeiro-ministro dos Países Baixos, Mark Rutte (à direita), pede desculpas formais pelos 250 anos de envolvimento da Holanda em escravidão

 

Império colonial

A escravidão ajudou a financiar a "Idade de Ouro" holandesa, um período de prosperidade devido ao comércio marítimo nos séculos 16 e 17. O país traficava cerca de 600 mil africanos, principalmente para a América do Sul e o Caribe.

No apogeu de seu império colonial, as Províncias Unidas, conhecidas atualmente como Países Baixos, tinham colônias como Suriname, a ilha caribenha de Curaçao, África do Sul e Indonésia, onde a Companhia Holandesa das Índias Orientais tinha sua sede no século 18.

Os antigos domínios holandeses incluíram o Nordeste brasileiro. Chamadas genericamente de República das Sete Províncias Unidas dos Países Baixos — Holanda, Zelândia, Utrecht, Frísia, Groninga, Guéldria e Overissel — invadiram Salvador (BA), então sede administrativa do Brasil português, em 1624. Foram expulsos em 1625. O governo português, nesse intervalo, foi transferido para Olinda (PE). Em 1630, houve nova empreitada dos Países Baixos contra Olinda e Recife. Permaneceram por 24 anos e expandiram os domínios a Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.

Gravura do Forte Schoonenborch original da Holanda(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Gravura do Forte Schoonenborch original da Holanda

Os alvos holandeses no Brasil eram duas das principais fontes de riqueza dos portugueses: açúcar e tráfico de pessoas escravizadas. O Ceará não tinha nem uma coisa nem outra, mas foi tomado como parte da zona de influência pernambucana.

Àquela altura, as experiências lusitanas de tentar colonizar o Ceará eram fracassadas. Nem havia atividade econômica para haver exploração de mão de obra escravizada. Porém, a invasão holandesa deixou marcas importantes.

Os portugueses haviam construídos dois fortes, em 1603 e outro entre 1611 e 1612, ambos na Barra do Ceará. Este segundo foi tomado pelos holandeses em 1637, até serem dizimados pelos indígenas, em 1644. Em 1649, houve nova empreitada, com Matias Beck, que decidiu construir uma nova fortificação. Mas, em novo lugar: o forte Schoonenborch foi erguido na margem esquerda do Pajeú.

O nome foi uma homenagem ao então governador holandês no Recife. É o local onde atualmente está a 10ª Região Militar, em frente à Catedral. O local em torno do qual Fortaleza veio a se desenvolver.

Batalha dos Guararapes, pintura de Victor Meirelles sobre o confronto que terminou com a expulsão dos holandeses(Foto: Reprodução/Museu Nacional de Belas Artes)
Foto: Reprodução/Museu Nacional de Belas Artes Batalha dos Guararapes, pintura de Victor Meirelles sobre o confronto que terminou com a expulsão dos holandeses

  

Escravidão holandesa

Nos últimos anos, a Holanda começou a lidar com seu papel no tráfico de escravos e sua história colonial, sem a qual as cidades holandesas e seus famosos museus, repletos de obras de arte de Rembrandt e Vermeer, não seriam os mesmos.

Muro com cavalos e escravos, de Frans Post, pintor holandês que retratou o Brasil no século XVII(Foto: Frans Post / Instituto Ricardo Brennand)
Foto: Frans Post / Instituto Ricardo Brennand Muro com cavalos e escravos, de Frans Post, pintor holandês que retratou o Brasil no século XVII

Com o movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) nos Estados Unidos, o debate voltou à tona na Holanda, onde o racismo continua sendo um sofrimento para os cidadãos das antigas colônias.

As cidades de Amsterdã, Roterdã, Utrecht e Haia já se desculparam por seu papel no tráfico negreiro. Rutte, no entanto, se mostrou reticente por muito tempo sobre fazer um pedido de desculpas, ao afirmar no passado que a era da escravidão tinha ficado para trás e que uma desculpa traria de volta as tensões em um país onde a extrema direita segue sendo forte.

Uma pesquisa recente indicou que apenas 38% da população adulta era favorável a um pedido de desculpas.

A escravidão foi abolida no Suriname e em outros territórios controlados pela Holanda em 1º de julho de 1863, mas não terminou antes de 1873, depois de um período de "transição" de 10 anos.

A primeira-ministra de São Martinho, Silveria Jacobs, disse aos meios de comunicação holandeses no sábado que a ilha não aceitaria as desculpas se as mesmas fossem apresentadas nesta segunda.

"Permitam-me deixar claro que não aceitaremos desculpas até que o nosso comitê assessor tenha discutido isso e nós, como país, tenhamos discutido isso", disse.

No entanto, em Aruba, a primeira-ministra Evelyn Wever-Croes disse à agência de notícias ANP que a ilha aceitou as desculpas, mas enfatizou que isto é apenas "um primeiro passo".  


Cinco questões sobre o envolvimento do país europeu no tráfico de escravos 

 

Comissão fracassa na Bélgica para se desculpar de abusos do passado colonial

Uma comissão do Parlamento da Bélgica criada em 2020 para analisar os abusos cometidos durante o período colonial, como consequência do movimento Black Lives Matter, encerrou seus trabalhos na segunda-feira. 19 de dezembro, sem chegar a um consenso sobre se o país deveria formular um pedido formal de desculpas.

O anúncio acontece no mesmo dia em que o primeiro-ministro da Holanda, Mark Rutte, ofereceu desculpas oficiais pelo papel do Estado holandês durante o período da escravidão. A comissão na Bélgica trabalhou durante dois anos sem chegar a um acordo sobre como formular uma desculpa pelos excessos durante a colonização da República Democrática do Congo, Ruanda e Burundi.

Os socialistas e ecologistas belgas afirmaram que o partido no poder, o liberal, é o responsável pelo fracasso por sua recusa a votar um relatório com recomendações que incluísse o tema das desculpas. "Os liberais sabotaram o trabalho da comissão por dogmatismo colonial", afirmou à AFP o deputado ecologista Guillaume Defossé. "É um desastre, uma decepção enorme", acrescentou.

Engenho de Itamaracá, de Frans Post(Foto: Frans Post)
Foto: Frans Post Engenho de Itamaracá, de Frans Post

Em 2020, após os protestos nos Estados Unidos do movimento contra o racismo Black Lives Matter, ocorreram manifestações na Bélgica contra a memória do rei Leopoldo II e outras figuras da era colonial. Esse monarca do século 19 é uma figura polêmica, considerado o pai da nação belga moderna. Contudo, na África, seu reinado esteve marcado por assassinatos, mutilações e a escravização de dezenas de milhares de pessoas.

O monarca atual, rei Philippe, manifestou em junho o seu "profundo pesar" pelo "paternalismo, as discriminações e o racismo" que deram lugar a "abusos e humilhações" durante a era colonial.

Para alguns no Parlamento, este gesto foi suficiente. Muitos legisladores liberais afirmaram que são contra um pedido de desculpas pelo conjunto dos fatos, ao invés do reconhecimento de responsabilidade por crimes específicos.

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