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Por que compartilhar memes de macacos estimula o tráfico?
Reportagem Especial

Por que compartilhar memes de macacos estimula o tráfico?

Entenda por que a publicação e compartilhamento de vídeos e memes de macacos com roupas, comendo doces e convivendo com humanos como um animal de estimação estimula a compra e venda ilegal

Por que compartilhar memes de macacos estimula o tráfico?

Entenda por que a publicação e compartilhamento de vídeos e memes de macacos com roupas, comendo doces e convivendo com humanos como um animal de estimação estimula a compra e venda ilegal
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Dedinho teve os dedos quebrados pela família que a tinha comprado.(Foto: Vitória Nunes/Arquivo pessoal)
Foto: Vitória Nunes/Arquivo pessoal Dedinho teve os dedos quebrados pela família que a tinha comprado.

Quando a Dedinho chegou ao Centro de Triagem de Animais Silvestres (Cetas) do Ibama de Rio Grande do Norte ela já estava velhinha, com 20 e tantos anos, idade considerável para macacos-prego. De pelagem dourada e rugas no rosto amarronzado, a presença dela não era algo a se comemorar: ela foi entregue voluntariamente pela família humana que a mantinha em casa e que, em dado momento, quebrou os dedos da mão da primata.

O motivo? Provavelmente para impedi-la de quebrar os objetos da casa. Dedinho é um dos milhares de macacos-prego comprados de comércios legais ou ilegais quando ainda são filhotes no Brasil, venda estimulada pelos vídeos e memes “fofinhos” que circulam nas redes sociais.

A família devolveu Dedinho para o Ibama sem pagar multa, já que entregas voluntárias estão livres de penalidade. Após o período doloroso, ela tem algumas opções: pode ser encaminhada para um zoológico, um santuário, um centro de pesquisas ou ser reinserida na natureza, mesmo após reabilitação. Mas a verdade é que nada apaga os anos de maus tratos que Dedinho viveu.

 

 

Eles não estão sorrindo

Até onde se sabe, a Dedinho não era uma estrela de rede social seguida por milhões de pessoas, mas definitivamente foi o resultado de uma cultura de venda e compra de animais silvestres para virarem pets.

Na internet, esses animais servem como gancho para o crescimento online dos “tutores” ― um termo nada adequado para a situação, assim como “dono”. Usando roupinhas, comendo doces ou bebendo leite, se locomovendo e agindo supostamente como humanos fariam… Todas características que conquistam os internautas e sequestram likes e seguidores.

Dedinho foi entregue ao Cetas.(Foto: Vitória Nunes/Arquivo pessoal)
Foto: Vitória Nunes/Arquivo pessoal Dedinho foi entregue ao Cetas.

Para se ter uma ideia, um perfil no Twitter focado apenas em compartilhar vídeos e fotos de macacos nessas condições de maus tratos tem 412,1 mil seguidores e segue crescendo. Optamos por omitir o nome da conta para não propagar o conteúdo. Infelizmente, não é preciso ir tão longe: é fácil achar perfis verificados e canais de notícia também compartilhando os memes.

“Esse animal está em um ambiente alienígena. É como se ele tivesse sido abduzido”, descreve a bióloga Vitória F. Nunes, mestre pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) com uma pesquisa sobre a relação entre as redes sociais e o tráfico de macacos prego.

 

Sinais de maus tratos

Após assistir entre mil e dois mil vídeos na internet envolvendo macacos-prego e analisar 50 daqueles com maior número de visualizações, a pesquisadora identificou que cerca de 70% dos conteúdos retratam macacos como pet. Nestes, os comentários focam na beleza dos animais e no desejo de ter um de estimação também.

Os outros 30% eram documentários de vida silvestre. Diferente dos memes, nestes os internautas faziam comentários valorizando a inteligência dos macacos. “Hoje em dia, as pessoas conseguem fama se têm um pet (fofo). O comércio legal e ilegal são estimulados por essas imagens”, explica Vitória.

 

 

Apesar de existirem comércios legais de animais silvestres autorizados pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), a verdade é que eles são igualmente alimentados pelo tráfico. Afinal, os espécimes foram retirados da natureza de alguma maneira.

Mas como as vendas legais são muito caras, o ilegal é cada vez mais fortalecido. “Um macaco-prego legalizado custa 60 mil reais. No tráfico, custa cem reais”, comenta a bióloga, que já viu primatas sendo trocados por relógios de ouro ou cadeiras de balanço.

Coloque uma frase descritiva da imagem

Ibama Linha-Verde: 0800 061 8080 (De segunda à sexta, das 7h às 19h)

Disque-Denúncia: 181

Foto: Carmem A. Busko/Wikicommons

Coloque uma frase descritiva da imagem

Emergência: 190

Cetas Ceará: (85) 3474-0001 | Rua Wilson Pereira, 351 - Guajeru

Foto: Tiago Falótico/Wikicommons

De acordo com a Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas), 38 milhões de animais silvestres brasileiros são retirados da natureza por ano. O número é enorme, principalmente ao considerar que nove a cada 10 animais traficados morrem antes de chegar ao consumidor final. Isso não impede o comércio ilegal de animais (o terceiro maior do mundo, atrás apenas do tráfico de armas e de drogas) movimentar US$ 2 bilhões por ano apenas no Brasil.

Vale ressaltar que o tráfico de animais é um dos principais motivos da extinção de espécies. O contato de humanos com animais silvestres é um risco para a saúde pública, pela possível transmissão de doenças, além de um perigo para a segurança física de ambos. 

 

 

Tráfico de animais silvestres no Ceará

Reprodução do mapa "Principais rotas terrestres utilizadas para o tráfico de animais silvestres Brasil - Região Nordeste", da Renctas. Os círculos em preto são pontos de compra e venda. Os círculos em vermelho, de captura; enquanto os em laranja são pontos de captura e compra e venda.

 

 

Como deveria ser a vida dos macacos

Cães, gatos, cavalos e gado estão há milhares de anos passando pelo processo de domesticação. Os cães têm 25 mil anos de bagagem comportamental evolutiva para se dar bem com seres humanos, os gatos têm cerca de 10 mil anos. Perceba a diferença: você até pode ter um cão e um gato em casa, mas nunca um lobo ou uma onça.

Normalmente, macacos ocupam entre oito a 35 hectares para viver.(Foto: Vitória Nunes / Arquivo pessoal)
Foto: Vitória Nunes / Arquivo pessoal Normalmente, macacos ocupam entre oito a 35 hectares para viver.

“Em geral, os pets perdem a tendência a andar bastante”, explica a bióloga Renata G. Ferreira, professora de Comportamento Animal da UFRN, comentando como os macacos, que não passaram por milhares de anos de domesticação, sofrem ao serem retidos em ambientes que restringem os hábitos naturais deles.

Ela exemplifica com um sagui, outra espécie primata muito traficada. Na natureza, os saguis ocupam áreas equivalentes a oito hectares, ou seja, quase oito campos de futebol inteiros, podendo chegar a 35 campos. Um apartamento ou uma casa com alguns metros quadrados são os piores lares para a rotina de um sagui.

Além disso, eles também são privados de todo o convívio social próprio da espécie. “A gente vê a biodiversidade apenas como uma mudança de forma, mas é muito além de conservar formas diferentes”, reforça a pesquisadora. Ou seja, é também ter uma variedade de estilos de vida, composições sociais, demonstrações comportamentais…

Especialista em macacos-prego, a bióloga Vitória Nunes elenca alguns aspectos da vida dos primatas. Primeiro, ela reforça que existem sete espécies de macacos-prego no Brasil, distribuídos em todos os biomas; os mais vendidos legal e ilegalmente vêm da Caatinga e da Mata Atlântica.

Macacos-prego têm laços muito fortes com familiares e indivíduos da mesma espécie.(Foto: Vitória Nunes / Arquivo pessoal)
Foto: Vitória Nunes / Arquivo pessoal Macacos-prego têm laços muito fortes com familiares e indivíduos da mesma espécie.

Esses animais podem viver em grupos de 15 a 50 indivíduos, número que varia entre as espécies. Eles têm laços sociais muito fortes com a família e os juvenis aprendem com os pais. “Os filhotes são carregados por um ano, e é justamente nesse período que são retirados das mães pelo tráfico”, lamenta. Em muitos casos, as mães são mortas pelos caçadores.

A escolha de capturá-los ainda bebês se dá por dois motivos: eles estão mais vulneráveis, facilitando a caça e o manejo futuro; e estão com a carinha “mais fofa” para os consumidores.

Ocorre que os macacos-prego também são muito hiperativos. Eles amam correr, pular e brincar o dia inteiro, assim como os saguis. É um dos motivos para ocuparem uma área tão grande na natureza, e também uma das razões para irritarem tanto as famílias que os compraram quando crescem e passam pela maturidade sexual.

 

 

O problema de antropomorfizar

“O ser humano tem uma tendência a interpretar tudo como ser humano também”, pontua Renata. A antropomorfização ocorre quando impomos características humanas a outros seres vivos ou objetos. Por isso é muito fácil achar fofinho um animal vestindo roupa e usando mamadeira, sem questionar se essa cena é normal ou segura.

A caça retira os macacos ainda bebês das mães.(Foto: Vitória Nunes / Arquivo pessoal)
Foto: Vitória Nunes / Arquivo pessoal A caça retira os macacos ainda bebês das mães.

Um dos melhores exemplos é acharmos lindo um macaco prego sorrindo nos vídeos. “Olha só, que coisinha linda! Ele está adorando, até sorri”, pensaríamos, sem saber (ou ignorando) que em macacos prego e outros primatas o tal sorriso é uma expressão de medo, de submissão ou de agressividade. Mostrar os dentes, em quase todos os mamíferos não-humanos, geralmente é sinal de desconforto.

Inspirados nesses desconhecimentos e em uma antiga proposta de incluir seis espécies de primatas na lista pet autorizada pelo Ibama, a Sociedade Brasileira de Primatologia (SBPrimatologia) criou a campanha Macaco Não é Pet. A organização desenvolveu uma cartilha que descreve como os animais dos vídeos estão sofrendo e porque os conteúdos não devem ser compartilhados.

A instrução é nunca compartilhar vídeos, fotos, memes e stickers com macacos como pet. A circulação dessas imagens pode inspirar o desejo de comprá-los. Além disso, recomenda-se denunciar e bloquear os perfis nas redes sociais focados nesse tipo de conteúdo. “A sua atuação muda!”, insiste a professora Renata. A ideia é mostrar para o algoritmo que postagens do tipo desagradam.

Desconfie de perfis que postam vídeos e fotos manuseando animais sem equipamento de proteção ― muitos podem transmitir doenças para humanos e vice-versa ―, beijando-os ou misturando espécies em um mesmo ambiente.

 

 

Ouça os especialistas e não compartilhe

Mesmo com a cartilha e as informações científicas em mão, há uma resistência do público a parar de compartilhar e consumir memes de macacos. “Trabalhar na internet é ao mesmo tempo legal e difícil. Tem quem recebe bem e quem não recebe muito bem os nossos alertas”, afirma o biólogo Andrews Nunes, mestrando em Psicologia Experimental na Universidade de São Paulo (USP) e divulgador científico no canal Comportamento Primatológico.

Focado na divulgação sobre comportamento de primatas no Twitter, Instagram e no YouTube, Andrews também dedica parte do tempo online para denunciar os perfis de memes. Toda vez que esse tipo de conteúdo passa no feed do biólogo, ele comenta a publicação avisando sobre os maus tratos ao animal e compartilhando imagens da cartilha Macaco Não é Pet de acordo com a situação.

 

Perfis de divulgação científica sobre primatas

“Não dá pra ser grosseiro com as pessoas e é preciso usar um linguajar mais simples”, descreve. A abordagem já conseguiu fazer artistas e pessoas com mais seguidores apagarem postagens do tipo, o que é importante para espalhar a campanha.

Por outro lado, tem quem receba o alerta como um ataque. “É muito difícil o pessoal ouvir os pesquisadores. E não faz sentido (ter macacos como pet e compartilhar isso), não beneficia ninguém”, afirma Vitória.

Para eles, a educação ambiental é um passo crucial para combater o problema. Nas redes, é possível reforçar o trabalho de perfis de divulgação científica em detrimento aos perfis de memes. Já no mundo offline, deveria existir uma força-tarefa entre escolas, zoológicos e prefeituras.

E para quem ama macacos e gostaria de vê-los sempre, a dica da professora Renata Ferreira é amá-los em liberdade. “Vá à praça, vá fazer um passeio na mata”, sugere. Em Fortaleza, o Parque do Cocó é a casa de vários saguis que vez ou outra sentem-se super confortáveis para aparecer na frente dos visitantes.

Pelo estado inteiro, reservas e parques possibilitam o encontro dos seres humanos com a natureza de maneira sustentável e segura. Comece a apreciar os animais nem tanto pela fofura, mas pela inteligência, pela sagacidade, por viverem em harmonia com seus próprios grupos sociais. Permita que macacos e outras espécies possam crescer, brincar, se reproduzir e morrer de acordo com os padrões deles, não os padrões humanos.

É o direito deles e nossa obrigação.

"E aí, você tinha noção do impacto do compartilhamento desses memes? Vamos conversar nos comentários!"

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