O futebol brasileiro sofreu um duro golpe no começo de 2023, após esquemas de manipulação de resultados serem revelados e denunciados à Justiça sob fortes suspeitas de conchavo entre jogadores profissionais e apostadores. Atingindo a elite do esporte mais popular do País, esta mancha é um dos reflexos de uma epidemia global já bastante conhecida, cujas soluções ainda são incertas e pouco discutidas no ambiente futebolístico.
Por meio de duas fases da operação “Penalidade Máxima”, o Ministério Público de Goiás (MPGO) conseguiu identificar indícios de fraudes em jogos das Séries A e B do Campeonato Brasileiro, além de campeonatos estaduais e da Liga dos Estados Unidos (MLS, sigla em inglês), durante 2022 e 2023. Comandado por um grupo de criminosos, o esquema seduzia atletas com ofertas de até R$ 100 mil em troca de cartões amarelo e vermelho.
À revelia das casas de apostas e dos clubes, que eram lesados por estas estratégias maliciosas, os criminosos chegavam a obter lucros de R$ 700 mil por rodada, de acordo com o promotor do MPGO, Fernando Cesconetto, em entrevista à TV Globo. Na lista de jogadores cooptados por esse conluio, são dez investigados. Seus nomes, aliás, são bem conhecidos do torcedor brasileiro, uma vez que estavam atuando em gigantes como Santos, Fluminense, Athletico Paranaense e Ceará.
A revelação desse projeto criminoso causou um debate tão intenso no futebol brasileiro que mesmo jogadores sem qualquer envolvimento no esquema chegaram a ser acusados. Camisa 25 do Palmeiras, o meia Gabriel Menino, por exemplo, teve sua imagem vinculada a essas falcatruas devido a um erro cometido por ele em uma partida. Nas redes sociais, o jogador chegou a ser tachado por torcedores, mas rebateu:
“Jamais tive envolvimento com episódios de apostas esportivas. Na minha vida pessoal e profissional, zelo pela ética, lealdade e pelos princípios da legalidade. Sou funcionário de uma grande instituição, com milhões de torcedores, e respeito muito essa relação. Sei dos meus deveres e o que represento para todas essas pessoas”
Por um bom tempo, é possível que o ambiente do futebol no País pentacampeão do mundo viva sob desconfiança e que, qualquer evento que cause dúvida na cabeça de torcedores, jornalistas e outros jogadores, certamente seja acompanhado pela pecha de que é algo envolvido com apostas. Mas será que é possível superar isso? O que exemplos internacionais mostram ao Brasil?
Antes de percorrer sobre possíveis ações, é preciso relembrar que o futebol brasileiro e mundial já sofreu com episódios censuráveis. Esta não é a primeira vez em que atores do meio do futebol se corrompem e se unem ao crime organizado com o objetivo de fraudar e faturar com resultados e eventos das partidas. Confira alguns dos vários episódios de manipulação registrados no Brasil e no mundo.
Legalizadas no Brasil desde dezembro de 2018, no fim do governo do presidente Michel Temer (MDB), as apostas esportivas estão por todos os lados. Estampadas em uniformes, veiculadas em propagandas no rádio, na TV e na internet, estas marcas abraçaram de vez atletas, jornalistas e influenciadores digitais, os quais se tornaram os principais divulgadores dessas plataformas.
Para se ter ideia, até mesmo o nome de campeonatos passaram a ser acompanhados pela alcunha de alguma casa de apostas patrocinadora. Por exemplo, o Campeonato Cearense passou a ser o Campeonato Cearense 1xbet. A Copa do Brasil passou a ser a Copa Betano do Brasil. O mesmo aconteceu com a Copa Verde, que tornou-se Copa Verde Betano.
Até o momento, nenhum time de grande relevância chegou a mudar de nome, mas poucos são aqueles que não criaram ainda algum vínculo com casas de apostas. De acordo com levantamento do site MktEsportivo, o Cuiabá é o único time da Série A do Campeonato Brasileiro que não mantém atualmente parceria com marcas do tipo. Sendo assim, das 20 equipes da competição, 19 são patrocinadas hoje por alguma BET.
Apesar de tamanho poder, o mercado das apostas esportivas passou a ter sua regulamentação discutida no Brasil somente a partir de janeiro de 2023. Proposto pelo Governo Federal de Luiz Inácio Lula da Silva, o debate visa estabelecer regras financeiras às BETs e aos apostadores, os quais devem pagar certo percentual em forma de impostos ao Estado brasileiro para poderem operar.
Entre os nomes que estão atuando nas discussões em Brasília, Ricardo Santos Perassolli é apostador profissional há 12 anos e conversou com O POVO sobre essa questão. Criador da empresa de análise de dados de futebol FullTrader Sports, ele tem dialogado com parlamentares no Congresso Nacional sobre o segmento do qual faz parte, buscando mostrar as dores dos apostadores no País.
De acordo com ele, existem três principais questões a serem discutidas, que envolvem interesses dos apostadores, das casas de apostas e do próprio Governo. Toda a conversa pode ser conferida clicando aqui.
Mas outro ponto que não pode ser ignorado é o esporte em si, que precisa preservar um de seus aspectos mais valiosos e apaixonantes: a imprevisibilidade. Entidade máxima que comanda o futebol no brasileiro, a CBF chegou a comunicar que as interferências externas em partidas é algo a ser considerado como uma “epidemia global” e que precisa ser combatida.
“Interferências externas em resultados ou em situações de jogo são uma epidemia global que, para ser solucionada, precisa punir, de forma exemplar e urgente, os responsáveis por essa prática nefasta”, informou por meio de nota, afirmando ainda apoiar “toda e qualquer ação legal que traga transparência e lisura aos campeonatos e a todo o esporte brasileiro”.
O cenário apresentado atualmente, porém, não é dos melhores. Conforme dados do Sportradar, empresa de tecnologia esportiva parceira da CBF, da UEFA e da FIFA, o Brasil é o líder mundial em suspeitas de manipulação de resultados. Em 2022, 152 partidas tiveram alguma suspeita de fraude no futebol brasileiro – nenhuma delas tem relação com aquelas denunciadas pelo Ministério Público de Goiás.
Para flagrar os eventuais delitos, a empresa usa um sistema de monitoramento que une Inteligência Artificial a um banco de dados chamado Universal Fraud Detection System (Sistema Universal de Detecção de Fraudes, em tradução livre). Essa tecnologia verifica movimentações em sites de apostas, avisando aos seus parceiros quando encontra operações fora do padrão.
“A aplicação dessa tecnologia aumentou para mais de 500 a quantidade de dados processados para cada partida que a empresa monitora, incluindo probabilidades, volume de negócios e dados estatísticos relacionados aos jogos. Esse processamento ocorre continuamente ao longo do ciclo de vida dos mercados de apostas de uma partida de futebol, por exemplo, desde o momento em que é oferecido pela primeira vez até o momento em que termina. Anualmente, isso equivale a analisar 30 bilhões de mudanças nas probabilidades de mais de 600 plataformas de apostas”, comunica a Sportradar.
Para o Comitê Olímpico do Brasil (COB), a manipulação de resultados ligados às apostas é hoje considerada uma das maiores ameaças à integridade do esporte. Consultor de integridade do Comitê de Defesa do Jogo Limpo, do COB, Paulo Marcos Schimitt defende uma restrição de determinadas apostas para evitar a ocorrência de esquemas. “Quando coloca a possibilidade do lance acontecer de forma muito específica, na minutagem ou outra circunstância, a margem de fraude será sempre maior. Quanto maior o espectro de abrangência para a aposta, menor a chance do direcionamento”, afirmou ele ao UOL.
Atualmente, existem duas principais propostas pela regulamentação das apostas esportivas no Brasil. Uma Medida Provisória que está sendo editada pelo Governo Federal para ser enviada ao Congresso Nacional; e uma outra proposta pelo senador Jorge Kajuru (PSB-GO). Ambas tratam das questões de tributação bem como de medidas para coibir fraudes como manipulação de resultados.
De acordo com o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, a regulamentação das apostas esportivas é uma das alternativas para ajudar a coibir crimes de manipulação. "A regulação pode garantir o fechamento de espaços onde estão atuando essas verdadeiras quadrilhas, praticando no mínimo estelionato e descumprindo mandamento de ética esportiva. A Polícia Federal vai aproveitar as investigações existentes em vários estados e fazer novas investigações, inclusive ao que se refere a eventuais ramificações internacionais", afirmou a GloboNews.
Ele frisou a necessidade de fiscalização sobre qualquer indício de fraude e comentou até sobre a possibilidade de suspender as atividades de apostas no Brasil. “Se não há segurança nesse serviço, a própria lei 8.078 (Código de Defesa do Consumidor) prevê em tese essa possibilidade. Mas não é algo que esteja sendo examinado nesse momento”, concluiu.