Se, no passado, a invisibilidade era uma forma de proteção contra as ameaças externas da colonização, hoje, milhares de comunidades negras e indígenas não só desejam sair do antigo isolamento como lutam pelo reconhecimento de seus direitos territoriais e valores culturais.
A educação tem sido um importante fio que liga o aprendizado do povo à tapeçaria que é a diversidade étnico-racial brasileira: compreender a formação do Brasil sob uma perspectiva crítica é um meio de conectar os sujeitos com suas raízes, fortalecer o senso de pertencimento, resgatar e valorizar as histórias, culturas e contribuições desses grupos para a construção da identidade regional e nacional.
No Interior do Ceará, essas reflexões ajudaram a tecer o livro “Educação das Relações Étnico-Raciais no Cariri Cearense”, que entrelaça a dimensão educacional com a questão étnico-racial e traz à tona as bases para a construção de uma sociedade mais igualitária e inclusiva.
Construir um lugar de reencontro e reconexão com as histórias e o lugar do passado foi o que motivou a professora e pesquisadora Cícera Nunes, do Departamento de Educação da Universidade Regional do Cariri (Urca), a produzir a obra — que faz parte do projeto “O Currículo e os processos de formação docente no campo das relações étnico-raciais”.
Com uma proposta inter e transdisciplinar, a iniciativa surgiu de uma trajetória de trabalho da docente junto ao Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação, Gênero e Relações Étnico-Raciais, e tem buscado parcerias para suprir a necessidade de suporte formativo e produção e material didático-pedagógico na temática das relações étnico-raciais — em especial nas escolas de educação básica.
“O projeto emociona na medida em que nos possibilitou um reencontro com a história do povo negro e indígena a partir da nossa própria história e do nosso lugar”, conta.
Doutora em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Nunes explica que o projeto teve na centralidade a proposta de recontar e ressignificar a história do Cariri cearense a partir de perspectivas negras e indígenas.
Para isso, foi realizada uma inserção em um bairro negro da cidade do Crato: a comunidade do Gesso.
“Procuramos estabelecer parceria e aproximação com agentes escolares e moradores da comunidade, para que pudéssemos perceber influências, referências e presenças negras e indígenas na história desse lugar”, narra.
Da imersão nasceram propostas de currículo e processos de formação dos profissionais da educação que caminhassem para uma educação de pertencimento, ações de suporte para a elaboração e fundamentação dessa política no contexto do Projeto Político Pedagógico das escolas.
Os materiais produzidos retratam esse encontro: além do livro, que apresenta indicação de estudos e materiais pedagógicos, também são frutos do projeto os cadernos “O Território Criativo do Gesso, Memórias e Narrativas Negro-Indígenas” e “A escola de Educação Básica e Educação para Relações Étnico-Raciais”, além do vídeo-documentário “Sankofa Gesso”.
O nome Sankofa (Sanko = voltar; fa = buscar, trazer) significa a sabedoria de aprender com o passado para construir o futuro e faz referência a um dos símbolos
“São estudos que propõem a discussão a partir das escolas de educação básica e trazem uma contextualização sobre a política educacional antirracista e processos de formação de professores”, comenta Nunes.
“Além disso, instalamos duas bibliotecas com a média de 200 títulos de autorias negras e indígenas, sendo uma biblioteca comunitária na escola parceira do projeto e uma biblioteca no núcleo da Urca”, acrescenta.
Com o propósito de difundir as informações postas no material didático, o grupo desenvolveu um aplicativo que mapeia os pontos de memória da comunidade do Gesso e registra lugares que têm ou tiveram relação com o povo negro e indígena no território: o EducAya.
Junção das palavras educação e Aya (outro símbolo Adinkra), o EducAya contou com a parceria da equipe de informática do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFCE), que transformou o mapeamento em uma ferramenta digital disponível na Google Play Store para aparelhos Android e Windows Phone.
Conforme destaca Cícera, o app educativo aparece relacionado à forma como a comunidade ressignifica a relação com a linha férrea existente na área durante o processo de organização do sítio urbano, por exemplo, “com a plantação de ervas medicinais e plantas frutíferas gerando remédios, alimento, sombra, arejando o ambiente, diminuindo a poluição e embelezando os ambientes”.
“Os percursos urbanos no Território Criativo do Gesso foram uma das etapas da metodologia do projeto onde, na companhia de moradores do lugar, percorremos as ruas e os pontos de memória contextualizando, conhecendo as histórias de vida de pessoas que preservam o legado ancestral negro e indígena e identificando os pontos que guardam a memória coletiva desse território”, completa.
As marcas do projeto também ficaram espalhadas nos muros do bairro através de uma intervenção urbana com grafite feita por estudantes, professores e moradores, que usaram traços e cores para retratar nas paredes um pouco da história e trajetória da população negra.
Por trás das histórias, o conteúdo reflete sobre as fragilidades da aplicação das leis 10.639/03 e 11.645/08, que insere a história afro-brasileira e indígena no currículo escolar.
Como alternativa, o caderno apresenta acervos documentais e bibliográficos para contribuir com o professor no planejamento de atividades pedagógicas sobre o tema.
Todo o trabalho coletivo, de acordo com a idealizadora, fortaleceu a dimensão de que o projeto almejava: “que a escola dialogue com o território através das histórias vividas pelas crianças e jovens dentro e fora dela, mas também apresentar as potencialidades do bairro enquanto espaço educador”.
Como resultado, as pesquisas foram contempladas pelo Edital Equidade Racial na Educação Básica, realizado pelo Itaú Social em parceria com o Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert), Instituto Unibanco, Fundação Tide Setubal e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
Para as escolas cearenses, 2023 é um ano de reafirmação do compromisso com a educação antirracista.
Nos 20 anos da Lei 10.639, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas brasileiras, essa pauta tem sido debatida e incluída dentro das propostas didático-pedagógicas.
Na rede pública de ensino, pesquisas como a de Cícera Nunes ajudam a fomentar a orientação e realização de atividades que possam contribuir com um processo educativo diverso, inclusivo e antirracista.
Em Fortaleza, profissionais da Prefeitura Municipal participaram de uma agenda do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em que puderam refletir sobre os impactos do racismo no desenvolvimento infantil e formular, em conjunto, planos de ações antirracistas.
A Capital foi uma das cidades contempladas com o ciclo de formação da oficina Primeira Infância Antirracista (PIA), realizado em junho em parceria com prefeituras municipais para promover oportunidades e contribuir com a prevenção de violências contra crianças e adolescentes em territórios vulneráveis dos centros urbanos.
Maíra Souza, oficial de desenvolvimento infantil na primeira infância do Unicef, afirma que existem estudos que comprovam o prejuízo que o racismo pode causar em crianças negras e indígenas de zero a seis anos.
“Já existem inúmeras evidências que mostram como o racismo impacta na construção da autoestima, da autopercepção, da autoconfiança da criança pequena, ou seja, o racismo tem impactos no desenvolvimento emocional, físico e social”, salienta.
“Pesquisas apontam que o racismo é um fator promotor de estresse tóxico e adverso ao desenvolvimento infantil. A oficina é uma sensibilização, não existe uma ‘receita de bolo’, mas a iniciativa propõe uma série de caminhos possíveis de práticas antirracistas”, pontua.
Como parte desse pacto firmado, o Governo do Ceará, através da Secretaria da Educação do Estado (Seduc-CE), tem disponibilizado conteúdos como o e-book “Educação para as Relações Étnico-Raciais: caminhos e desafios” (2021) e o documento “Educação para as Relações Étnico-Raciais e Semana da Consciência Negra: OrientAções” (2022).
Os materiais, de abordagem ampla, envolvem gestores escolares, professores e estudantes para discutirem desde as interações pessoais até o currículo e as temáticas ministradas no âmbito escolar.
Para fortalecer essa frente, a Secretaria Executiva de Ensino Médio e Profissional (Sexec-EMP) orientou todas as 20 Coordenadorias Regionais de Desenvolvimento da Educação (Crede) e Superintendência das Escolas Estaduais de Fortaleza (Sefor) a promoverem o assunto nos encontros pedagógicos que ocorrem a cada início de ano.
Sete dicas para uma educação antirracista desde a primeira infância
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O secretário executivo da Seduc-CE, Helder Nogueira, afirma que é necessário um trabalho continuado em prol da equidade racial, que esteja incluído nas várias iniciativas pedagógicas promovidas nas escolas.
Na avaliação de Nogueira, é preciso observar, inclusive, aspectos relativos à linguagem e aos costumes vivenciados no dia a dia da escola, com toda a comunidade, a fim de evitar o uso de expressões enraizadas no cotidiano e que tenham cunho racista.
"Precisamos compreender as múltiplas desigualdades que existem na sociedade brasileira. Equidade significa tratar os desiguais considerando as suas desigualdades, para entender que eles têm pontos de partida e trajetórias distintas ao longo da vida”, acentua.
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“No aspecto étnico-racial, partindo do pressuposto que existe um racismo estrutural no Brasil, trabalhar a equidade é fundamental. E não quer dizer que estejamos dando evidência a uma minoria, mas a uma maioria, que infelizmente ainda encontra dificuldade de conseguir êxito na construção de seus projetos de vida", aponta Helder.
Para tanto, conforme explica o secretário executivo, uma das estratégias é apresentar, durante as aulas, personagens negros que sejam referência em suas áreas de atuação, como ciência, cultura, política e educação, de modo que os estudantes possam construir suas identidades ao observar exemplos existentes.
“Na Física, a partir de uma questão que traga no enunciado uma corrida de Fórmula 1, é possível citar o piloto inglês Lewis Hamilton, que é negro e um dos principais referenciais do esporte”, demonstra.
Outra projeção dos secretários executivos para o ano de 2023 é a realização de um grande encontro, durante a Semana da Consciência Negra, no mês de novembro, para avaliar e reconhecer o que a rede pública estadual cearense conseguiu avançar na pauta ao longo do período.
Nesta oportunidade, serão destacadas as boas práticas desenvolvidas pelas escolas relacionadas ao debate étnico-racial, nas várias dimensões possíveis.
Titular da Secretaria da Igualdade Racial do Estado do Ceará (Seir-CE), a professora Zelma Madeira reforça que a obtenção de dados que levem em consideração a realidade das crianças e da juventude negra ajuda a construir panoramas para elaborar estratégias e desenvolvimento de políticas e ações voltadas para a igualdade racial.
“Na educação, é necessário a elaboração e validação dos dados, a partir de uma leitura de realidade e entender que a nossa realidade é racializada. Significa que, há uma distribuição de benefícios e desvantagens entre os grupos étnicos. Então, não tem mais como adiar essa discussão de uma educação a partir de uma realidade”, analisa.
Segundo Madeira, esse é um caminho possível para as instituições de ensino: “Com esperança, nós acreditamos que possamos completar esta educação verdadeiramente antirracista considerando os grupos étnicos que estão em desvantagem na realidade brasileira e cearense”.
É essencial, porém, a compreensão de que combater o racismo, trabalhar pelo fim da desigualdade social e racial e empreender reeducação étnico-racial não são tarefas exclusivas da escola — apesar de perpassarem por esse ambiente, as formas de discriminação não nascem somente nele.
Guiada pelo
Num esforço urgente para integrar essa luta, um coletivo formado por editoras criou o catálogo “Por uma escola afirmativa: construindo comunidades antirracistas”.
Um dos objetivos é, conforme referenciado o cantor Emicida, “fazer a negritude chegar nas crianças enquanto potência, e não enquanto tragédia”.
Para criar crianças não racistas | Educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental (1º ao 5º ano)
Um dos principais eixos do projeto é o catálogo integrado de obras desse coletivo de editoras, que abordam, direta ou indiretamente, as relações étnico-raciais nos universos negro e indígena.
O documento oferece, a professores de todos os segmentos escolares das redes pública e privada, estratégias aliadas à leitura literária para reverter a apresentação de uma história única de opressão e promover uma educação antirracista.
Para a seleção, foram levados em conta a diversidade de gêneros textuais, autores nacionais e estrangeiros negros, indígenas e brancos, cujas obras atendessem ao objetivo de ampliar a perspectiva de mundo e decolonizar o imaginário do leitor.
Sejamos todos antirracistas | Anos finais da educação fundamental (6º ao 8º)
Conforme ponderam as escritoras Elly Bayó, Fernanda Miranda e Fernanda Sousa, responsáveis pela curadoria, o
Por isso, parte de sua desconstrução implica uma aproximação do pensamento produzido por autores e autoras negras que historicamente têm elaborado outras narrativas para si e para a nação, a fim de emergir outras versões, visões e sentidos.
As editoras destacam, ainda, que as populações e comunidades indígenas também são alvos de discriminação e violência em função de seu pertencimento étnico-racial, atrelado a terras que são constantemente usurpadas por fazendeiros, grileiros, queimadas, dentre outros.
Formando sujeitos para o futuro | 9º ano e ensino médio
Por meio dos textos literários, relacionam as autoras, é possível comunicar cosmovisões negras e dos povos originários, seus sistemas de mundo e significações, sua visão da história e formas de elaborar a própria imagem e a dos outros.
Ao valorizar as contribuições do povo negro e indígena, a escola não apenas resgata uma história que sofre sucessivas tentativas de apagamento, como também promove a valorização e o respeito à diversidade cultural e étnica presentes no Cariri e no Brasil como um todo.
Dessa forma, a educação torna-se uma ferramenta poderosa para a construção de uma sociedade mais inclusiva, onde todas as vozes são ouvidas e todas as culturas são celebradas.
"Oie :) Aqui é Karyne Lane, repórter do OP+. Te convido a deixar sua opinião sobre esse conteúdo lá embaixo, nos comentários. Até a próxima!"