Sob a ponta dos dedos, quando se resolve dar vida a uma história, é o impulso dos sentimentos que conduz as palavras para que elas se entrecruzem e façam nascer o texto, em um compasso que é ritmado por cada vírgula, reticências e ponto final.
No caminho contrário, na linha ancestral da memória que constrói as camadas do tempo, a escrita é o ponto de partida para que as raízes do passado se combinem com as projeções sobre o futuro, formando significados que vão além do lexical e trascendem o texto.
É nesse lugar de potência que se constrói a vida e obra de Conceição Evaristo, profundamente ligadas às experiências da coletividade negra no Brasil. Com o olhar sensível para criar narrativas a partir do lugar em que habita, a consagrada e multipremiada escritora atravessa a literatura contemporânea com um convite a romper o silêncio e compartilhar escrevivências — termo criado por ela em um jogo com os termos “escrever”, “viver” e “se ver”, segundo a própria.
“Tudo que eu escrevo é profundamente marcado pela condição de mulher negra”: com essa frase, a importante teórica de estudos literários e afro-brasileiros revela a origem e a matéria-prima principal do seu trabalho: a vivência das mulheres negras.
As escrevivências de que fala a contista são uma referência ao jeito de narrar as lembranças e o cotidiano marcados por racismo, desigualdade e discriminação de gênero e classe. Embora sejam diversas as temáticas poéticas e ficcionais da autora, o fio condutor que protagoniza histórias e reflexões tem esse perfil.
Prestes a completar 76 anos, a romancista pontua: “o sujeito da literatura negra tem a sua existência marcada por sua relação e por sua cumplicidade com outros sujeitos. Temos um sujeito que, ao falar de si, fala dos outros e, ao falar dos outros, fala de si”. “E essa herança histórica sempre está presente na minha escrita. Antes, até sem querer. Mas, de alguns anos para cá, de forma proposital, consequência de um projeto literário”, acrescenta.
Uma das maiores escritoras da literatura nacional, Maria da Conceição Evaristo de Brito nasceu em 29 de novembro de 1946, na comunidade do Pindura Saia, em Belo Horizonte, Minas Gerais. “Eu não nasci rodeada de livros e, sim, rodeada de palavras”, costuma dizer.
Segunda de nome irmãos, a filha de Joana Josefina Evaristo teve pouco contato com o pai, mas cresceu criada pela mãe, que era lavadeira, e pelo padrasto, Aníbal Vitorino, que era pedreiro. De origem humilde, suas lembranças da infância são permeadas pelo misto de desespero, culpa e impotência que a invadiam ao perceber o sofrimento da mãe, cuja felicidade era o que mais lhe importava. Dona Joana trabalhou na casa de escritores como Otto Lara Resende e Alaíde Lisboa.
Devido às dificuldades financeiras da família, quando tinha sete anos a menina passou a morar com a tia, Maria Filomena da Silva, irmã mais velha da mãe, que também era lavadeira, e o tio, Antonio João da Silva, que era pedreiro. O casal não tinha filhos.
"A ausência de um pai foi dirimida um pouco pela presença de meu padrasto, mas, sem dúvida alguma, o fato de eu ter tido duas mães suavizou muito o vazio paterno que me rondava. Fui morar com eles, para que a minha mãe tivesse uma boca a menos para alimentar."
Questionadora e participativa, em 1958, ao terminar o primário, ganhou seu primeiro prêmio de literatura ao vencer o concurso de redação da escola com o texto "Por que me orgulho de ser brasileira".
A mudança para a casa ao lado permitiu que ela pudesse estudar com mais folga, mas nada que impedisse a pequena precisasse fazer trabalhos semelhantes aos de sua mãe e sua tia. Aos oito anos, Conceição começou a trabalhar como empregada doméstica.
Os meios que encontrou para não abandonar os estudos, incentivados por sua mãe, envolviam usar o trabalho para estudar — alguns professores trocavam aulas particulares e livros por tarefas domésticas.
“Foi em uma ambiência escolar marcada por práticas pedagógicas excelentes para uns, e nefastas para outros, que descobri com mais intensidade a nossa condição de negros e pobres. Geograficamente, no Curso Primário experimentei um ‘apartaid’ escolar. O prédio era uma construção de dois andares. No andar superior, ficavam as classes dos mais adiantados, dos que recebiam medalhas, dos que não repetiam a série, dos que cantavam e dançavam nas festas e das meninas que coroavam Nossa Senhora. O ensino religioso era obrigatório, e ali como na igreja os anjos eram loiros, sempre. Passei o Curso Primário, quase todo, desejando ser aluna de uma das salas do andar superior. Minhas irmãs, irmãos, todos os alunos pobres e eu sempre ficávamos alocados nas classes do porão do prédio. Porões da escola, porões dos navios. Entretanto, ao ser muito bem aprovada da terceira para a quarta série, para minha alegria fui colocada em uma sala do andar superior. Situação que desgostou alguns professores. Eu, menina questionadora, teimosa em me apresentar nos eventos escolares, nos concursos de leitura e redação, nos coros infantis, tudo sem ser convidada, incomodava vários professores, mas também conquistava a simpatia de muitos outros.” — Conceição Evaristo
Em depoimento no I Colóquio de Escritoras Mineiras, em 2009, na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, a professora relatou: “Mãe lavadeira, tia lavadeira e ainda eficientes em todos os ramos dos serviços domésticos. Cozinhar, arrumar, passar, cuidar de crianças. Também eu, desde menina, aprendi a arte de cuidar do corpo do outro. Minha passagem pelas casas das patroas foi alternada por outras atividades, como levar crianças vizinhas para a escola, já que eu levava os meus irmãos”.
Depois de terminar o primário, Conceição fez um curso ginasial onde teve contato com discussões sobre a realidade brasileira. Aos 17 anos aderiu ao movimento da Juventude Operária Católica (JOC), uma instituição da Ação Católica que promovia discussões sobre o papel da Igreja na sociedade.
Após concluir o Curso Normal no Instituto de Educação de Minas Gerais, em 1971, a já aspirante à carreira de professora decidiu mudar-se para o Rio de Janeiro, já que não conseguiu emprego em BH — naquele período não existia concurso para professor em Minas Gerais, de modo que só dava aulas quem fosse indicado. A partir de então as reflexões sobre questões étnicas passaram a ser ainda mais constantes na vida da escritora.
Dois anos depois de chegar ao antigo Estado da Guanabara, em 1975, a jovem Conceição Evaristo prestou concurso para o quadro de magistério de Niterói, local em que trabalhou quase dez anos como professora do supletivo. Em 1976, prestou vestibular e foi aprovada para o curso de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
A graduação tinha mesmo que estar no tracejado de seu caminho. O modo como a escrita e a leitura entraram na vida de Conceição Evaristo foi relatado no artigo “Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita” (2007, p. 18), onde a autora recorda que as mãos de lavadeira da mãe “guiaram os dedos no exercício de copiar o nome, as letras do alfabeto, as sílabas, os números, os difíceis deveres de escola, para crianças oriundas de famílias semianalfabetas”.
Tia Filomena, por sua vez, “tinha por hábito anotar resumidamente, em folhas de papéis, datas e acontecimentos importantes, desde fatos relacionados à economia doméstica a acontecimentos sociais ou religiosos”. À medida em que crescia, esses pequenos registros diários passaram para sua responsabilidade.
Anos mais tarde, essas experiências vieram a se tornar a matéria do seu discurso literário, conforme ela mesma afirma.
Conceição Evaristo crê “que a gênese de [sua] escrita está no acúmulo de tudo que [ouviu] desde a infância. O acúmulo das palavras, das histórias que habitavam em [sua] casa e adjacências”.
Nessa mesma época, quando se dividia entre estudar e trabalhar, Conceição conheceu Oswaldo Santos de Brito, com quem veio a se casar e teve Ainá Evaristo de Brito, sua única filha, que nasceu com uma síndrome genética que afetou o seu desenvolvimento psicomotor.
Oswaldo faleceu precocemente aos 54 anos no dia 30 de dezembro de 1989, em Belo Horizonte, quando a família estava na capital mineira para comemorar as festas de fim de ano.
Ainá tinha nove anos, contrariando as previsões médicas — que não lhe davam nem três meses de vida.
A poetisa da afro-brasilidade
No Rio, Conceição seguiu carreira como professora e lecionou na rede pública fluminense até aposentar-se em 2006.
A escrita começou a partir dos anos 1990, primeiro em contribuições para antologias, depois em obras solo. Junto de amigas escritoras como Esmeralda Ribeiro, Geni Guimarães e Miriam Alves, criou o projeto Cartas Negras, em que trocavam mensagens sobre suas vidas em uma espécie de debate escrito, retratando temas como solidão, machismo e racismo.
Foi também no início da década de 90 que seis de seus poemas foram incluídos no volume 13 da coletânea Cadernos Negros, publicação literária periódica que teve início em 1978 com o objetivo de veicular a cultura e a produção escrita afro-brasileira.
Em meio ao trabalho na docência, na literatura e em estudos teóricos, no ano de 1993 Conceição começou o curso de mestrado em Literatura Brasileira na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ), pelo qual defendeu a dissertação “Literatura Negra: uma poética da nossa afro brasilidade” três anos depois.
Além de mestre, Evaristo é doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com a tese “Poemas malungos, cânticos irmãos” (2011), na qual estuda as obras poéticas dos afro-brasileiros Nei Lopes e Edimilson de Almeida Pereira em confronto com a do angolano Agostinho Neto.
Em 2003 a escritora dá a luz ao seu primeiro romance, Ponciá Vicêncio, obra que narra a mudança de Ponciá do meio rural em que seus ancestrais foram escravizados para a cidade grande, onde se estabelece uma comunidade. No livro, a protagonista revela traços de ancestralidade e memória a partir de sua ligação com o avó, um ex-escravo que teve filhos libertos pela Lei do Ventre Livre mas ainda assim os viu serem vendidos.
Os textos, em que sempre estão presentes as pessoas marginalizadas, negras, pobres, mulheres, são resultado da observação de uma realidade brasileira que Conceição transpõe para suas personagens.
Assim, em 2006 publica seu segundo romance, "Becos da Memória", em que retrata o drama vivenciado por uma comunidade em processo de remoção. A figura feminina aparece como símbolo de resistência.
A poesia da professora mineira ganha visibilidade em 2008, quando lança "Poemas de recordação e outros movimentos". Em 2011, concebe o volume de contos "Insubmissas lágrimas de mulheres", trabalho em que versa, mais uma vez, sobre o universo das relações de gênero em um contexto social marcado por racismo e sexismo.
Poema Vozes-Mulheres
A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue e fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade.
(Poemas de recordação e outros movimentos, p. 10-11).
Com o dom das letras e o vasto arcabouço teórico, Conceição é uma enciclopédia de experiências que transforma a literatura a partir de suas escrevivências.
A curadora da Bienal Internacional do Livro do Ceará 2022 é convidada para dar palestras em universidades e escolas nacionais e internacionais, com uma obra estudada e lida pelo mundo afora, com romances, contos e poemas traduzidos para idiomas como o francês e o inglês.
Não à toa a escritora ganhou o Prêmio Jabuti em 2015, com "Olhos D'água", e quatro anos depois foi homenageada como Personalidade Literária.
Em 2017, sua vida e obra foram tema de exposição no Itaú Cultural, em São Paulo. No ano seguinte, recebeu o Prêmio de Literatura do Governo de Minas Gerais pelo conjunto de sua obra.
Em 2018, uma campanha com mais de 25 mil assinaturas foi mobilizada para que Evaristo fosse a primeira mulher negra a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras (ABL). A autora entrou na disputa em uma tentativa de descolonizar a literatura brasileira e expor a falta de representatividade negra e feminina na centenária academia.
O que seria um feito histórico se tornou mais um episódio-retrato da cultura brasileira. Por 22 votos a 1, o cineasta Cacá Diegues passou a ocupar a cadeira de número 7 da entidade.
Em entrevista, Conceição comentou: “Há esse imaginário que se faz da mulher negra que samba muito bem, dança, canta, cozinha, faz o sexo gostoso, cuida do corpo do outro, da casa da madame, dos filhos da madame. Mas reconhecer que as mulheres negras são intelectuais em vários campos do pensamento, o imaginário brasileiro, pelo racismo, não concebe”.
"Olá! Aqui é Karyne Lane, repórter do OP+. Te convido a deixar sua opinião sobre esse conteúdo lá embaixo, nos comentários :) até a próxima!"
Série vai explorar personagens - famosos e anônimos - para destacar histórias de vida