Por muito tempo, entendeu-se que o Brasil era desprovido de montanhas. Afinal, montanhas são corpos tão gigantescos que acumulam neve no topo, como a Cordilheira dos Himalaias ou a hermana Cordilheira dos Andes.
Pela internet e por alguns livros didáticos, a resposta à pergunta parece simples: Não. O Brasil não tem montanhas.
Acontece que tudo mudou em dezembro de 2022, quando o grupo de trabalho unindo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a União da Geomorfologia Brasileira (UGB) e o Serviço Geológico do Brasil
De acordo com a geógrafa Flávia Ingrid Gomes, professora no Instituto Federal do Ceará campus Quixadá (IFCE-Quixadá), parte da motivação para rever a classificação brasileira vem do fato da nomenclatura usada no País não ter correspondência internacional. “A palavra que se usava mais era serra. Aqui no Ceará, a gente usa muito maciço. É uma nomenclatura que não tem correspondente na literatura internacional”, explica.
Além disso, as definições existentes até então não conseguiam contemplar a diversidade geomorfológica nacional. Em geral, os relevos brasileiros eram definidos como planícies, planaltos e depressões.
As serras também entraram em classificações mais modernas, mas aí esbarrava-se na incoerência com os padrões internacionais — alguns países tinham formações que nós chamaríamos de serras, mas eles as chamavam de montanhas. E aí?
Desde 2019, geomorfólogos — aqueles que estudam as diferentes formas da superfície terrestre — de todo o Brasil uniram-se para resolver a questão. Foi assim que eles chegaram à conclusão de que existem montanhas brasileiras, sim, desde que seguissem critérios bem específicos.
"Internacionalmente é um ganho enorme, porque existem uma série de projetos e redes de colaboração internacional para áreas montanhosas", comenta Rosângela Botelho, geógrafa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e coordenadora do SBCR. Com o reconhecimento das montanhas brasileiras, integrar o País nessa rede de troca de conhecimento e tecnologias é mais palpável.
Rosângela também reforça que as áreas de montanhas estão mais sujeitas às ocorrências de movimentos de massa e de enxurradas pelos declives. "(Elas estão suscetíveis) até a desastres, né? É importante o Brasil reconhecer isso para, inclusive, poder cuidar dessas áreas e ter alguma especificidade na legislação sobre essas regiões", explica.
Ao mesmo tempo, o turismo ganha muito com a confirmação de um Brasil montanhoso. "Existem muitos montanhistas que vêm pra cá escalar uma série de picos, de serras... Mas não faz sentido se não tem montanha! Então, na verdade, pro turismo é muito interessante. O Rio de Janeiro, por exemplo, é o estado com o maior percentual de montanhas do Brasil. Isso é muito bom para eventos ligados ao montanhismo, isso tem um apelo, uma atração muito forte", afirma a coordenadora.
As montanhas devem seguir alguns critérios específicos para serem categorizadas como tal. O primeiro diz que montanhas são aquelas com amplitude altimétrica superior a 300 metros.
Nesse caso, vale lembrar que altitude é diferente de amplitude altimétrica. A primeira está relacionada ao nível do mar, enquanto a altimétrica é uma variação entre as altitudes do relevo. Ficou um pouco confuso? Não tem problema, exemplificamos:
Vale lembrar que essa é uma explicação bem simplificada, mas dá uma ideia geral de como as montanhas são medidas. Outro detalhe é que essa altimetria superior a 300 metros precisa ser verdadeira em todas as direções do relevo. Por exemplo:
É por esse motivo que, no Ceará, a Serra da Ibiapaba não é considerada uma montanha. Ainda que um dos lados tenha um declive acentuado e altitude suficiente, o outro tem uma base mais elevada, impedindo o cumprimento desse critério de altimetria ao redor do relevo.
Além disso, as montanhas precisam ter topos predominantemente aguçados, com cristas, ter declives e uma certa continuidade: “A forma é muito importante”, reforça a professora Flávia Ingrid. A primeira proposta do Sistema Brasileiro de Classificação do Relevo ainda está na fase de classificar como montanhas aquelas formações coletivas mais estudadas.
É o caso do ponto mais alto do Ceará, o Pico da Serra Branca, em Catunda (CE): “Precisa-se depois fazer estudos mais aprofundados para saber quais das nossas serra secas do interior cearense serão consideradas montanhas ou não. Porque, por exemplo, o nosso ponto mais elevado está em uma região bem isolada. Provavelmente por essas características será considerado montanha”, comenta.
Após mais esforços científicos, o mapa de montanhas no Brasil pode ser expandido ao identificar montanhas em estados pouco estudados atualmente. Até agora, o Rio de Janeiro detém o maior número de montanhas brasileiras, com cerca de 30% do total.
Boa parte dos chamados maciços devem ser reclassificados como montanhas, opina a geógrafa Flávia Ingrid. Enquanto mais pesquisas devem ser encaminhadas para análises aprofundadas de outras serras, é certeza de que o Maciço do Baturité, a Serra da Aratanha e a Serra da Meruoca são montanhas.
E a Chapada do Araripe? É montanha?
Como ressaltado pela geógrafa, a forma faz toda a diferença. É verdade que a Chapada do Araripe tem mais de 300 metros em comparação à base, mas ela não tem cristas. Ela tem um relevo tabular no topo, retirando-a da possível lista de relevos montanhosos nacionais. “(Esse topo tabular) é que temos de mais comum no Brasil. São os nossos relevos elevados sedimentares, as nossas chapadas”, explica Flávia Ingrid.
O motivo das montanhas do Brasil terem passado tanto tempo sem esse status é porque elas são muito, muito antigas. “Há muito tempo, na época do megacontinente Panótia (anterior à Pangeia), quando ele foi ser formado, eu tive choques de placas que formaram o megacontinente Gondwana”, conta a professora.
Esse megacontinente existiu por muito tempo, e o que hoje é território brasileiro estava localizado no Gondwana. Foi nesse período que o Brasil foi cortado, de nordeste a sudoeste, por uma imensa cordilheira “no estilo do Himalaia”: a Cadeia Brasiliana.
Nos milhões de anos seguintes, entre movimentações de supercontinentes e erosões outras, a Cadeira Brasiliana deixou de ser o que era; mas não sem deixar resquícios. As rochas permaneceram e, por movimentações tectônicas chamadas orogenéticas, formaram-se as atuais montanhas brasileiras.
Como a atividade tectônica não é especialmente intensa no Brasil, elas estão sujeitas à erosão sem continuar crescendo. É diferente dos Andes e dos Himalaias: ambos são dobramentos modernos, em pleno movimento.
É por isso que as montanhas do Brasil carecem da imensidão de outras bem conhecidas mundo afora. Enquanto os Andes e os Himalaias seguem crescendo anualmente, as montanhas brasileiras estão sujeitas às erosões sem possibilidade de reerguimento. É claro, sempre é possível que ocorra algum fenômeno geológico capaz de reativar o erguimento delas, mas nada do tipo deve ocorrer nos próximos milhares ou milhões de anos.
Por enquanto, as montanhas nacionais seguem como idosos resquícios de continentes gigantescos, antigos o suficiente para presenciar a evolução da fauna e flora brasileira. É um ótimo pensamento para se levar aos passeios pelos maciços e serras cearenses — ou melhor, montanhas cearenses.