Logo O POVO+
Viagem no tempo para desvendar a Serra da Capivara
Reportagem Seriada

Viagem no tempo para desvendar a Serra da Capivara

No primeiro episódio do especial Rastros Arqueológicos, explore a formação do Parque Nacional da Serra da Capivara (Sul do Piauí) desde o elevamento das primeiras rochas até o rascunho das primeiras pinturas rupestres dos americanos mais antigos do continente
Episódio 1

Viagem no tempo para desvendar a Serra da Capivara

No primeiro episódio do especial Rastros Arqueológicos, explore a formação do Parque Nacional da Serra da Capivara (Sul do Piauí) desde o elevamento das primeiras rochas até o rascunho das primeiras pinturas rupestres dos americanos mais antigos do continente
Episódio 1
Tipo Notícia Por

"Esta reportagem seriada venceu o 2º lugar do Prêmio IMPA de Jornalismo 2023, na categoria Divulgação Científica."

  

 

Especial Rastros Arqueológicos: O começo de tudo

Carnaval 2023. Eu (Catalina Leite) e o fotojornalista Fco Fontenele embarcamos na 9ª Excursão Patrimonial Parque Nacional Serra da Capivara, organizada pelo arqueólogo Igor Pedroza. Acompanhados de outros 28 cientistas, artistas, professores e curiosos, conhecemos apenas algumas das centenas de sítios arqueológicos da Serra da Capivara, detentora das datações mais antigas de presença humana nas Américas. 

Dessa viagem, resultou o especial Rastros Arqueológicos. Nela, você terá o gostinho de uma aventura pelo tempo, testemunhando o surgimento da Serra da Capivara como nunca a vimos, em relação intrínseca ao humano que escolheu ocupá-la. Depois, discutirá sobre como a arqueologia tem sido usada pela sociedade, além de desvendar o desenvolvimento regional socioeconômico do sul do Piauí graças ao turismo e à ciência.

Então, vai o convite: embarque conosco na nossa primeira parada, um cenário exuberante de rocha e imensidão.

 

 

Os cânions impuseram minha pequenez. Com meus meros um metro e sessenta e seis de altura e meus insignificantes vinte e três anos, foi perdida na imensidão alaranjada de arenito dos cânions da Serra Vermelha que recoloquei meu tempo de vida como um sopro.

É que diferente de mim, do fotojornalista Fco Fontenele e das outras 28 pessoas que partiram em uma excursão carnavalesca para o Parque Nacional da Serra da Capivara, os cânions levaram milhões de anos para serem formados. E existem como os vimos há milhares, presenciando a ocupação humana do Brasil quando esse pedaço de terra nem se chamava assim.

E a verdade é que os primeiros americanos só viveram e produziram como tal por causa do mundo ao redor deles. Por causa das rochas anciãs, da vegetação, dos animais... Responsáveis por dar contexto a um universo muito maior do que estamos acostumados a pensar.

 

 

 

Primeiro, vieram as rochas

Muito mais antiga que a bacia do Araripe no Ceará, o material que constitui a Serra da Capivara formou-se a partir de movimentos internos da Terra, sedimentação e erosão. A geógrafa Flávia Ingrid, geógrafa e professora no Instituto Federal do Ceará (IFCE - Quixadá), conta a história:

A princípio, tudo era embasamento cristalino, a parte mais basilar dos continentes e a que mais vemos ao viajarmos pelo sertão. O mega-continente Panótia começou a se partir e a força dessa divisão por milhões de anos contorceu a litosfera "Camada sólida externa do planeta Terra, funcionando como uma casca planetária." da região a ponto de deixá-la fina e rebaixada. Quando bem sucedido, esse esgarçamento provoca a ruptura continental (rift) e a formação de assoalho oceânico, mas não na Bacia da Parnaíba.

São Raimundo Nonato - PI  - 20/2/2023 Serra da Capivara - Sítio Joâo Pimenta (Fco Fontenele/OPOVO)(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE São Raimundo Nonato - PI - 20/2/2023 Serra da Capivara - Sítio Joâo Pimenta (Fco Fontenele/OPOVO)

Apesar de não ter sido rompido, o terreno rebaixado permitiu a chegada da água por meio da gravidade; e com ela, cascalhos e outros sedimentos. Os detritos foram se acumulando por milhões de anos e períodos geológicos distintos, passando por diferentes condições ambientais, até estarem nivelados com os arredores.

Imagine: em volta, embasamento cristalino duro, pesado. No centro, bacia sedimentar compactada, comparativamente mais leve. Foi quando o material sedimentar começou a ser erguido, em um processo de ajuste da elevação "Chamado de compensação isostática" da superfície terrestre.

Clique nas fotos para expandi-las.

 

 

É por isso que existem, no meio dos sertões piauienses de altitudes modestas, vastas paisagens serranas. No Parque Nacional da Serra da Capivara, são quatro: a própria Serra da Capivara, a Serra Talhada (em razão dos sulcos erosivos), a Serra Branca (pelo tipo de rocha que, ao desfazer, parece uma areia branca) e a Serra Vermelha (com sedimentos ricos em óxido de ferro).

Milhões de anos mais tarde, erosão e outros eventos externos modificaram as formas das rochas até o que vemos hoje — e o que viram preguiças gigantes, tatus gigantes e os primeiros homens da América.

 

 

Antes de pés, existiram patas e garras

Entre 380 e 359 milhões de anos atrás, na idade devoniana, o berço aquático da ainda-por-vir Serra da Capivara abrigou trilobitas, invertebrados marinhos que preenchiam os mares do período Paleozóico. Além deles, muitos outros seres deixaram rastros pelo chão.

São os icnofósseis, vestígios impressos nas rochas que evidenciam momentos de atividade de organismos, como rastros e perfurações. Nem sempre sabemos quais foram os organismos responsáveis pela produção dos icnofósseis, mas sim que existiram e viveram ativamente.

Milhões de anos à frente, no Quaternário — de 2,6 milhões de anos a 11 mil anos —, a paisagem marinha da Capivara já estava completamente substituída pelo clima tropical úmido. Das montanhas hoje expondo suas rochas germinou vegetação parecida com a floresta amazônica ou a mata atlântica. O clima era mais ameno, frio e seco.

Preguiça-gigante no Museu da Natureza, em Coronel José Dias (PI).(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Preguiça-gigante no Museu da Natureza, em Coronel José Dias (PI).

Isso facilitou a presença da megafauna. Eram gigantes, que pesavam em torno de uma tonelada ou mais, e triunfaram com a ampla disposição de alimento vegetal e animal. As preguiças gigantes tinham cerca de seis metros de comprimento, os tatus gigantes eram do tamanho de um fusca. Caminhavam por aí compartilhando espaço com proboscídeos, primos dos elefantes, e tigres-dente-de-sabre.

Ainda no Quaternário, dessa vez há 50 mil anos, data-se a presença mais antiga de humanos na Serra da Capivara. Apesar de não terem sido encontrados até o momento vestígios que indiquem a interação direta entre os humanos da Serra da Capivara e a megafauna, o paleontólogo Paulo Victor de Oliveira, professor e pesquisador da Universidade Federal do Piauí, em Picos (PI), opina que eles “certamente conviveram com alguns remanescentes da megafauna de mamíferos”. Afinal, muitas artes rupestres parecem indicar, em algumas interpretações, a caça de megafauna.

Dessa evolução e diversidade constante, chegaram os primeiros americanos. Quem sabe, admiramos as rochas da Serra da Capivara com o mesmo encanto que os primeiros humanos a pisarem ali. Os vales, os precipícios, os formatos, as texturas… Tudo o que vemos hoje está mais ou menos como há milhares de anos, quando os ancestrais acenderam fogueiras e, ainda mais tarde, usaram óxido de ferro para desenhar nos paredões.

 

 

Os animais da Serra da Capivara dos dias atuais

*As três primeiras fotos são do Acervo Fumdham. Clique nas fotos para expandi-las.


 

Finalmente, os humanos

Hoje em dia, pouco se reflete sobre o verdadeiro exercício que é ver uma imagem, idealizá-la e reproduzi-la, por vezes não literalmente, em uma superfície. Mas lá estavam eles, criando.

Por meio de artes de animais como macacos, tatus, felinos e até peixes e caranguejos, além de seres humanos em posições e situações diversas é que os arqueólogos começaram a entender quem foram e quando viveram esses povos americanos.

 

Dois tipos de artes rupestres encontradas na Serra da Capivara

Tradição Nordeste

Representada por imagens com ação, dinâmicas

Tradição Agreste

Representada por imagens estáticas, com borrões e “bonecões”

Eles eram nômades caçadores-coletores. E o que mais? O que mais as artes nos contaram sobre as culturas, as rotinas, os ritos?!

Bom. Essa resposta é bem mais complicada.

 

 

Vamos primeiro entender as metodologias de datação

As pinturas têm de 3,5 a 12 mil anos de idade e foram datadas com o método de carbono 14. Criada na década de 50, a técnica analisa a radiação que decai desde a da morte de corpos orgânicos. Com isso, é possível datar algo até 45 mil anos com mais certeza.

Depois disso, exige-se cautela. Afinal, o limite com o carbono 14 é de 60 a 70 mil anos. Mas para garantir confiabilidade, os laboratórios apresentam datações mais antigas como simplesmente acima de 45 mil anos.

A Serra da Capivara tem os mais antigos exemplares de arte rupestre das Américas, além de ser o local com maior quantidade dessas pinturas do mundo.

Outra metodologia utilizada é a termoluminescência, que passou a ser usada a partir dos anos 2000. Ela mede a radiação acumulada por minerais e, por isso, tecnicamente não teria limite na datação. No entanto, o arqueólogo Igor Pedroza destaca que há muitas variáveis influenciadoras, como tipo de amostra e capacidade de leitura dos equipamentos. “Alguns autores falam de um limite entre 100 mil e 500 mil anos. É uma amplitude muito alta mesmo”, explica.

Essa técnica, inclusive, fortalece a Teoria Transatlântica, pela qual o homem africano teria atravessado o Atlântico para chegar à América do Sul. Ela “compete” com a Teoria de Bering e explica como o Piauí tem datações de ocupação americana bem mais antigas que a América do Norte. Mas isso é assunto para o terceiro episódio desse especial.

São mais de 1,3 mil sítios arqueológicos pré-históricos, históricos e coloniais mapeados na Serra da Capivara, dos quais 204 estão abertos para visitação.


 

Nem tudo que é humano fossiliza

Fato é que vestígios de fogueiras e artes rupestres nos indicam a presença humana milenar, mas não guardam, necessariamente, o que foi a cultura e estilo de vida deles.

Tudo o que é sugerido pelos arqueólogos vem de um processo de relação de amostras e da comparação com outros achados, mas não dá para garantir cem por cento de que toda interpretação do significado das artes é a correta. Isso porque não temos mais acesso aos códigos, aos valores, às simbologias que esses grupos humanos construíram.

A pintura nomeada atualmente de "O beijo" é conhecida como a primeira cena de afeto humano do mundo.(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE A pintura nomeada atualmente de "O beijo" é conhecida como a primeira cena de afeto humano do mundo.

Podemos até ver, na parede, uma imagem que consideramos ser um beijo. Mas… Será mesmo? Será que são duas pessoas? Onde estão os braços delas? Será que pode ser algo mais?

Podemos ver, na parede, uma imagem de combate com animais enormes. “Ah!”, pensamos. “É algum animal da megafauna, certeza.” Certeza mesmo? O animal foi desenhado grande pelo tamanho dele ou pela importância dele?

A verdade é que as pinturas e gravuras da Serra da Capivara deveriam instigar mais perguntas que certezas. Nada é certo, o que não impede o exercício de se imaginar mil e uma possibilidades.

Gravuras (quando a forma é esculpida na rocha) com o tridígito. (Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Gravuras (quando a forma é esculpida na rocha) com o tridígito.

Outro exemplo é o tridígito. Um símbolo repetido diversas vezes em muitos murais e cujo sentido foi perdido no tempo. Pode-se supor, hipotetizar e até comparar com culturas que ainda usam imagens parecidas — mas nunca saberemos o real significado dela. É claro que podemos interpretar e imaginar, mas cientificamente é importante manter a cautela. 

Existe uma tendência de definir o que se desconhece como algo “ritualístico”, apesar de existir a possibilidade de ser algo simplesmente cotidiano. Nisso, entram muitas perguntas: será que o desenhar era uma tarefa restrita? Crianças não podiam desenhar? Eles poderiam desenhar para contar histórias, marcar o que conheciam ou competir espaço com outros grupos?

Quem eram os primeiros americanos?, você continuará perguntando. Talvez nunca saibamos completamente, mas a ciência continuará questionando e investigando o contexto de um passado recheado de vida e crescimento.

 

 

O que você vê?

Aprecie as artes fotografadas pelo fotojornalista Fco Fontenele e interprete: o que você acha que essas pinturas representam? Que tal compartilhar nos comentários do final da reportagem suas observações?

 

 

 

Diários de Bordo

Caso você queira conferir reflexões e comentários que tive durante a viagem e não chegaram a entrar nas reportagens! Clique nas imagens para ler os diários de bordo da 9ª Excursão Patrimonial Parque Nacional da Serra da Capivara:

 

 

No próximo episódio…

A arqueologia abriu duas portas para o sul do Piauí: a da fresta para o passado e a do desenvolvimento futuro. Niède Guidon, pioneira de pesquisas na Serra da Capivara, sempre esteve confiante de que os três municípios acolhedores do parque nacional encontrariam sucesso no turismo. E parece que a visão da arqueóloga tem dado frutos.

O segundo episódio do especial Rastros Arqueológicos, a ser publicado no dia 19 de abril, explorará o desenvolvimento regional garantido pelo Parque Nacional Serra da Capivara, envolvendo economia, cultura, crescimento profissional e, também, disputas por território.


Expediente

  • Edição O POVO+ Fátima Sudário e Regina Ribeiro
  • Edição de Design Cristiane Frota
  • Identidade visual Jansen Lucas
  • Recursos digitais Davi Jucimon, Michele Medeiros e Rafael Arruda
  • Fotografia e Audiovisual FCO Fontenele
  • Reportagem Catalina Leite
O que você achou desse conteúdo?

Rastros Arqueológicos

Série de reportagens aborda descobertas arqueológicas pelo olhar científico, cultural e de desenvolvimento socioeconômico pelo Ceará, Nordeste, Brasil e Mundo.