Logo O POVO+
Mais de 600 mil cearenses foram beneficiados com cisternas
Reportagem Especial

Mais de 600 mil cearenses foram beneficiados com cisternas

Iniciativa federal completa duas décadas neste ano. Projeto foi retomado após ser paralisado durante gestão presidencial de Jair Bolsonaro

Mais de 600 mil cearenses foram beneficiados com cisternas

Iniciativa federal completa duas décadas neste ano. Projeto foi retomado após ser paralisado durante gestão presidencial de Jair Bolsonaro
Tipo Notícia Por

 

 

"Dei tanto pulo quando disseram assim: 'O teu papel tá lá pra tu fazer a cisterna' (...) Minha vida melhorou demais." A fala de Maria Ausenira, 57, moradora do Rato de Baixo, em Maranguape, mostra como sertanejos e agricultores olham para esses reservatórios que estocam água da chuva: feito riqueza.

Por duas décadas (2003-2023), o Governo Federal tem atuado para construir equipamentos desses no sertão brasileiro, em outras áreas do Nordeste e na Amazônia, por meio do Programa Cisternas, que foi retomado neste ano após ser paralisado na gestão anterior. Durante a existência do projeto, somente via Secretaria do Desenvolvimento Agrário (SDA) foram construídas 135.281 dessas tecnologias no Ceará.

Vista aérea de Itapipoca, município que já recebeu a maior quantidade de cisternas no Ceará (Foto: Iana Soares )
Foto: Iana Soares Vista aérea de Itapipoca, município que já recebeu a maior quantidade de cisternas no Ceará

Ao todo, essas construções beneficiaram 676.405 cearenses que, frente a intensos períodos de estiagem, precisavam percorrer longos quilômetros para encontrar água. O município de Itapipoca, distante 139,9 km de Fortaleza, foi o que mais teve cisternas construídas por meio da pasta em duas décadas: 10.352.

A SDA é uma das instituições que recebe recursos do programa, por meio do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS). Também recebe a verba entidades como a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), via Programa Um Milhão de Cisternas (P1MCE).

A ASA foi quem popularizou a cisterna de placa no semiárido, substituindo as antigas construções feitas de alvenaria. Conforme dados do órgão, já foram construídas quase 100 mil tecnologias do tipo no Ceará. Ou seja, somadas aos índices da SDA, são aproximadamente 300 mil equipamentos no Estado.

Proposta de uso é simples. Quando chove, essas "caixas grandes" recebem a água que escorre das telhas das casas e estocam o recurso para que ele seja utilizado nos dias em que "o céu não chora". Equipamentos para consumo têm capacidade de armazenar até 16 mil litros. Há também aqueles maiores, de até 52 mil litros, que são construídos em escolas ou voltados à produção agrícola.

Para Erinaldo Lima, coordenador da ASA no Ceará, essa tecnologia gerou emprego e sustentabilidade, dentre outras coisas. "Os produtos que estão chegando para a merenda escolar são frutos das cisternas (...) (Garantiu) que no final do mês (as famílias) vão ter uma renda mínima para sobreviver, mas garantiu também a segurança alimentar e nutricional dessas famílias."

"A gente percebe também a qualidade de vida, a saúde das pessoas com a chegada da água potável em sua casa, com a chegada das cisternas. Essa cisterna (...) Melhorou bastante a vida das pessoas que estão lá no sertão, que estão no semiárido. De forma geral houve um avanço extraordinário, houve mais avanço do que retrocesso", explica.

Maria Freire, moradora do interior de Maranguape, viu a rotina mudar para melhor quando foi contemplada com a cisterna.    (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Maria Freire, moradora do interior de Maranguape, viu a rotina mudar para melhor quando foi contemplada com a cisterna.

Na casa de Maria Freire, de 76 anos, a chegada da cisterna há cerca de uma década trouxe liberdade e autonomia. Moradora do Agrovila, em Maranguape, a aposentada ainda lembra da sensação de precisar ir buscar água em uma cacimba distante de casa, sob o sol quente. Voltava carregando um balde na cabeça ou no ombro, com o que conseguisse trazer do recurso para atender às necessidades da família.

Hoje, o equipamento em seu quintal é motivo para ostentação. Instalada em meio a uma parte de mato seco, a cisterna é o oposto de tudo que não tem vida. Isso porque ao seu redor, desabrocham as plantas que a aposentada cultiva para consumo, como pés de pimenta e pinhão, e próximo circulam os mais de 20 animais que ela cria, como gatos, cachorros, galinha, um porco e um pequeno bezerro. 

É o reservatório que permite que todos ali, incluindo vegetação e bichos, tenham acesso à água, tirada por meio de uma bomba. Ao comparar a rotina exaustiva que tinha antes do equipamento com a vida de agora, Maria aperta os olhos no rosto enrugado de peleja e diz: "Me sinto muito feliz. Já passei por muitas dificuldades e hoje graças a Deus não estou mais passando".

No quintal de Francisco Everardo, 51, há um aspecto semelhante. Antes de receber a cisterna o agricultor buscava água em um açude a um quilômetro de sua casa, que fica na Fazenda Lajedo, também em Maranguape. Carregava baldes no ombro, em uma bicicleta ou até mesmo no lombo de um jumento.

O equipamento, construído em seu lar há dez anos, permite que ele consiga não apenas fazer as necessidades básicas, como tomar banho ou escovar os dentes, mas também cuidar dos bichos de terreiro que cria e das plantações, como o pé de acerola que, graças à água, já desabrocha vívido.

A tecnologia também possibilita que ele produza e lhe dá autonomia. "Eu carregava um galão d'agua de madrugada e quando eu voltava do serviço eu ia buscar outro. Agora é só ir ali (no quintal) e pegar água na cisterna", diz o agricultor, que hoje ganhou tempo até para jogar a sinuca instalada em sua área. 

 Francisco Everardo, contemplado com cisterna no município de Maranguape (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Francisco Everardo, contemplado com cisterna no município de Maranguape

 

 

Ceará vai receber mais de dez mil cisternas após paralisação 

Há pelo menos dois anos o sentimento de "amparo" das famílias que necessitam das cisternas deu lugar à preocupação porque o programa sofreu uma drástica redução da capacidade. Foram entregues apenas 4,3 mil reservatórios em 2021 e 5,9 mil em 2022, conforme dados do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS). 

De acordo com pasta, nos últimos dois anos a iniciativa teve a pior execução da sua história, ainda que programa viesse sendo descontinuado desde 2017. Na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro, o acordo de cooperação entre o Governo Federal e entidades foi paralisado, sendo executados apenas contratos antigos.

 Distribuição de cisternas no Ceará deve contemplar cerca de 10 mil novos moradores (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Distribuição de cisternas no Ceará deve contemplar cerca de 10 mil novos moradores

Para 2023, a previsão era de que somente R$ 2 milhões fossem aplicados na iniciativa. No entanto, o MDS retomou o Programa Cisternas por meio da reformulação de dois acordos. Uma das tratativas foi com o Programa Um Milhão de Cisternas (AP1MC), da ASA, iniciativa que atua desde o fim dos anos 1990 e que já ganhou reconhecimentos como o Prémio Sementes 2009, da Organização das Nações Unidas (ONU). 

Outra negociação retomada foi com a Fundação Banco do Brasil e com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Ambas negociatas possibilitaram que o Governo Federal recuperasse R$ 56 milhões que "seriam perdidos por problemas de gestão do governo anterior".

Segundo o coordenador Erinaldo Lima, a ausência de recursos federais teve impacto negativo: "Gerou uma demanda muito grande para os municípios, para as famílias cearenses. Porque praticamente as nossas organizações não executaram, o que executaram foi o que ficou ainda de recurso do governo Dilma".

Leia mais: Mais de mil pessoas no Ceará passam a ter acesso a água tratada

Além disso, o Governo Federal lançou neste ano dois editais para a contratação de cisternas no Semiárido e na Amazônia, disponibilizando ao todo R$ 500 milhões para a construção das tecnologias. Só o Ceará deve receber dez mil equipamentos para consumo e 850 para produção de alimentos.

Maria Ausenira, moradora do interior de Maranguape, e vice-presidente do Sindicato dos Agricultores(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Maria Ausenira, moradora do interior de Maranguape, e vice-presidente do Sindicato dos Agricultores

Anúncio trouxe esperança para Maria Ausenira, que atua como vice-presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Maranguape. Ela ainda lembra a sensação de felicidade de quando, há dez anos, recebeu a cisterna da sua casa.

A representante diz atuar fazendo a ligação entre as pessoas que precisam de cisternas e os entes públicos. Ausenira lembra que, antes de ter o reservatório, enfrentava filas só para pegar água do rio, tendo muitas vezes que cavar terra para encontrar o recurso. 

"(Nos últimos anos) Ficamos esperando e nada, não tem mais repostas (...) Promessas e mais promessas, e não chega mais onde a gente desejava (...) Depois que a cisterna chegou aqui foi muito bom. Uma alegria imensa, mas para aqueles que não receberam fica a desejar."

Questionada sobre a retomada do programa, ela afirma: "Eu até me arrepio. É o que a gente sonha e eu fico feliz".

 

 

Programa Cisternas

 


 

Papel de entes e organizações na garantia da segurança hídrica

Programa é desempenhado e fiscalizado por meio de diversos agentes e entes públicos. No Ceará, a Secretaria do Desenvolvimento Agrário do Estado (SDA) usa, além da verba encaminhada pelo Governo Federal, recursos referentes à contrapartida, do Tesouro e do Fundo Estadual de Combate à Pobreza (Fecop). Iniciativa atende populares inscritos no Cadastro Único.

Para garantir o uso correto e consciente das tecnologias, beneficiários são capacitados por meio de um curso de Gestão de Recursos Hídricos (GRH). Durante oficinas, eles aprendem dentre outras coisas a como manusear as cisternas construídas, os cuidados e a limpeza com o equipamento.

Depois da construção das cisternas, os técnicos de campo consolidam as informações de cada família beneficiada em um Termo de Recebimento e anotam registros de controle, como a numeração do equipamento e as coordenadas geográficas.

Mesmo com o acompanhamento, é possível que as tecnologias sejam alvo de irregularidades. O Ministério Público do Ceará (MPCE) é uma das entidades do Estado que podem receber denúncias sobre os equipamento, mas somente quando as cisternas contam com verba estadual.

Conforme órgão ministerial, entre janeiro de 2018 a outubro de 2023 foram registradas 12 denúncias em relação à entrega de cisternas no Ceará. Dentre as reclamações feitas, apenas uma diz respeito a vendas irregulares de cisternas, sendo o restante cobranças de quem ainda não recebeu o equipamento. 

"É muito importante que tenha as coordenadas geográficas da tecnologia social de acesso a água para permitir o rastreamento desse bem (...) E ter todas as informações necessárias para o acesso a essa tecnologia", aponta o promotor de Justiça José Silderlandio do Nascimento.

"A atuação do MPCE em relação à garantia da segurança hídrica da população se dá por meio da judicialização de medidas contra o município ou contra o Estado para que se busque garantir segurança hídrica à população rural, no âmbito das respectivas competências federativas",  afirma o representante, que também coordena o Centro de Apoio Operacional da Defesa do Patrimônio Público (CAODPP) do órgão.

Já a SDA informa que tem conhecimento de uma denúncia referente ao programa, referente à entrega de cisternas de polietileno, cuja instalação foi suspensa em 2018. "Ressaltamos que as cisternas de polietileno não fazem mais parte da ação desta secretaria. Atuamos com cisternas de placas que tem instrução operacional publicada pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS)", destacou.

 

 

Demanda popular: mais de 160 mil famílias cearenses esperam pelas cisternas

Embora já beneficie milhares de pessoas, o programa ainda tem uma alta demanda no Ceará. De acordo com a Secretaria do Desenvolvimento Agrário (SDA), 161.862 famílias solicitaram a tecnologia e ainda aguardam o dia em que elas serão construídas em suas casas.

Maria Lúcia, 58, moradora do Agrovila, em Maranguape, aguarda há pelo menos dez anos para receber o equipamento pelo Governo Federal. Ela tem água encanada na residência, mas para beber precisa ir buscar o recurso potável na casa da irmã, que é vizinha e tem uma cisterna. 

"A gente se sente quase humilhada, né? Porque os outros têm, os vizinhos da gente (...) Eu fiz meu cadastro, me inscrevi e não ganhei, não sei por qual motivo", desabafa a agricultora.

Maria Lucia, moradora do interior de Maranguape ainda aguarda o benefício (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Maria Lucia, moradora do interior de Maranguape ainda aguarda o benefício

Para assistir à população que ainda precisa desses equipamentos, algumas instituições atuam para auxiliar a demanda do povo mais vulnerável. Dentre elas está a Cáritas Regional Ceará, uma das entidades sem fins lucrativos credenciadas pelo MDS para executar o programa.

Conforme Maria Glória Carvalho, Secretária Regional da Cáritas, a instituição tem uma ferramenta que possibilita levantar as demandas das comunidades e, em seguida, levá-las para serem discutidas em "reuniões para negociações com os poderes públicos e outros apoiadores".

"Dessa forma, temos dado muitos passos para o cumprimento da Missão da Cáritas, que é defender e promover toda forma de vida, participando da construção solidária da sociedade do Bem Viver, sinal do Reino de Deus, junto com as pessoas em situação de vulnerabilidade e exclusão social", destaca. 

Assim como o sentimento de alegria dos contemplados, a urgência daqueles que ainda não têm o equipamento também é percebida. "Eu quero minha cisterna viu?", completa Maria Lúcia.

O que você achou desse conteúdo?