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"As mudanças climáticas já são realidade": secas no AM serão mais comuns
Reportagem Especial

"As mudanças climáticas já são realidade": secas no AM serão mais comuns

Além do El Niño e da anomalia no Atlântico Tropical Norte, as crescentes queimadas e desmatamentos impulsionam eventos extremos no Amazonas. Mais de 600 mil pessoas foram afetadas pela seca

"As mudanças climáticas já são realidade": secas no AM serão mais comuns

Além do El Niño e da anomalia no Atlântico Tropical Norte, as crescentes queimadas e desmatamentos impulsionam eventos extremos no Amazonas. Mais de 600 mil pessoas foram afetadas pela seca
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O Rio Negro volta a subir, mas se engana quem acredita que esta é a solução para a maior seca da Amazônia no último século. Após um mês de seca afetando municípios de todo o Amazonas e se espalhando pela Amazônia internacional, a esperança é que o período de chuva iniciado em novembro seja suficiente para encher as bacias e recuperar a altura média dos rios amazônicos. No entanto, é bem provável que eventos extremos como os vividos em 2023 se repitam, caso o desmatamento e as queimadas na floresta continuem indiscriminadamente.

 

Sobre o Rio Negro

O Rio Negro nasce na Colômbia e desce perpassando a Venezuela até chegar ao Brasil, banhando inúmeros municípios ribeirinhos amazonenses antes de chegar à capital, Manaus, e então deparar-se com o rio Solimões, no Encontro das Águas, e formar o rio Amazonas.

 

Os amazônidas conhecem a seca. Ela é esperada especialmente nos meses de agosto e setembro, os mais quentes do ano na região e com os menores registros da altura dos rios. Como pulmões, os rios amazônicos inspiram e expiram, controlados pelas águas retidas nas cabeceiras após os períodos chuvosos (de novembro a abril).

Dois meses depois de as chuvas começarem, a água doce encorpa o flumen, subindo, em geral, dez metros. A partir de maio, o rio vai descendo, para em agosto e setembro, ápice do calor e umidade, ele ter perdido os dez metros de água acumulada.

 

 

Em outubro deste ano, porém, a estiagem foi além do esperado. De acordo com o Porto de Manaus, o Rio Negro marcou apenas 12,7 metros em outubro de 2023, superando a menor marca já registrada, em 2010, quando o rio alcançou altura de 13,6 m. Essa é a pior estiagem em 120 anos para o Rio Negro.

Em média, o nível do Rio Negro considerado “normal” seria de 17,85 metros. Assim, o rio está cinco metros abaixo do esperado e quase um metro abaixo da última maior seca, em 2010.

 

Nível do Rio Negro (1902 - 2023)

Em 26 de outubro de 2023 o nível chegou a 12,7 m. O gráfico demonstra como o valor registrado no último mês se compara aos menores registros anuais desde 1902. Utilizamos dados anuais e diários do Porto de Manaus.

 

“O nível da água no Rio Negro é monitorado diariamente desde 1902. O pulso de inundação medido em Manaus resulta da soma das chuvas em uma imensa área que corresponde à bacia que inclui os rios Negro, Solimões e seus afluentes. Juntos, esses rios despejam cerca de 18% de toda a água doce que chega aos oceanos”, explica Maria Teresa Piedade, coordenadora do grupo de pesquisa Ecologia, Monitoramento e Uso Sustentável de Áreas Úmidas (Maua), do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). “Com base nessas medidas podemos afirmar que este ano ocorreu a seca mais intensa desde o início das medições.”

 

Nível diário do Rio Negro no segundo semestre de 2023

O gráfico apresenta os níveis diários do Rio Negro registrados no Porto de Manaus até chegar à marca histórica de 12,7 m, em 26/10/2023, depois de 14 dias em níveis inferiores a 14 m. Apenas em 1963 e em 2010 os menores níveis anuais registrados foram inferiores a 14 m.

 

 

O que causou a maior seca do Rio Negro em 120 anos?

 

O ano de 2023 já concorre como o mais quente da história do planeta, quebrando recordes em julho e, logo em seguida, em setembro. Mundialmente, as mudanças climáticas influenciam o cenário, enquanto nacionalmente o El Niño impulsiona ondas de calor. A anomalia de temperatura das águas do Atlântico Tropical Norte (Modo Meridional do Atlântico ou MMA), uma das maiores já registradas, também é fator preocupante por impactar a formação de nuvens de chuva sobre a Amazônia. Esses eventos foram intensificados pelo aumento do desmatamento e das queimadas no bioma nos últimos anos.

Apesar de 2023 ter apresentado queda no desmatamento no Amazonas em relação aos anos anteriores, o estado ainda vem de uma série crescente de degradação. Em 2022, a área desmatada acumulada foi de 274.627 hectares, dos quais 85% foram desmatados nos meses de janeiro a agosto.

 

Alertas de desmatamento por ano no Amazonas e em Manaus

Ao visualizar o acumulado anual em alertas de desmatamento entre janeiro e agosto dos últimos anos fica evidente que o ano de 2022 representa um crescimento expressivo do desmatamento na região que começou entre 2019 e 2020. O ano de 2023, por outro lado, representou um valor significativamente menor, cerca de 29% do total queimado em 2022 em igual período (janeiro-agosto).

 

A consequência do desmatamento, explica a ecóloga Aline Lopes, pesquisadora do Maua/Inpa, é a redução da evapotranspiração, ou seja, a geração de vapor de água para a atmosfera das árvores. Como há menos árvores para gerar vapor, a água não é captada pela atmosfera, prejudicando a formação de nuvens. Isso afeta negativamente o regime de chuvas e aumenta as temperaturas.

“Se continuar com esse desmatamento, o que vai acontecer é que os eventos extremos vão ser mais comuns; tanto a cheia, quanto a seca. As mudanças climáticas já são realidade”, ressalta.

Considerando as temperaturas médias entre 2012 e 2022, o mês de outubro de 2023 no Amazonas foi 1,1ºC mais quente que a média máxima para o mesmo mês. Enquanto a máxima entre 2012 e 2022 foi de 39,4ºC, em 2023 o mês atingiu 40,5ºC. Os dados são do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet).

A média de precipitação, por outro lado, foi inferior: se em outubro o estado tende a precipitar 97 mm, em 2023 choveu apenas 62,29 mm (uma diferença de 35,8 pontos percentuais).

 

Temperatura, chuvas e umidade entre julho e outubro no estado do Amazonas

Comparamos os indicadores de temperatura máxima diária, umidade relativa do ar e volume de chuvas por mês em 2023 com a média anual dos 10 anos anteriores (2012-2022). O gráfico compila a média diária de todas as estações automáticas do Inmet no estado do Amazonas.

Os registros máximos de temperatura em 2023 se destacam, superando a média anterior em todos os meses do segundo semestre. O volume de chuvas em outubro de 2023 também se destaca, menos de 64% da média anual entre 2012 e 2022. Clique nos botões para navegar entre as três categorias analisadas.

 

Em sessão no Senado, o coordenador-geral de Ciências da Terra do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) Gilvan Sampaio divulgou que o sudoeste da Amazônia voltará a receber chuvas a partir de novembro, mas a precipitação ficará abaixo da média por influência do El Niño e do MMA.

A perspectiva é que a atuação do El Niño ganhe força até dezembro e intensifique o déficit de chuva sobre o leste e o norte da Amazônia e no norte do Nordeste. Em Rondônia, por exemplo, a perspectiva de chuvas abaixo da média preocupa pela seca no rio Madeira, que registrou vazões naturais 51% abaixo da média em Porto Velho (RO) no mês de outubro. A bacia do rio Madeira contribui para a formação do rio Amazonas.

A mesma tendência de altas temperaturas e baixas precipitações se repete em Manaus. No entanto, a capital apresenta outra característica alarmante: a umidade relativa do ar.

Enquanto o Amazonas registrou a mesma média de umidade do ar em relação ao período analisado, Manaus ficou abaixo do esperado. É importante lembrar que a região amazônica é caracterizada por ser bem úmida; entre 2012 e 2022, a média para outubro foi de 68,42% de umidade relativa do ar, enquanto em 2023 foi de 61,23% (diferença de 7,19 pontos percentuais). A umidade esteve abaixo da média desde julho, com tendência de queda.

 

Temperatura, chuvas e umidade entre julho e outubro na cidade de Manaus

Quando filtramos os dados para considerar apenas a estação automática em Manaus (A101) a análise comparativa entre 2023 e a média 2012-2022 demonstra o quão diferente o segundo semestre deste ano tem sido. Em todos os meses analisados (jul-out), este ano representa os maiores registros de temperatura máxima e os menores registros em chuva acumulada e umidade relativa do ar na cidade.

 

A baixa umidade está relacionada com a persistência das queimadas, majoritariamente intencionais. Além da capital, municípios da região metropolitana e sul ficaram cobertos por fumaça desde agosto. A qualidade do ar foi classificada como altamente nociva para pessoas com problemas respiratórios e em tratamento das sequelas da Covid-19, de acordo com o Selva App, da Escola Superior de Tecnologia da Universidade do Estado do Amazonas (EST/UEA).

Considerando o período de janeiro a setembro desde 1985, o ano de 2023 destaca-se como o de maior área queimada na história. Foram 696.509 hectares queimados em dez meses. Ao incluir os meses de outubro a dezembro no cálculo, 2023 é o quarto com maior área queimada. Analisando apenas o mês de setembro, este ano só não foi pior que o de 2022.

 

Área queimada no Amazonas por ano (1985 a 2022)

O gráfico compila a série histórica de área queimada no estado do Amazonas registrada pela plataforma MapBiomas Fogo, entre 1985 e 2022, com dados de 2023 disponibilizados pelo Monitor do Fogo (também MapBiomas).

Ao observar a área queimada a cada ano apenas no mês de setembro, os registros em 2022 superam 2023 como os maiores da série histórica. Foram cerca de 380 mil hectares queimadas em 2022 e 313 mil em 2023. Em seguida aparecem os registros de setembro de 2019, 2005 e 2015.

 

Como o ano não acabou, a melhor comparação da série histórica é a de janeiro a setembro. Analisando a tendência de área queimada dos outros anos, outubro a dezembro normalmente registram queda nas queimadas. Por isso, com o acúmulo de possíveis áreas queimadas até dezembro, 2023 pode vir a ser o pior de toda a série histórica.

 

Evolução mensal de área queimada em 2023 comparada com a média dos últimos 10 anos

Para observar como a evolução mensal da área queimada no estado do Amazonas em 2023 se difere da série histórica, o gráfico compila a média anual registrada pela plataforma MapBiomas Fogo entre 2012 e 2022 com dados de 2023 disponibilizados pelo Monitor do Fogo.

 

 

Os impactos da seca

 

As principais vias de acesso a muitas comunidades e cidades na Amazônia são os rios; para chegar à Belém (PA) partindo de Manaus (AM), por exemplo, a única rota possível além da aérea envolve a travessia por balsa. “Mais de 60% das populações humanas rurais da Amazônia Central e ocidental habitam as margens dos rios. Essas populações sofrem com cheias extremas pela perda de lavouras e animais de criação. Entretanto, nas cheias extremas os moradores podem se deslocar para porções mais altas do relevo ou para as cidades e comunidades próximas”, comenta Maria Teresa.

Nas secas, por outro lado, as comunidades ribeirinhas e os povos indígenas são diretamente afligidos pela escassez de alimentos e de água potável, já que o sustento deles vem da pesca e da agricultura. Ao mesmo tempo, eles ficam isolados, impedindo a chegada de alimentos vindos de outras regiões e o acesso a serviços básicos de saúde e de educação. “Além disso, a degradação das florestas favorece incêndios que, além de comprometerem a biodiversidade e os serviços ecossistêmicos, comprometem a qualidade do ar, afetando a saúde humana”, reforça a pesquisadora. São mais de 600 mil pessoas afetadas.

Já se passou um mês que o Polo Industrial de Manaus não recebe nenhum navio cargueiro. À Rede Amazônica, o diretor responsável pelos navios que transportam cargas para Manaus Luis Resano explicou que o porto recebe de 14 a 15 navios mensalmente, o que representaria um fluxo de entrada e saída de 15 mil contêineres.

Concomitantemente, a alta mortalidade de espécies aquáticas assusta. No lago de Tefé (AM), mais de 140 botos vermelhos e tucuxis morreram em uma semana. Esses mamíferos aquáticos em perigo de extinção, assim como os peixes-bois, têm taxa de natalidade baixa, com gestações de dez a 11 meses para um filhote, que acompanha a mãe por muitos anos antes de ficar independente.

A mortalidade ocorre por causa do aumento da temperatura da água. Em Tefé, a água ultrapassou os 39ºC. Por consequência, ocorre um fenômeno chamado anoxia, quando falta oxigênio na água e os animais morrem asfixiados, como ocorreu com populações de peixes. “A redução dos habitats aquáticos disponíveis e da disponibilidade de alimentos, e as condições de água mais quentes e estagnadas podem levar ao declínio populacional e até mesmo à extinção de muitas espécies”, descreve.

Tefé (AM) 30/09/2023 - Uma pesquisadora fazem medição e coleta de tecidos de botos mortos em lago no município de Tefé, no Amazonas. Para o ICMBio, há indícios de que a seca prolongada e a temperatura elevada na região possa ter causado as mortes dos animais Foto: MIGUEL MONTEIRO/INSTITUTO MAMIRAUÁ (Foto: MIGUEL MONTEIRO/INSTITUTO MAMIRA)
Foto: MIGUEL MONTEIRO/INSTITUTO MAMIRA Tefé (AM) 30/09/2023 - Uma pesquisadora fazem medição e coleta de tecidos de botos mortos em lago no município de Tefé, no Amazonas. Para o ICMBio, há indícios de que a seca prolongada e a temperatura elevada na região possa ter causado as mortes dos animais Foto: MIGUEL MONTEIRO/INSTITUTO MAMIRAUÁ

Mesmo que as chuvas encham os rios novamente, o real cenário dessas espécies ainda será descoberto. “Espécies como os botos e peixes-bois têm baixa capacidade reprodutiva, então irão se recuperar lentamente. Outros peixes põem muitos ovos, podem até se recuperar mais rápido, mas vai depender dos ecossistemas”, analisa o cientista florestal Jochen Schöngart, pesquisador titular do Maua/Inpa.

Os pesquisadores alertam que se o aquecimento global aumentar — em conjunto com os índices de desmatamento e queimadas a nível regional — secas como a de 2023 e enchentes drásticas serão cada vez mais comuns. Jochen pontua que a maior cheia da história do Amazonas ocorreu em junho de 2021, quando o Rio Negro atingiu 30,02 metros: são 17,3 m de diferença com a atual seca. “Para as pessoas terem noção, é o tamanho de um prédio de cinco andares”, compara.

Essa oscilação de amplitude (como se chama a diferença da cheia com a seca) está aumentando cada vez mais. Em geral, a amplitude do nível do rio seria de dez metros, mas nos últimos 30 anos foi de 11,5 m. “É um aumento de 1,50 metro… Lembrando que estamos falando da maior hidrobacia de água doce do mundo!”

Enquanto os pesquisadores já têm ferramentas bem calibradas para a previsão de cheias, com três a quatro meses de antecedência, as secas são mais difíceis de serem previstas. Elas são mais complexas, porque além de considerar fatores como o El Niño, também devem ser incluídos nos modelos matemáticos as anomalias no Pacífico Equatorial (que influencia a precipitação no Amazonas) e no Atlântico Tropical (influencia o nível de água).

“Em 120 anos de registros, as duas maiores secas e as quatro maiores cheias foram todas no século XXI: as secas em 2010 e 2023 e as cheias em 2021, 2012, 2009 e 2002”, cita Jochen.

É um fato: as mudanças climáticas já estão aqui. Para enfrentá-las, os governos devem focar em estratégias de mitigação, de adaptação e de prevenção. “A ciência precisa ser mais ouvida pelos políticos”, comenta o pesquisador, que defende a integração de conhecimento entre as instituições que trabalham com previsões de seca. “Isso vai trazer complexidade de impactos que as políticas públicas não estão preparadas para enfrentar atualmente”, descreve.

 

 

Metodologia

Para este material foram utilizados dados relacionados à Temperatura máxima diária, umidade relativa do ar e volume de chuvas diários das estações automáticas do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) localizadas no estado do Amazonas, a série histórica do nível do Rio Negro registrada e disponibilizada pelo Porto de Manaus e índices de desmatamento e queimadas das plataformas MapBiomas Alerta e MapBiomas Monitor do Fogo.

Para garantir a transparência e a reprodutibilidade desta e de outras reportagens guiadas por dados, O POVO+ mantém uma página no Github na qual periodicamente são publicados códigos, metodologias, visualizações e bases de dados desenvolvidas.

 


Ponto de vista

O Brasil seca com a Amazônia

por Catalina Leite*

Nascida em Belém (PA) e criada em Manaus (AM), passei 18 anos sem imaginar que o simples fato de chover seria manchete de jornal. Somente quando cheguei ao Ceará entendi que nem todos têm a mesma relação com chuva, e que a seca não é vivida da mesma forma em todos os estados. Na minha vida amazônida, a água sempre foi abundante: cresci banhada por igarapés e cachoeiras, dormi embalada por temporais de verão com trovões estrondosos. Mesmo nos períodos mais quentes e com poucas chuvas, respirei o ar úmido e acordei de cochilos grudada em suor.

Foto tirada pela minha mãe na Praia do Lago Tupé (Manaus), em 2009, quando eu tinha 10 anos.(Foto: Arquivo Pessoal / Aquófilos)
Foto: Arquivo Pessoal / Aquófilos Foto tirada pela minha mãe na Praia do Lago Tupé (Manaus), em 2009, quando eu tinha 10 anos.

Agora tenho todas essas memórias rasgadas pelas notícias da seca, do desmatamento e das queimadas. As imagens do Rio Negro vazante não remetem ao banho divertido, alternando entre o quente da superfície molhada e o congelante da profundidade escura. Os corpos de botos mortos mancham lembranças dos mesmos animais brincalhões flagrados no horizonte em passeios de canoa, exibindo as cabeças rosas para respirar e soltar o ar. Os peixes flutuando em montes, asfixiados, amargam meu paladar.

Por outro lado, resgato vivências de prelúdio ao enfrentado por milhares de amazônidas nos últimos meses. Lembro do dia que amanheci em uma Manaus coberta por fumaça. Pensava que era névoa — “Que lindo!”, achei, e entrei no carro à caminho da escola admirando aquele fenômeno anormal. Quando abri a janela, o cheiro de fumo e a tosse desfizeram minhas expectativas hollywoodianas. Era fumaça mesmo, daquela de arder os olhos. Foi a primeira vez que ouvi, nos noticiários, médicos sugerindo o uso de máscaras descartáveis; quem diria que anos depois pediriam o mesmo, por causa de uma doença que viria a matar milhares de amazonenses igualmente sufocados, dessa vez pelo descaso sanitário de prefeitos, de governadores e do presidente da República.

Enquanto estou a quatro mil quilômetros longe de casa, remoendo recordações, há quem sofra pela sobrevivência. No Amazonas, a água é tudo: é onde muitas famílias ribeirinhas moram, em casas flutuantes; é meio de locomoção entre municípios; é fonte de alimentação, de trabalho, de turismo; é fonte de cultura e tradição.

Alter do chão, Rio Tapajós (Pará), em 2009. (Foto: Arquivo Pessoal / Aquófilos)
Foto: Arquivo Pessoal / Aquófilos Alter do chão, Rio Tapajós (Pará), em 2009.

Todos os amazônidas secam se o rio não é protegido. E a verdade é que pouco da Amazônia está sendo de fato resguardado, apesar dos discursos de autoridades mundiais em cúpulas climáticas. A Amazônia só será de fato protegida quando houver incisivo combate à grilagem, ao garimpo, aos madeireiros; e quando os direitos dos povos indígenas e ribeirinhos forem reforçados, defendidos e garantidos.

A solução para as estiagens e as enchentes extremas estão na defesa social e ambiental, não há mistério. Esse é o único caminho para reidratar nossos rios, florestas e povos. Até lá, mesmo no Ceará, eu seco também. Conosco, o Brasil e o mundo.

"Catalina Leite é repórter do O POVO+, com foco em Ciência e Meio Ambiente."

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