Com uma população excluída de muitos de seus direitos, onde as desigualdades econômicas se acentuam e as perspectivas de melhoria tornam-se limitadas principalmente aos mais pobres, a cultura de doação emerge como uma poderosa força de transformação social no Brasil. Indo além das contribuições financeiras, porém, o ato de doar transcende barreiras e conecta corações, criando um verdadeiro ciclo ininterrupto de solidariedade. Nesse cenário, Fortaleza se destaca como palco de iniciativas notáveis em que o espírito de generosidade se entrelaça com a esperança de construir um futuro mais justo.
Na capital cearense, diversos projetos tomaram para si a missão de agir na história de crianças, adolescentes, jovens e adultos por meio da arte, do esporte, da qualificação profissional e de muitos outros caminhos de empoderamento. Essas iniciativas não apenas visam mitigar e superar os obstáculos do presente, como também se comprometem a construir pontes sólidas que levam a um horizonte mais próspero, onde cada um possa vislumbrar possibilidades antes inatingíveis e até mesmo impensáveis.
Agora antes de se aprofundar no trabalho desses espaços que oferecem acolhida, educação e dignidade humana, pedimos licença para evidenciar como a cultura de doação tem se estruturado no Brasil sobretudo nos últimos anos. Para isso, realizamos uma coleta e reunião de diferentes bases de dados, para buscar mapear as regiões que mais doam no País, mostrando o perfil daqueles que realizam suas doações e os motivos que os influenciam na hora de decidir pelo ato de doar.
Desenhando uma espécie de raio-x, O POVO+ tem utilizado as seguintes pesquisas para basear os dados que serão mostrados mais abaixo nesta reportagem: Percepção e Prática da Doação no Brasil, do Datafolha; Investimento Social Privado do Censo 2022-2023, do Grupo de Investidores Sociais do Brasil (Gife); o perfil das doações individuais da Pesquisa Doação Brasil 2022; A importância do terceiro setor para o PIB no Brasil e em suas regiões, da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe); e o Monitor das Doações, da Associação Brasileira de Captadores de Recursos (ABCR).
Todas essas informações estão disponíveis publicamente na página do OP+ no Github, com intuito de garantir a transparência e reprodutibilidade desta e de outras reportagens guiadas por dados. Para acessar a plataforma, basta clicar aqui.
Em uma realidade onde vastos segmentos da população enfrentam a exclusão de direitos fundamentais, as perspectivas de progresso se tornam limitadas especialmente para os mais desfavorecidos. Nesse sentido, a cultura de doação aparece como importante agente atuante na vida de muitos brasileiros, sobretudo aqueles que vivem e sobrevivem em zonas de alta vulnerabilidade social. Nos últimos anos, esse movimento tem ganhado ainda mais relevância e conseguido receber um volume crescente de contribuições ano após ano.
Para se ter ideia, em território nacional, o Investimento Social Privado
Após registrar oscilações nos primeiros anos da análise, quando o volume anual de doações regrediu de R$ 4,7 bilhões em 2012 para R$ 3,6 bilhões em 2019, é perceptível uma preocupação incomum em 2020. Naquele ano, a pandemia de Covid-19 atingiu a todos de maneira inesperada, devastando empresas, empregos e vidas por todo o Brasil e o mundo. Com isso em pauta, a onda de solidariedade impulsionou a solidariedade e a dimensão dos investimentos voltados para ações social alcançou seu pico.
Conforme mostrado no gráfico acima, 2020 computou R$ 6,1 bilhões em ISP, sendo que R$ 2,6 bilhões foram investidos exclusivamente no enfrentamento da pandemia. “Em 2021, o volume total investido retrocedeu 28% e, em 2022, apontou tendência de retomada. Porém, o que os valores desse biênio indicam é uma ruptura do patamar de R$ 4 bilhões do pré-Covid-19”, diz o documento elaborado pelo Gife. “Comparando 2022 com a média de 2015 a 2019, houve um crescimento de cerca de 20%”, continua, apontando que o valor de investimentos sociais previsto para 2023 é superior aos R$ 5,5 bilhões.
Em meio a esse cenário, as pesquisas “Percepção e prática da doação no Brasil”, do Datafolha, e “Doação Brasil 2022” sugerem um possível perfil das pessoas que costumam realizar suas contribuições a causas sociais no País. De modo geral, percebe-se que boa parte dos brasileiros que fazem doações está concentrada no Sudeste e é composta por homens de meia-idade e que dispõem de alto nível de renda e de escolaridade.
Conforme aponta o levantamento do Datafolha, 31% dos brasileiros realizaram pelo menos uma doação em dinheiro a instituições, coletivos, ações beneficentes de igrejas ou campanhas de captação de recursos para projetos sociais durante o ano de 2022. No recorte geográfico, o Sudeste aparece como a região que mais diz aderir a prática, com 35%; tendo o Centro-Oeste (34%) e Sul (32%) vindo na sequência. Puxando a média para baixo, no entanto, aparecem o Nordeste e o Norte, com 26% e 23%, respectivamente.
A generosidade também vai variar a depender da classe social dos indivíduos, com os mais ricos dispondo de maiores percentuais frente aos mais pobres. Segundo o levantamento, 46% das pessoas que realizam doações são pertencentes das classes A/B, enquanto 30% da C e 20% da D/E.
Outra prova de que a renda influencia fortemente nesse quesito é que os índices de doadores são muito mais elevados do que a média nacional quando analisados aqueles que recebem mais de cinco salários mínimos. O gráfico abaixo evidencia essa informação, mostrando que quem recebe abaixo de cinco salários tende a fazer menos contribuições.
Os dados de sexo, idade e escolaridade também entram nessa discussão revelando o perfil majoritário dos doadores, que é composto por homens (33%), com idades entre 45 e 59 anos (35%) e com o diploma de ensino superior debaixo do braço (49%).
Já a Pesquisa Doação Brasil faz uma estimativa do valor médio das doações, que giraram em torno de R$ 300 anuais em 2022. Vale lembrar que em 2020, no contexto da pandemia de Covid-19, a média era de R$ 200 doados por ano. Enquanto isso, estão entre as principais causas procuradas para realizar doações aquelas voltadas para crianças (46%), saúde (31%) e combate à fome (29%).
As iniciativas de cunho social desempenham um papel importante tanto na sociedade como na economia do Brasil. De acordo com o estudo “A importância do terceiro setor para o PIB no Brasil e em suas regiões”, executado pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), as atividades desse segmento são responsáveis de maneira efetiva por boa parte da construção do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro. De maneira direta ou indireta, a existência do
Ao considerar ações realizadas por categorias como educação, saúde, atividades artísticas e organizações associativas, “a análise permitiu evidenciar tanto a estrutura de custos como de vendas de cada uma das atividades supracitadas” em 2022. Isto é, o estudo revela como a complexa teia de relações econômicas e sociais são estabelecidas pelo terceiro setor, destacando seu significativo impacto em diversas áreas.
Disponível gratuitamente clicando aqui, o documento realiza uma série de simulações dos impactos que ocorreriam caso as iniciativas do terceiro setor não existissem. Ao excluir a educação do terceiro setor, por exemplo, o exercício mostra que isso resultaria na interrupção de fluxos de compra de insumos de diversos segmentos, como atividades imobiliárias, administrativas, profissionais, científicas e técnicas, além da intermediação financeira, entre outros.
Como consequência, considerando todas essas interdependências setoriais, a extração das atividades educacionais conduzidas pelo terceiro setor resultaria em uma queda de 0,60% no valor da produção nacional (equivalente a R$ 61,6 bilhões), uma queda de 0,77% no PIB nacional (equivalente a R$ 39,5 bilhões) e uma queda de 0,85% nas ocupações do país (equivalente a 864 mil ocupações).
Esses números surgem para destacar a importância do terceiro setor para a economia e o emprego em solo nacional. “E isso ajuda a afastar uma imagem histórica de que o Brasil é apenas um país caridoso e solidário. Essas são duas verdades, mas precisamos buscar mostrar uma imagem um pouco mais atualizada”, afirma Joana Ribeiro Mortari.
Diretora da
Dito disso, Joana defende que os brasileiros são de fato um povo “extremamente solidário” e que as pessoas já se ajudam de uma certa maneira natural. “Mas a caridade não tem uma política, uma característica de transformar”, diz, mencionando que nos últimos anos uma frase da qual tem repulsa ajuda a ilustrar sua afirmação. “Tem gente que diz: ‘tem que ajudar a pescar e não dar o peixe’. Pelo amor de Deus, esquece essa história. É preciso fazer todas essas coisas ao mesmo tempo, por isso precisamos parar de olhar para doação como exclusivamente um lugar de ajuda”, comenta.
Também membro do conselho do Instituto Mol e da Escola Waldorf de Vancouver, no Canadá, ela conta que não propõe a exclusão da caridade ou da assistência do dicionário ou cotidiano do brasileiro, porém é preciso evoluir para uma compreensão mais ampla e impactante do ato de doar.
“A doação possui um potencial transformador que vai além de simplesmente ajudar as pessoas próximas a nós. Ela tem o poder de remodelar as relações entre as pessoas, provocar equilíbrio democrático e impulsionar organizações na busca por transformações profundas na sociedade, abrangendo diversas causas, como ambientais, sociais e de igualdade de gênero”, evidencia.
Ao mencionar a superação desse "degrau" na perspectiva da doação, Joana Mortari aponta que a ideia também é sair da crença limitada de que a atuação no setor social se resume a um ato de solidariedade. Para ela, doar para este segmento representa possibilidades muito mais amplas e impactantes do que muitas vezes se imagina. Além do mais, ressalta a importância de distinguir doação assistencial de uma cultura assistencialista, com ajuda paliativa e que mantém as coisas como são.
“É óbvio que a gente não quer uma cultura assistencialista, onde a gente ajuda um pouquinho, mas deixa as coisas como elas estão, às vezes de propósito e às vezes meio inconsciente. Dependendo do que a gente faz com a nossa intenção. Mas ao mesmo tempo isso não significa que a doação assistencial no Brasil não é importante, porque enquanto tem gente passando fome, e novamente estamos no Mapa da Fome, não adianta a gente só falar em transformação de realidades. Então tudo isso é importante ao mesmo tempo”.
Antes de ingressar de fato nas histórias escritas em Fortaleza a partir da atuação do terceiro setor e da cultura de doação, ressaltamos as diversas maneiras pelas quais as pessoas podem iniciar ou reavaliar suas doações. Bruno Sterenberg, gerente institucional da doebem, destaca que, em meio às inúmeras organizações existentes, as pessoas muitas vezes decidem filantropicamente com base na emoção. No entanto, ele enfatiza a necessidade de ir além das histórias emocionantes, buscando indicadores e métricas que fundamentem o impacto, público beneficiado, custos e benefícios diretos e indiretos das iniciativas apoiadas.
Segundo ele, muitos doadores fazem suas escolhas a partir de experiências próprias ou de questões que já enfrentaram ou testemunharam. “Não há nada de errado nisso”, comenta, complementando: “(Porém) Já não é suficiente lermos uma história que nos emociona, se essa história não for fundamentada em indicadores e métricas que nos permitam entender qual é o impacto causado, qual o público beneficiado com aquele projeto, quanto custa para promover a ação e qual o benefício direto e indireto que podemos esperar com a iniciativa apoiada.”
Justamente por isso, Bruno explica que a doebem trabalha no mapeamento, avaliação e recomendação de organizações que realizam “o melhor trabalho dentro de cada causa prioritária”. “Nosso compromisso é buscar as melhores oportunidades para que a sua doação possa causar o maior impacto possível. Todos nós analisamos diferentes opções quando vamos comprar alguma coisa, e na doação não é diferente: a doação é também um investimento em que o retorno, ao invés de financeiro e individual, é social e coletivo”, atesta.
Historicamente, os brasileiros carregam uma forte tradição de ajuda informal àqueles que precisam, conforme relembra Fernando Nogueira, mestre e doutor em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Para ele, porém, nos últimos anos uma evolução da cultura de doação tem sido observada no País, com o aumento da formalização dos projetos e do número de organizações oficialmente constituídas, com registro de CNPJ e profissionais dedicados que não atuam apenas de forma voluntária.
“Então vem se consolidando uma cultura de doação pelo povo brasileiro, mas a gente acha que ainda dá para aumentar bastante”, afirma Fernando Nogueira, que também é diretor executivo da Associação Brasileira de Captadores de Recursos (ABCR). Segundo ele, o trabalho de organizações do terceiro setor se evidencia por vários motivos, como a possibilidade de dar novas oportunidades a quem mais precisa. Mas para que essa atuação de fato aconteça e seja efetiva, é preciso recurso.
Agora tem outra coisa legal de ser destacada relacionada às doações, que são as doações consideradas pequenas de R$ 10, R$ 50, R$ 100. O grande volume desse time de oferta direcionada a apenas um projeto seria responsável por algo bastante simbólico para as organizações: o aumento de sua credibilidade. “No fundo são as pessoas dando legitimidade para esses projetos. É como se estivessem dizendo que aquilo que está sendo realizado é considerado como importante. Isso dá um peso para a organização, dá uma outra voz mais relevante”, completa.
Membro do Movimento por uma Cultura de Doação, Joana Ribeiro Mortari alerta por sua vez sobre a necessidade do entendimento de que “doar não é direcionar imposto”. “É mais fácil falar isso para um indivíduo do que para uma empresa, porque aí entra toda uma relação de querer promover marca e imagem. Mas isso está mudando, as empresas estão começando a entender que marketing se faz com show e responsabilidade social se faz em casa”, conta, mencionando a necessidade de diferenciar o redirecionamento de imposto para causas sociais das doações.
“No Movimento, a gente prega que doar é tirar o dinheiro do bolso. Todo mundo consegue tirar nem que seja R$ 5 por mês. Doar não é uma coisa para você fazer quando ficar mais velho ou para ser feito por uma pessoa mais rica do que você. É algo para você fazer ao entrar em contato nessa consciência de entender a importância que isso tem para o País e para aqueles ao seu redor”.
Curiosidade: Não sabe para quem doar? Descubra sua causa
A tecnologia também pode ser uma boa aliada na hora de contribuir com o fortalecimento da cultura de doação. Entre as iniciativas que ajudam a conectar possíveis doadores a projetos sociais está a ferramenta “Descubra sua causa”. Criado em 2018, este é um teste que visa auxiliar na identificação das causas que movem cada indivíduo.
Com uma linguagem simples e descontraída, o teste busca descobrir qual o seu propósito, lhe oferecendo uma espécie de “mapa astral” para entender como determinadas causas mexem com a sua história. Ao final de uma série de perguntas, a ferramenta lhe apresenta ainda conselhos para agir e transformar a realidade de quem precisa, além de dicas de personalidades a serem seguidas e que carregam a mesma causa que você.
O teste é gratuito e online, podendo ser acessado clicando aqui.
Para além de estatísticas e palavras, a cultura de doação manifesta concretamente a possibilidade de entrelaçar histórias e dar continuidade a um ciclo de solidariedade. Em Fortaleza, um exemplo inspirador dessa dinâmica é a iniciativa surgida na comunidade Jardim União II, localizada no bairro Passaré, onde a oferta de duas diferentes linguagens se tornou um importante elo na construção de um futuro mais promissor para crianças, adolescentes, jovens e suas famílias.
Fundado em 2012, o então Instituto Beatriz e Lauro Fiuza (IBLF) nasceu com o objetivo de criar novas oportunidades a partir da sensibilização do corpo e da mente com aulas gratuitas de música clássica e de karatê. Após mais de uma década de trabalho, o projeto evidencia transformações significativas na história tanto de quem foi beneficiado diretamente como indiretamente pelas suas ações multidisciplinares.
Publicitária de formação, Bia Fiuza é co-fundadora do projeto e conta que foi fisgada pela cultura de doação ainda na infância por forte influência da mãe, Beatriz. O fato de ter crescido em uma cidade como Fortaleza também lhe ajudou a alimentar um certo desejo de trabalhar com a missão de modificar realidade local, onde as desigualdades sociais não se constrangem e saltam aos olhos de todos sem cerimônia.
Durante sua dissertação de mestrado em Antropologia Visual e da Midia, em 2011, enquanto realizava um ensaio fotográfico sobre uma organização sem fins lucrativos em Irauçuba, no interior cearense, ela diz ter se encantado com o trabalho desempenhado por seu objeto de estudos. “Eu sempre me interessei por pessoas, tanto é que venho da fotografia documental. Mas ali eu vi uma possibilidade de ter uma postura mais ativa e mais transformadora mesmo. Foi quando fui picada pelo bichinho do impacto social”, relembra, dizendo que no ano seguinte fundou junto com a família o IBLF.
O objetivo sempre foi atuar com a educação musical, mas Bia conta que sua família recebeu o convite de um primo que já trabalhava no Jardim União II com um projeto de karatê e que no local existiam salas ociosas. “A gente topou, as coisas fluíram muito bem e foi assim que começou nossa atuação, integrando o karatê e a música durante dez anos”, diz, informando que logo no início o projeto identificou um sentimento em comum compartilhado por muitos das comunidade.
“O que a gente encontrou muito no início foi desesperança, um olhar de desesperança em muitas mães e em muitos pais. Mas à medida em que as famílias e as crianças foram entendendo que existia a possibilidade de aplausos em cima de um palco ou em cima de um pódio, que eles podiam alcançar destaque, trabalhar e ver coisas maravilhosas acontecerem. A gente sentiu que a esperança foi começando a arrumar um lugar muito maior, e isso muda tudo, porque a gente vê que os pais começaram a exigir mais de si, pois viam que existia possibilidade de um avanço para família, porque os filhos estavam avançando”, aponta.
Com o avançar dos anos, o IBLF passou a realizar um trabalho de maneira descentralizada na capital cearense. Além do núcleo Passaré, começou a atuar também no bairro José de Alencar, dentro da Casa José de Alencar, instituição mantida pela Universidade Federal do Ceará (UFC). De acordo com o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE 2010), o primeiro bairro conta com um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,423 e a renda média de sua população é de R$ 619,47. No segundo, o IDH é de 0,376 e a renda média da população é de R$ 488,71.
Mesmo nestes contextos, os jovens que passaram a participar dos projetos de música e de karatê tiveram a oportunidade de realizar apresentações artísticas e esportivas, além de poderem pensar e projetar em objetivos como o ingresso em universidades públicas e acessar postos de trabalho qualificados. “Eu acho que a maior importância está na construção da dignidade humana. A beleza e a arte estão para todos, assim como as emoções.”
► Clique aqui para ouvir o restante da resposta de Bia Fiuza.
Atualmente, o IBLF mudou o nome para Instituto de Música Jacques Klein (IMJK), agora passando a atuar somente com o ensino musical e o acompanhamento psicossocial. Ao analisar esses últimos 11 anos, entretanto, é possível perceber que o espírito da cultura de doação foi transmitido e continua vivo no coração de muitos de seus ex-alunos, como Alexandre Rosa e Thays Vasconcelos. Os dois tornaram-se professores de karatê e música, respectivamente, e agarraram-se na missão de retribuir aquilo que receberam para outros iguais a eles.
Figura marcante na comunidade do Jardim União, no Passaré, quase sempre vestido com seu kimono branco amarrado com uma faixa preta na cintura, Alexandre Rosa tem uma trajetória vitoriosa no karatê que transcende os tatames. Aos 30 anos e dono de uma lista de incontáveis títulos no esporte, ele foi aluno e professor do então Instituto Beatriz e Lauro Fiuza (IBLF), estando hoje à frente da Associação de Karatê Funakoshi (Askaf) ao lado de amigos, com os quais oferece aulas gratuitas a crianças e adolescentes da região.
Bem-humorado e de bem com a vida, ele empreende uma jornada dedicada a muito mais do que movimentos precisos e técnicas milenares eficientes. Isso porque, Alexandre busca construir e transmitir valores fundamentais aos seus alunos espalhados pelos mais diversos espaços de Fortaleza, sobretudo no Passaré, de onde é morador desde a infância.
Considerando a arte marcial japonesa uma ferramenta capaz de apresentar um ambiente onde os jovens se sintam apoiados, desafiados e inspirados a alcançar seus potenciais máximos, Alexandre busca hoje ser aquilo que fez com que ele seguisse firme no karatê. “Muitos alunos têm em nós (professores) a figura paterna que não existe dentro de casa. Coisa que aconteceu comigo quando eu era mais jovem e que posso estar passando para os alunos”, afirma.
Com o trabalho voluntário ao lado dos professores Gabriel Alves e Robério Muniz, Alexandre menciona as dificuldades financeiras e administrativas para manter o projeto rodando sem muito apoio ou patrocínio, mesmo com a equipe sendo uma das que obtém maiores destaques na Federação Esportiva e Educacional de Karatê do Ceará. “Muitas vezes bancamos alguns custos do nosso próprio bolso para continuar tocando esse projeto”, afirma.
Apesar disso, desistir não passa sequer pela cabeça de ninguém. “Não, não dá vontade de desistir porque eu entendo isso aqui que a gente faz como uma missão. A gente tem a missão de mostrar que pode ser diferente, que não é porque a gente mora em uma comunidade que vai simplesmente baixar a cabeça, se render para as coisas que teoricamente são mais fáceis”, completa, informando que atualmente apenas alguns alunos dão uma ajuda de custo mensal para pagar energia, água e aluguel.
Para ajudar a manter as contas em dias, o grupo também fica atento a tudo aquilo que acontece ao seu redor para aproveitar oportunidades que surgem. Tanto é que eventos como São João ou mesmo campeonatos são espaços onde eles se movimentam em busca de levantar alguma quantia em dinheiro. “O karatê precisa do dinheiro para manter o mínimo de estrutura, mas para mim o karatê nunca foi uma questão financeira. Sempre vai ser um trabalho social”, completa.
Com uma paixão pela música que floresceu há mais de oito anos, Thays Vasconcelos traz consigo uma história de transformação. Ela ingressou no aprendizado musical no então Instituto Beatriz e Lauro Fiuza (hoje Instituto de Música Jacques Klein), aos 12 anos, quando arriscou suas primeiras notas no violino. O instrumento, que nunca mais saiu de suas mãos, ditou o ritmo de uma nova perspectiva de futuro pessoal e profissional para a jovem.
No início, suas idas às aulas eram motivadas pelas apresentações e pela companhia dos colegas de turma. Mas logo o violino transformou-se em fiel companheiro que lhe rendeu uma profissão. Em alguns anos Thays descobriu na prática o tamanho poder contido da educação musical.
Prova disso é que em 2021, ela recebeu o chamado para largar a condição de aula para assumir o de professora. “Foi incrível ter recebido aquele convite. No início achei que não conseguiria dar a assistência necessária para os alunos, mas isso logo superei”, afirma, lembrando que hoje, sabendo da responsabilidade que a música tem para transformar uma vida, dedica-se bastante para tentar aumentar ainda mais as perspectivas dos seus pupilos.
“Acredito que a música tem, sim, o poder de mudar vidas. Assim como mudou a minha e a de muitos colegas, ela pode transformar a vida de meus alunos”, pontua.