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Brasil no centro do Mapa-Múndi: a simbologia dos mapas para além da questão geográfica
Reportagem Especial

Brasil no centro do Mapa-Múndi: a simbologia dos mapas para além da questão geográfica

Ao reposicionar o Brasil para o centro do Mapa-Múndi, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) acendeu a discussão sobre a importância dos mapas. Escancarando o entendimento de que nenhuma cartografia é neutra, a mudança ajuda a perceber diferentes formas dos brasileiros se enxergarem no mundo, a partir de uma perspectiva privilegiada e de destaque – e não restrita à periferia do globo terrestre

Brasil no centro do Mapa-Múndi: a simbologia dos mapas para além da questão geográfica

Ao reposicionar o Brasil para o centro do Mapa-Múndi, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) acendeu a discussão sobre a importância dos mapas. Escancarando o entendimento de que nenhuma cartografia é neutra, a mudança ajuda a perceber diferentes formas dos brasileiros se enxergarem no mundo, a partir de uma perspectiva privilegiada e de destaque – e não restrita à periferia do globo terrestre
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Após girar o globo terrestre até deixar o Brasil assumir o centro do mundo, novos olhares se apresentam sobre aquilo que nos cerca. As formas que desenham nosso território continuam as mesmas, com as fronteiras desenhadas tanto pelo Oceano Atlântico como por quase todos os países sul-americanos. Mas agora, ao invés de procurá-lo sempre na parte inferior do Mapa-Múndi, os brasileiros poderão encontrar seu território centralizado e destacado nas projeções oficiais do País.

Essa mudança de perspectiva do Brasil frente ao mundo à sua volta é fruto de uma ideia desenvolvida e apresentada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que propõe uma possível oficialização deste que está sendo chamado de "Brasilcentrismo". Essa abordagem tem recebido críticas e elogios, com os primeiros apontando para um suposto “ativismo cartográfico”, enquanto que os últimos sinalizam para uma valorização social, cultural e histórica da nação.

Politicamente, os mapas têm o poder de reforçar ideologias e a importância de determinados grupos diante de outros. Portanto, colocar o território nacional com maior notoriedade nos documentos que projetam o planeta seria uma espécie de desafio a uma visão eurocêntrica dominante, evidenciando o processo de representatividade e o pensamento decolonial da nação, conforme argumentam seus defensores.

Por meio da cartografia, levantamentos ambientais, sociais, econômicos, educacionais, de saúde e de outras áreas podem ser representados espacialmente, em formato de mapas, para retratar a dimensão territorial, facilitando e tornando mais eficaz a sua compreensão. De acordo com a 9ª edição do Atlas Geográfico Escolar do IBGE, porém, não existe uma única forma de produzir estes documentos, uma vez que a forma da Terra não é de fato uma esfera perfeita, mas um geoide, cuja superfície é extremamente irregular.

 

No vídeo abaixo, é possível entender espacialmente o formato “real” do planeta. Clique no play (►) e assista:

 

Com finalidades didáticas, no entanto, convencionou-se a representar a Terra como uma esfera perfeita, como um globo. Abaixo, veja e explore em um recurso 3D a representação do planeta.

 

Para facilitar a visualização do geoide "modelo físico da forma da Terra. É uma superfície equipotencial do campo da gravidade, o que significa que o potencial do campo da gravidade é constante sobre essa superfície" , o qual é cheio de curvas, aclives e declives, os cartógrafos buscaram a figura geométrica matematicamente definida que mais se aproximasse do geoide. O escolhido foi o Elipsoide de Revolução, um sólido geométrico gerado por uma elipse que gira em torno de seu menor eixo, o eixo polar. Com isso, as representações cartográficas passariam a ganhar mais precisão, pois suas formas são as que mais chegam perto do verdadeiro molde da Terra.

Carlos Henrique Sopchaki é professor do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC)(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Carlos Henrique Sopchaki é professor do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC)

Ao mesmo tempo, como cada mapa visa a priorizar determinados aspectos de uma região. O professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) Carlos Henrique Sopchaki aponta que não existe uma projeção livre de deformações. Por isso, diz ele, “a cartografia trabalha com convenções”. “O Mapa-Múndi que estamos mais acostumados, com a Europa no centro, foi produzido a partir de uma padronização feita na Conferência Internacional do Meridiano, realizada em 1884, em Washington”, relembra.

Sopchaki explica que o Meridiano de Greenwich "O Meridiano de Greenwich ou Meridiano Principal é o meridiano que passa sobre a localidade de Greenwich e que, por convenção, divide o globo terrestre em ocidente e oriente, permitindo medir a longitude. Foi estabelecido por Sir George Biddell Airy em 1851 (Wikipédia)" tornou-se referência para as longitudes no globo terrestre. Ele destaca que o meridiano, localizado no Observatório Real de Greenwich, em Londres, foi institucionalizado como o principal referencial, refletindo o poder da Inglaterra na época. Assim, mesmo que a Conferência Internacional tenha sido realizada nos Estados Unidos, decidiu-se que a Inglaterra seria o ponto de origem das longitudes. Isso resulta na representação da Europa no centro do mapa, porém apenas por convenção. A direção horizontal, chamada de longitude, tem o meridiano de Greenwich como origem, variando de 0° a ±180° (positivo a leste e negativo a oeste de Greenwich).

Titular do programa de Pós-Graduação em Geografia, Sopchaki informa que, deste modo, devido a impossibilidade de representar uma superfície esférica em uma superfície plana sem que ocorram extensões ou contrações de determinados territórios, diferentes modelos foram desenvolvidos ao longo da história. Todos eles com intuito de representar o planeta da melhor maneira possível a atender determinados interesses.

 

No quadro abaixo, clique nas setas para ver alguns desses exemplos que buscam desenhar o mundo por meio de projeções planas, cônicas ou cilíndricas.

 

Diferentes modelos de projeção do Mapa-Múndi

 


 

“Brasilcentrismo” é proposto pelo IBGE

À medida que as convenções humanas se moldam, inclusive as geográficas, girar o globo até reposicionar sua “frente” para qualquer região passa a ser possível. E foi exatamente o que fez o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) ao apresentar a proposta de colocar o Brasil centralizado nos Mapas-Múndi oficiais do País. A inovação veio acompanhada do lançamento da 9ª edição do Atlas Geográfico Escolar.

O documento divulgado pelo IBGE, em 9 de abril de 2024, tem a marcação dos países que possuem representação diplomática brasileira e aqueles que compõem o Grupo dos 20 países com maiores economias do mundo, conhecido como G20. Para o IBGE, a produção deste mapa ocorre em consonância com o momento em que o Brasil está presidindo o G20, sendo essa uma oportunidade de destacar uma visão única do País em relação ao grupo e ao mundo.

De modo geral, a iniciativa do IBGE busca alinhar a representação cartográfica do Brasil com seu papel no cenário internacional, oferecendo uma perspectiva renovada sobre o planeta. Abaixo, veja a simulação do projeto apresentado pelo IBGE com o Brasil no centro do Mapa-Múndi.

 

Ao clicar na seta, visualize o Mapa-Múndi convencional em vigor, com o eixo zero determinado pelo Meridiano de Greenwich.

 

Mapa com o Brasil no centro do Mapa-Múndi e Mapa-Múndi convencional

 

“O mapa produzido pelo IBGE, com o Brasil no centro, é mais uma convenção. E é simbólico, pois no que se refere ao sistema de coordenadas, o Meridiano de Greenwich, e por consequência a Europa, continuará sendo referência, dividindo o mundo entre Ocidental e Oriental, sendo também parâmetro para os fusos horários. Mas a discussão gerada, por si só, já é interessante, posto que tira um pouco a visão eurocêntrica do mundo e demonstra, claramente, que há mais de uma forma de representar a Terra e os continentes”, comenta o professor da Universidade Federal do Ceará, Carlos Henrique Sopchaki.

De modo geral, diferentes mapas reforçam o poder hegemônico dos países do hemisfério Norte – a metade do planeta que está acima da Linha do Equador. Países europeus e os Estados Unidos, sobretudo, costumeiramente são representados em destaque, enquanto que as demais regiões se restringem às margens dos documentos cartográficos mais populares internacionalmente.

“Se você ver as projeções mais convencionais ou mesmo a logomarca da ONU (Organização das Nações Unidas), os países que estão no centro são aqueles imperialistas ou donos das maiores economias do mundo. Já na periferia dos mapas estão os países africanos, latinos, sul-americanos e asiáticos. Então tem um ideal ideológico nessa perspectiva”, aponta o professor de geografia do ensino médio Adriano Carvalho.

Bandeira da ONU mostra o Mapa-Múndi sobre uma perpectiva que privilegia os países europeus e Estados Unidos(Foto: Miguel Á. Padriñán/Pixabay)
Foto: Miguel Á. Padriñán/Pixabay Bandeira da ONU mostra o Mapa-Múndi sobre uma perpectiva que privilegia os países europeus e Estados Unidos

Também pesquisador de comunidades tradicionais e formado pela Universidade Estadual do Ceará (Uece), Adriano afirma não haver neutralidade ou imparcialidade em qualquer confecção cartográfica. “A cartografia por si só carrega ideais políticos, sociais e ideológicos no processo de representatividade de determinados territórios. Todo esse processo parte do viés de interesse de determinados grupos”, declara.

Ele narra que na transformação de dados espaciais em formatos planos, todos os aspectos que vão ser mapeados são selecionado minuciosamente a depender dos interesses do grupo que estiver produzindo. Como exemplo, o educador cita empresas que pretendem executar projetos em determinadas regiões de uma cidade. Ao cartografar os espaços ao redor das suas iniciativas, esses agentes muitas vezes ignoram ou mesmo excluem comunidades, grupos e características que compõem aquele local como forma de maquiar ou privilegiar suas predileções.

“Daí existe uma cartografia que vai legitimar esses empreendimentos e uma outra que vai legitimar a existência de pessoas e de culturas, como é o caso da cartografia social. Então nenhum mapa é neutro, a ciência como um todo não tem como ser neutra, pois esses são exercícios que sempre vão agradar ou priorizar a perspectiva de algum grupo. Então quando se fala de um Estado nacional, o IBGE tem que trazer as questões da nossa hegemonia e soberania”, confirma, já abordando o “Brasilcentrismo”.

Formado pela Uece, Adriano Carvalho é professor de geografia ensino médio e pesquisador comunidades tradicionais(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Formado pela Uece, Adriano Carvalho é professor de geografia ensino médio e pesquisador comunidades tradicionais

Segundo ele, o simples ato de redirecionar o mapa a ponto de centralizar o Brasil pode fazer com que identidades e questões tratadas internamente passem a ser mais discutidas e priorizadas de maneira geral. “Então você legitima as causas sociais que existem naquele território”, menciona.

Apesar desses pontos levantados, inúmeros usuários nas redes sociais reagiram de maneira contrária ao modelo que reposiciona o Mapa-Múndi. Suas críticas ocorrem devido à “radical” mudança de projeção que o IBGE trazia até então em suas cartografias, que mostravam o Brasil sempre localizado na parte inferior esquerda do globo.

Analista de geoprocessamento e coordenadora da área que produziu o Atlas Geográfico Escolar do IBGE, Maria do Carmo Bueno comenta que o posicionamento do Brasil ao centro já está presente em mapas temáticos do Atlas desde 2006. “Foi uma decisão tomada com fins didáticos, com o objetivo de mostrar o País sob uma nova perspectiva e permitir que os professores de geografia explorassem essa questão na sala de aula”, diz ao O POVO+.

Questionada sobre o burburinho gerado nas redes sociais quanto a alguns aspectos da projeção, como a Palestina sendo desenhada como estado-nação, ilhas contestadas sendo atribuídas à Argentina, como as Malvinas (ou Falkland), e Taiwan como sendo território chinês, ela sinaliza que os mapas também são uma representação política.

“Então, não é de surpreender que o posicionamento político do Brasil seja representado nos mapas feitos pelo IBGE, um órgão do Governo Federal. Isso já estava presente em edições anteriores do Atlas Geográfico e nesta última edição fizemos atualizações para eliminar algumas incoerências.”

Ela ainda aponta que trazer o Brasil sobre uma nova perspectiva tem uma importância política e cultural “enorme” por apresentar novas maneiras dos brasileiros se verem em relação ao mundo. “Considero que acrescentar essa visão à nossa formação faz com que nossos horizontes sejam ampliados e que conceitos preestabelecidos sejam colocados em discussão”, sustenta.

Francisco Ariel da Costa Pereira estudante da Escola de Ensino Médio em Tempo Integral (EEMTI) CAIC Maria Alves Carioca(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Francisco Ariel da Costa Pereira estudante da Escola de Ensino Médio em Tempo Integral (EEMTI) CAIC Maria Alves Carioca

Tal sentimento de aumento da compreensão sobre aquilo que rodeia o Brasil já começa a ser notado na fala daqueles que logo vão assumir as rédeas do País. No Grande Bom Jardim, o estudante da Escola de Ensino Médio em Tempo Integral (EEMTI) CAIC Maria Alves Carioca, Francisco Ariel da Costa Pereira já se encheu de esperança ao ver seu País em destaque no mapa apresentado pelo IBGE. Aos 15 anos, ele diz acreditar que este é um real indicativo de que o “Brasil só tem que a crescer”.

“É só mais um passo para o Brasil se tornar um dos maiores. Acredito que mais países devem querer negociar com o Brasil após essa mudança e que a nossa taxa de  IDH "O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) compara indicadores de países nos itens riqueza, alfabetização, educação, esperança de vida, natalidade e outros, com o intuito de avaliar o bem-estar de uma população, especialmente das crianças." possa até aumentar. O Brasil não é tão bem falado lá fora e agora com essa oportunidade de ser o centro talvez possa mudar essa ideia distorcida e preconceituosa sobre o Brasil e os brasileiros. Nossas condições podem mudar e novas mudanças, como a alteração do mapa, podem nos beneficiar cada vez mais”, aspira.

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