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Ceará versus Piauí: O mapa da discórdia
Reportagem Seriada

Ceará versus Piauí: O mapa da discórdia

O litígio envolvendo os limites dos dois estados já dura pelo menos 150 anos e parece de difícil resolução. Ambas as partes se baseiam em interpretações divergentes das linhas cartográficas ao longo da história. Neste especial, você pode acompanhar uma linha do tempo da geometria da área em disputa
Episódio 6

Ceará versus Piauí: O mapa da discórdia

O litígio envolvendo os limites dos dois estados já dura pelo menos 150 anos e parece de difícil resolução. Ambas as partes se baseiam em interpretações divergentes das linhas cartográficas ao longo da história. Neste especial, você pode acompanhar uma linha do tempo da geometria da área em disputa
Episódio 6
Tipo Notícia Por

 

Em um baião de 1964 que soa como lamento de saudade, o Trio Nordestino de Lindú, Cobrinha e Coroné canta — "Êêê Piauí, ôôô Ceará, já vai pra mais de três anos que eu não apareço por lá". Colocados lado a lado na geografia e na canção, os estados fizeram emergir, no início da década passada, uma agitação que há mais de um século vinha respirando como criatura subterrânea, nutrida por conversas informais e documentos amarelados.

Em 2011 o Piauí resolveu pleitear judicialmente quase 3 mil quilômetros quadrados do território adjacente à sua fronteira Leste, na extensão do que hoje é o Ceará, que por sua vez respondeu à provocação sacudindo no ar o decreto centenário de um imperador destronado. Abriram-se mapas, criaram-se marcos, mediram-se terras, mas o nó do litígio permanece, no que vai de 2024, firme e intacto.

Protocolada junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), a Ação Civil Ordinária (ACO) 1831 reclama parte de territórios que hoje pertencem a 13 municípios cearenses. Sob relatoria da ministra Cármen Lúcia, a Ação não tem prazo estipulado de resolução. Enquanto aguardam a decisão que pode alterar a biografia de 25 mil pessoas e o traçado da cartografia dos dois estados, Ceará e Piauí se esforçam para reunir dados e argumentos que atestem sua precedência sobre as terras.

Do lado de lá, a aposta é no resgate de documentos históricos e em novas interpretações para velhos textos. Por aqui, escolheu–se argumentar pela primazia do elemento humano, sob a sugestão de que caberia aos residentes do território o veredito do litígio. Mas a simples menção aos dois fatores não dá conta de abarcar a série de variáveis envolvidas no conflito: além das coordenadas de um mapa e das memórias de um povo, estão em disputa questões de cunho econômico, ambiental, político e de infraestrutura.

O ponto de partida para a compreensão desse conflito, cheio de complexidades e detalhes, é o entendimento da evolução cronológica do litígio. Para colaborar com esse processo, OP+ levantou informações em bancos de dados e documentos cartográficos históricos, oriundos de fontes como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Cadastro Nacional de Endereços para Fins Estatísticos (Cnefe).

 

 

Um confronto de mapas e versões

A extensão do território envolvido no litígio entre os estados é de aproximadamente 3 mil quilômetros quadrados e vai, no Ceará, do município de Granja, na microrregião do litoral de Camocim, a Crateús. As áreas desses municípios contestadas pela Ação Civil Ordinária do Piauí são, respectivamente, de 1,7% e 6,1%.

Além de Granja e Crateús, têm parte de seu território na área demandada os municípios, de Norte a Sul, de Viçosa do Ceará (5,7%), Tianguá (20,9%), Ubajara (15,8%), Ibiapina (14,5%), São Benedito (13,5%), Carnaubal (16,7%), Guaraciaba do Norte (19,7%), Croatá (32,4%), Ipueiras (19,2%), Poranga (66,3%) e Ipaporanga (7,7%).

Segundo levantamento realizado por um Grupo de Trabalho (GT) coordenado pela Procuradoria-Geral do Estado do Ceará (PGE-CE) e dedicado exclusivamente à questão do litígio, há 136 localidades (cidades, vilas, povoados, projetos de assentamento e aldeias indígenas, sobretudo em zonas rurais) na área de disputa, a maior parte delas (67) concentrada no município de Poranga.

Mas entender a configuração corrente dos territórios — assim como as conversões pleiteadas pelo Piauí na ação de 2011 — exige que se faça um recorrido por datas, cartas, decretos, acordos e desacordos em busca da geometria real da área em disputa. Esse deve ser o ponto de partida, e essa investigação precisa estar na base das análises posteriores sobre a posse legítima dos recursos e riquezas da região. E é justamente nesse tópico, fundamental para qualquer análise, que se concentram sombras e divergências.

 

 

O problema da geometria

A ausência — na maior parte dos documentos oficiais divulgados por Ceará e Piauí em suas respectivas argumentações — de informações metodológicas sobre critérios e bases de dados utilizadas para as delimitações apresentadas é um problema não apenas das partes, mas também das fontes oficiais, cujos registros históricos apresentam variações significativas ao longo das décadas.

Frente a essas interpretações divergentes, e para manter a neutralidade na observação da evolução histórica desses limites, consideramos como fonte principal os mapas com a divisão territorial do Brasil elaborados pelo próprio IBGE. Tais dados são o fundamento para as delimitações cartográficas propostas nessa reportagem e para os posteriores cruzamentos com outras bases de dados.

No mais antigo desses mapas compilados pelo IBGE, de 1872, quando foi realizada a primeira operação censitária no Brasil, a linha das fronteiras entre os estados aparece diferente da que nos acostumamos a ver em 2024: a província do Piauhy possuía a região correspondente, hoje, aos municípios cearenses de Crateús e Independência, enquanto o Ceará era detentor de fatia significativa do que hoje é o litoral piauiense — o que deixava o estado vizinho com curtíssimo acesso ao mar.

Limites das províncias do Piauhy e Ceará, em 1872 

 

Essa configuração foi refeita em 1880, quando o imperador Dom Pedro II assinou decreto formalizando uma operação de troca de terras: o Piauí cedia ao Ceará a comarca de Príncipe Imperial (justamente onde está o município de Crateús), e o Ceará transferia ao Piauí o território de Amarração (correspondente, hoje, ao município de Luís Correia). Os novos limites, que garantiram a ampliação do acesso piauiense ao mar, já constam no mapa da divisão territorial de 1911 do IBGE.

Acontece que a promulgação do decreto por Dom Pedro II veio acompanhada de uma série de interpretações divergentes por parte das autoridades dos dois estados no que diz respeito aos limites territoriais das áreas cedidas. Enquanto o Piauí enxergou no texto oficial a indicação de que o marco divisor entre estados deveria ser o ponto mais alto da Serra da Ibiapaba, o Ceará argumentou que toda a serra estaria em seu território, e que a divisão começaria no sopé da chapada.

Limites estaduais do Piauí e Ceará, em 1911


Nos dois mapeamentos seguintes, publicados nos anos de 1920 e 1933, a divisão da região manteve os limites estabelecidos pelo IBGE em 1911, mas a partir de 1940 a divergência é assimilada pelos órgãos federais: uma região de cerca de 3 mil quilômetros deixa de ser dividida entre os estados e municípios e passa a ser sinalizada como área de "Litígio PI/CE". A marcação permanece em destaque nos mapas durante as seis décadas seguintes, constando pela última vez no censo demográfico do ano 2000.

O que chama atenção na marcação do IBGE que prevaleceu entre os anos de 1940 e 2000 é que a área de litígio destacada pelo instituto não corresponde à geometria das mudanças operadas a partir do decreto imperial do fim do século XIX. A zona conflituosa destacada, fruto dessas interpretações divergentes de documentos oficiais, ignora o litoral piauiense e parte das regiões onde estão atualmente os municípios cearenses de Crateús e Independência, passando a cobrir a Serra da Ibiapaba como um todo.

Limites estaduais do Piauí e Ceará, em 1940


Essa área litigiosa permaneceu sem definição estadual por pelo menos sete décadas, até que em 2010 o território outrora em disputa apareceu formalmente dividido entre os dois estados, com a maior parte dele integrada à área cearense.

Embora o Piauí tenha ingressado com a Ação Civil Ordinária no STF em 2011, os mapas desenhados a partir do levantamento do último Recenseamento Geral, em 2022, continuam seguindo a linha de divisão entre estados apresentada na pesquisa da década anterior — a mesma que é questionada na justiça. Até a decisão da ministra Cármen Lúcia, sem prazo para ocorrer, o conflito segue vivo e aquecido.

 

 

Atualização realizada em 3 de abril de 2024

Em contato com O POVO+, a assessoria de imprensa da Procuradoria-Geral do Estado do Ceará (PGE-CE) defende suas argumentações e reforça a consistência de suas teses, reafirmando que os documentos divulgados pelo Ceará são apresentados com referências de fontes e de metodologia. Ainda, a PGE-CE compartilha uma página onde estão disponibilizadas informações em que o Estado se ampara nessa disputa judicial. Para acessar, basta clicar aqui.

 

 


Territórios em comparação

Diante desse movimento problemático entre os limites territoriais dos dois estados, uma alternativa que se apresenta para a compreensão de uma geometria o mais certeira possível da situação é realizar a comparação dessas cartografias — a mais recente e a de 1940, quando a área destacada começa a ser efetivamente apontada como em litígio pelo IBGE.

O comparativo entre as variações representa a área em disputa destacada pelo Instituto entre as décadas de 1940 e 2010 e o quanto cada estado "ocupou" da região a partir da segunda data. Desse modo é possível observar que, nos anos que se seguiram a 2010, o Piauí ocupou cerca de 715 hectares da área litigiosa, enquanto a ocupação do Ceará foi de 2.600 hectares, ou 78% da área total, que é de 3.320 hectares.

A observação da evolução desses limites também dá indícios de que o Ceará não apenas avançou sobre a área de litígio destacada pelo IBGE em 1940, como também anexou parte do território atribuído ao Piauí naquele ano. Dos dois lados, 21 municípios — 13 do Ceará e 8 do Piauí — têm seus territórios envolvidos nesse jogo de avanços e recuos que inclui, em um cenário de indefinição formal, crescimentos, encolhimentos e até emancipações.

Levando em conta a malha municipal mais recente, de 2012, os municípios que cruzam a área em disputa são, no Ceará: Granja, Viçosa do Ceará, Tianguá, Ubajara, Ibiapina, São Benedito, Carnaubal, Guaraciaba do Norte, Croatá, Ipueiras, Poranga, Ipaporanga e Crateús; e, no Piauí: Luís Correia, Cocal, Cocal dos Alves, São João da Fronteira, Pedro II, Buriti dos Montes, Piracuruca e São Miguel do Tapuio.

Municípios do Piauí e Ceará com limites territoriais que cruzam a área de Litígio

 

 

Metodologia

Para este material foram utilizados dados relacionados às malhas geográficas históricas de cidades, estados e antigas províncias brasileiras, de 1872 aos registros atuais, publicados e disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em diferentes canais e publicações, como: Evolução da divisão territorial do Brasil 1872-2010, Repositório de arquivos da divisão territorial do Brasil e API de Malhas Geográficas. Em seguida, foram coletados dados do Cadastro Nacional de Endereços para Fins Estatísticos (Cnefe).

Para garantir a transparência e a reprodutibilidade desta e de outras reportagens guiadas por dados, O POVO+ mantém uma página no Github na qual periodicamente são publicados códigos, metodologias, visualizações e bases de dados desenvolvidas.

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